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 Da presidência do Centro Santo Dias à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA

 

Nos dias 1º a 5º de junho (de 1997) a Organização dos Estado Americanos – OEA -, que reúne trinta e quatro países, realizou em Lima,  no Peru, sua 27ª Assembléia Geral. A delegação brasileira foi chefiada pelo ex-presidente Itamar Franco, na época embaixador do Brasil na entidade.

Foi uma assembléia marcante: na sessão de abertura, o presidente do Peru, Alberto Fujimori, investiu contra a liberdade de imprensa, a quem acusou de “corrupção”. Recebeu uma discreta vaia, seguida de enérgica repulsa de segmentos da sociedade civil peruana.

Outro ponto polêmico do encontro foi o bloqueio contra Cuba. Depois de muita discussão, não foi aprovada a repulsa explícita ao bloqueio, na época intensificado com a edição da lei que prevê penalizações aos países que mantiverem relações comerciais com aquele país.

Durante o evento, aconteceram duas importantes eleições, para o preenchimento de vagas na Corte Interamericana de Direitos Humanos e na Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

O primeiro pleito transcreveu sem maiores percalços. Entretanto, para o preenchimento de três vagas na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, houve uma disputa que preocupou as organizações não governamentais de defesa dos direitos humanos, entre elas a Anistia Internacional e a America’s Watch: um dos candidatos - Vilagran Kramer -, apresentado pela República Dominicana, ligara-se à ditadura sangrenta que atormentou aquele país na década de oitenta e, segundo editorial do New York Times, não poderia ocupar espaço na Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

A luta contra essa candidatura tomou conta do plenário, sendo de ressaltar as posições adotadas pelas delegações dos Estados Unidos e do Canadá que aderiram às gestões que a delegação brasileira fazia junto aos delegados dos países membros.

No final, foram eleitos os candidatos apresentados pelo Chile, pelos países do Caribe e pelo Brasil, que passaram a integrar a Comissão Interamericana de Direitos Humanos desde 1º de janeiro de 1998, com mandato de quatro anos.

A candidatura Hélio Bicudo, apresentada pelo governo brasileiro, teve origem em recomendação feita por dom Paulo Evaristo Arns, cardeal arcebispo de São Paulo, ao presidente da República Fernando Henrique Cardoso.

 

4.1. O Brasil, diante da OEA.

 

Itamar Franco2

 

Senhor presidente,

Senhor secretário-geral,

Senhores chefes de delegação,

Senhores delegados,

Senhoras e senhores:

Gostaria, antes de tudo, de formular a vossa excelência, senhor ministro Francisco Tudela, as mais sinceras e calorosas felicitações por sua eleição para presidir os trabalhos desta 27ª sessão da Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos. Estamos todos seguros de que a experiência política e as qualidades reconhecidas  de  diplomata  de   vossa   excelência   garantem uma

 


2 Discurso proferido pelo então embaixador, o ex-presidente Itamar Franco, na ocasião chefe da delegação do Brasil na 27ª Assembléia da Organização dos Estados Americanos, realizada em Lima, Peru, de 1º a 5 de junho de 1997.

condução firme e profissional das deliberações ao longo dos próximos dias de trabalho deste mais alto foro interamericano.

Vemos com especial satisfação a presença de vossa excelência hoje entre nós, refeito dos sobressaltos e vicissitudes que recentemente enfrentou com dignidade e força de espírito.

O Brasil, senhor presidente, condena todas as formas de violência, entre elas o terrorismo, fenômeno delituoso que se traduz em uma deliberada violação dos direitos individuais e uma agressão à própria democracia, tal como consagrado na Declaração de Princípios da Cúpula das Américas.

Desejo ainda manifestar, por intermédio de vossa excelência, a expressão mais sincera de nossos agradecimentos ao povo peruano pela fidalguia e hospitalidade com que nos acolhe nessa bela cidade de Lima.

Nós, como cidadãos das Américas, sabemos das tradições históricas do povo peruano de defesa da liberdade e da democracia no continente, seu legado de lutas e conquistas, vínculos que nos unem em torno de ideais comuns e, em particular, ao Brasil.

Permita-me ainda, senhor presidente, registrar nosso reconhecimento pelo papel desempenhado pela OEA e pelo seu secretário-geral, que sempre contou, desde o processo de sua eleição, com o decidido apoio brasileiro, em seus esforços pela causa hemisférica. A Organização vê hoje sua agenda adensada e fortalecida, e marcada pelos avanços que se processam em ritmo gradual e seguro na direção da integração regional, e pelo dinamismo de um novo conceito de cooperação solidária entre nossos países. Estamos seguros de que o processo iniciado sob a orientação do doutor César Gaviria conduzirá a Organização a um renovado multilateralismo, expressão de nossos legítimos anseios.

 

A OEA no cenário mundial e regional

Os elevados propósitos que inspiraram a criação desta Organização permanecem atuais. No século passado, unimo-nos em torno dos ideais de liberdade, de independência. De conquista da soberania política. O progresso dos nossos povos exigia a colaboração recíproca contra o inimigo comum. A preservação da autonomia política recém-alcançada era o valor maior a defender. Nossa união decorre, fundamentalmente, da tradição humanista e libertária que, em um dado momento histórico, consolidou-se em nossos países.

A erradicação da pobreza, da discriminação sob todas as formas e da injustiça são imperativos éticos que se impõem ao homem contemporâneo. As forças e os interesses que a isto se opõem transcendem as fronteiras de qualquer país, pobre ou rico, desenvolvido ou em desenvolvimento.

Vivemos um novo tempo em que o multilateralismo assume crescente importância. O confronto ideológico entre Estados cede passo a um novo tipo de antagonismo que opõe, cada vez mais, interesses conflitantes supranacionais e globalizados. É nosso dever, na qualidade de representantes de povos que aspiram edificar um mundo melhor e mais eqüitativo, trabalhar pela causa do bem comum, pela promoção social dos homens e das mulheres, pela criação de maiores oportunidades para as gerações vindouras.

A Organização dos Estados Americanos é, essencialmente, um foro político onde as grandes questões de interesse comum devem ser debatidas e soluções devem ser encontradas com base no espírito de fraternidade, solidariedade e justiça que nos anima. O nosso maior compromisso maior é com os oprimidos e excluídos dos benefícios da civilização. A dívida a ser resgatada é a social. O inimigo a ser combatido são os interesses setoriais que egoisticamente procuram sobrepor-se ao interesse comum. Os valores democracia, paz, liberdade e progresso precisam identificar-se com os anseios e desejos da maioria e não permanecerem como meras conquistas abstratas do pensamento humano.

Tenho fé no trabalho e no futuro da Organização dos Estados Americanos porque o sentimento e os propósitos que nos movem estão identificados com a aspiração geral dos nossos povos.

Senhor presidente,

 

Este 27º Período de Sessões da Assembléia Geral da OEA nos encontra em um patamar de renovação do sistema interamericano. Vivemos hoje em uma América onde se consolida a democracia. Por outro lado, assistimos ao amadurecimento das iniciativas de integração econômica, bem como dos esforços de modernização de nossas instituições estatais.

O Brasil de hoje, uma sociedade em pleno exercício da democracia representativa, tem-se empenhado na superação dos desequilíbrios macroeconômicos e das disparidades sociais. No âmbito externo, propugna pela criação de condições para uma democratização das relações internacionais, onde o pluralismo e a diversidade construtiva de opiniões devem propiciar um ambiente de paz e de progresso entre as nações.

Ao longo dos próximos dias estaremos discutindo temas relevantes e de interesse fundamental para nossos países, mas que extrapolam o âmbito da agenda regional, pois se integram e se desdobram no plano mundial. A defesa da democracia, a proteção aos direitos humanos, a promoção do desenvolvimento, a conservação do meio ambiente, a luta contra as drogas são desafios comuns da humanidade neste final de século. A OEA, com seu espírito de constante renovação, sua vocação democrática firmada no respeito ao princípio da igualdade jurídico e na independência de seus membros, se encontra hoje preparada para enfrentá-los.

A obra em que estamos empenhados de “consolidação da democracia” constitui um dos fundamentos da OEA, essencial para o futuro dos nossos povos. Permito-me aqui citar as palavras do presidente Fernando Henrique Cardoso, quando visitou a sede da OEA, em abril de 1995: “O compromisso com a preservação e o fortalecimento da democracia é o patrimônio singular da nossa Organização regional”.

Mas, importante também é a observância dos princípios da autodeterminação, da não intervenção e da igualdade entre os Estados no plano internacional.

A preservação da paz, outro princípio em que se assenta a organização, só será possível se logramos um desenvolvimento estável que assegure a prosperidade para todos.

 

Cooperação

Saudamos com satisfação e renovadas esperanças a aprovação na Cidade do México, em abril passado, dos documentos fundamentais do Conselho Interamericano de Desenvolvimento Integral (CIDI), como resultado dos protocolos de Manágua, de reforma da Carta da OEA. A instituição do CIDI atendeu à necessidade de ampliar nosso campo de ação  para a conquista dos ideais comuns da região, ressaltando o imperativo ético de desenvolver a democracia e, ao mesmo tempo, democratizar o desenvolvimento, de forma solidária e compartilhada.

O Brasil reafirma a prioridade que confere à cooperação horizontal como forma de apoio ao desenvolvimento, e buscará os meios necessários para o pleno funcionamento do Fundo Brasileiro de Cooperação, instituído com o objetivo de financiar atividades de cooperação com os países de menor desenvolvimento membros de nossa organização, em especial os da América Central e do Caribe.

 

Educação

Desenvolvimento e educação são conceitos que não podem estar dissociados. Os aspectos legados à educação constituem instrumentos imprescindíveis ao pleno florescimento de nossas gerações e à edificação dos valores de justiça social, e elementos de identificação no processo de integração regional e de afirmação da consciência democrática.

A OEA tem diante de si uma variada gama de possibilidades de atuação nessa área, com vistas à melhoria da qualidade de vida e do bem-estar de nossas populações.

 

Meio ambiente

O tema do meio ambiente continua sendo parte essencial de nossas preocupações. A conservação do meio ambiente mediante o desenvolvimento sustentável terá que ter presente que a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e a própria agenda 21 nasceram da preocupação com o homem e seu destino da terra.

Vimos com satisfação os progressos alcançados no âmbito regional com os princípios e compromissos contidos na Declaração e no Plano de Ação que foram firmados por ocasião da Cúpula das Américas sobre Desenvolvimento Sustentável realizada em Santa Cruz de la Sierra. Do mesmo modo, reconhecemos a importância dos trabalhos da recém-instalada Comissão Interamericana de Desenvolvimento Sustentável, e apoiamos os propósitos do Programa Interamericano de Desenvolvimento Sustentável.

 

Direitos Humanos

Na questão dos direitos humanos, observa-se um significativo aumento da consciência da necessidade de transferência no tratamento dos problemas enfrentados pelo país nessa matéria. O Brasil tem atuado em sintonia com as exigências da sua sociedade e no entendimento de que a preocupação internacional com a promoção e a proteção dos direitos humanos é plenamente legítima e deve envolver governo e sociedade na tentativa de superação dos obstáculos ao pleno exercício daqueles direitos.

No meu período na Presidência da República, sempre coloquei o respeito à dignidade humana no centro das prioridades do governo. O diálogo franco e construtivo com organizações que se dedicam à observância dos direitos humanos tronou-se no Brasil prática corrente, num clima de transparência e cooperação.

Nossa legislação interna tem sido aperfeiçoada no sentido de buscar identificar os principais problemas e propor soluções adequadas, com vistas a ampliar o respeito dos direitos e garantias fundamentais, incorporando, também, os segmentos mais vulneráveis da sociedade.

O Brasil continuará apoiando o processo de reflexão sobre o sistema interamericano de direitos humanos e entende que a assinatura e ratificação da Convenção Americana de Direitos Humanos pelos países da região que ainda não o fizeram reveste-se de importância fundamental para assegurar a necessária abrangência e aplicabilidade ao instrumento básico de proteção dos direitos humanos no hemisfério.

Senhor Presidente.

Temos aqui hoje entre nós um dos paladinos dos direitos humanos no Brasil. Refiro-me ao ilustre deputado Hélio Bicudo. Como sabem os senhores, o deputado Bicudo é candidato a uma vagas na Comissão Interamericana de Direitos Humanos que serão preenchidas ao final de nossos trabalhos. A extensa folha de serviços prestados à causa dos direitos humanos e longa trajetória de lutas pela sua promoção e proteção conferem ao deputado Hélio Bicudo todos os títulos para integrar esse egrégio colegiado do Hemisfério.

 

Drogas

O problema das drogas, por sua própria complexidade e natureza global, exige tratamento integrado e equilibrado, baseado na cooperação internacional e com respeito à soberania nacional. As dimensões e implicações políticas do problema das drogas reclamam ação urgente de nossos países e intensificação de iniciativas concentradas no encaminhamento de soluções globais, que atendam igualmente os aspectos de redução do consumo e do controle da produção.

O Brasil tem desenvolvido esforços, nos planos interno e externo, no tratamento da questão do tráfico ilícito de drogas e crimes conexos.

Temos participado ativamente dos trabalhos da Comissão Interamericana para o Controle do Abuso de Drogas (CICAD), que privilegiamos como o foro regional competente para formulação de programas de cooperação em harmonia com as políticas nacionais sobre a matéria.

Senhor presidente,

Acreditamos que iniciativas conjugadas e concertadas entre nossas autoridades, como aquelas previstas no documento “Estratégia Antidrogas no Hemisfério”, constituem o único caminho capaz de combater de modo eficaz este mal que aflige nossos povos e nossas instituições. Ações isoladas e unilaterais não são condizentes com as boas práticas que historicamente tem presidido as relações entre nossos países.

 

Integração e livre comércio

A integração com todos os países do Hemisfério sempre foi objeto de mais alta prioridade ao longo de minha vida pública, por estar convencido ser esta uma pré-condição ao pleno desenvolvimento das nossas potencialidades.

No exercício da Presidência da República busquei realçar o perfil das Américas como área livre de tensões, voltada para a cooperação e o progresso, e decidida a integrar cada vez mais suas economias, suas culturas e seus destinos. Nesse período, o Brasil promoveu importantes iniciativas no sentido da integração regional.

A expressão mais viva desse esforço se revela nos progressos hoje observados no Mercado Comum do Sul (Mercosul), decerto também o produto mais acabado da consolidação das relações de confiança entre os Governos democráticos do Brasil e de seus parceiros do Cone Sul.

Mais adiante, em 1993, lançamos a idéia de uma Área de Livre Comércio Sul-Americana (ALCSA). Esta iniciativa, adotada como proposta comum do Mercosul, contribuiu certamente para estimular a aproximação das experiências integracionistas na América do Sul com os esquemas de livre comércio e integração de outras áreas do Hemisfério.

Nosso compromisso com o processo que se iniciou na Cúpula das Américas de Miami continua firme. Temos participado ativamente das reuniões de seguimento instituídas naquela reunião. Temos mostrado nossa determinação de contribuir positiva e construtivamente para tornar realidade o sonho de um Hemisfério livre de barreiras comerciais ou quaisquer outras limitações do acesso ao mercados de bens e serviços nos países da região. A conformação da Área de Livre Comércio nas Américas (Alca) é um objetivo cada vez mais próximo de atingir, porquanto a consolidação democrática, e os processos sustentados de desenvolvimento e estabilização monetária alcançados na região criaram as condições propícias necessárias.

Há pouco dias, na cidade brasileira de Belo Horizonte, demos um passo importante, num ambiente de consenso, para levar adiante o processo de integração regional para a conformação futura da Alca.

O Brasil manteve seus propósitos de avançar de forma contínua, gradual e realista, tendo em vista manter-se o equilíbrio com as iniciativas adotadas no plano interno.

Essa visão foi claramente expressa pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, na reunião ministerial de Belo Horizonte, ao afirmar que: “Não devemos ter pressa para avançar. A ALCA que não deve constituir uma vitória de curto prazo daqueles que buscam negócios imediatos”.

 

Estabilização Econômica

O Brasil logrou alcançar a estabilização monetária com resultados positivos no campo social. Mas este fato deve ser entendido como apenas uma etapa no caminho de um futuro mais promissor, não podendo jamais constituir um fim em si mesmo. É necessário estimular o desenvolvimento, a distribuição da renda, o avanço dos segmentos menos favorecidos da população.

Já tive a oportunidade de afirmar que afirmar que o progresso no campo econômico há de ter como beneficiários principais as camadas sociais menos favorecidos, que por força das circunstâncias históricas tem estado excluídos dos frutos da civilização.

 

Cuba

A situação de Cuba na comunidade hemisférica continua a ser um tema objeto de nossa permanente preocupação. Temos a convicção de que as evidências de progresso institucional têm de ser aprofundados e estimulados.

Reiteramos nosso entendimento de que o isolamento econômico e político não nos parece a melhor maneira de contribuir para que se criem condições que permitam a plena reintegração ao sistema interamericano daquele país, com o qual mantemos relacionamento amistoso e temos importantes identidades culturais.

Na mesma linha, o Brasil reafirma seus apoio à Declaração do Grupo do Rio a propósito da chamada “Lei Helms-Burton”. Entendemos que os efeitos e aplicação extraterritoriais daquela disposição interna norte-americana constituem violação das normas de direito internacional e das regras do livre comércio e tampouco contribuem para a reafirmação dos princípios democráticos do continente e do respeito dos direitos humanos.

Somos de opinião igualmente - conforme já tive ocasião de afirmar em nossos trabalhos no Conselho Permanente - de que a não observância daquelas normas introduz elementos de insegurança, intranqüilidade e imprevisibilidade no desenvolvimento das relações entre os países.

A OEA como centro de ações hemisféricas

A leitura rápida da agenda de nossos trabalhos - como já referi - revela a densidade dos assuntos de interesse de nossos países. Trata-se de um repertório de temas que refletem a importância e a responsabilidade do papel desta Organização no processo de preparação, negociação e implementação de iniciativas no plano hemisférico que recaiam em seu campo de competência temática.

Reitero aqui nossa opinião de que cabe à OEA, o principal organismo regional de concentração entre os países do Hemisfério, o papel central para o tratamento de temas relacionados com as prioridades e os desafios a serem enfrentados pelos nossos países, no presente e no futuro.

Diante disso, senhor presidente, renovo a proposta - já formulada perante o Conselho Permanente - no sentido de que se dê início a um processo de reflexão e intercâmbio de idéias sobre a conveniência de assegurarmos a esta Organização, na condução e discussão de temas que, por sua natureza, estão no próprio cerne do processo de desenvolvimento de nossos povos, uma maior responsabilidade.

Senhor presidente,

Mais do que nunca, temos o dever de analisar e compreender o presente para prepararmos a construção do futuro num mundo que se transforma celeremente. Os princípios e valores que norteiam a atuação da Organização dos Estados Americanos são conquistas irreversíveis do espírito humano. A natureza das mudanças que vivenciamos, o curso dos acontecimentos neste final de século, os problemas que se avizinham estão a demandar a intensificação da cooperação multilateral hemisférica por ser esta a única via capaz de inserir-nos pacificamente no contexto emergente. Os desafios contemporâneos, na América e no mundo, são essencialmente transnacionais, demandando respostas coletivas, concertadas e harmônicas.

A crescente interdependência econômica, a globalização da comunicação social sob todas as suas formas, a imperiosa necessidade de integrarmos vastos contingentes populacionais ao processo de produção e consumo, exigem políticas públicas específicas, voltadas para a promoção do homem e o pleno desenvolvimento das suas potencialidades. Os mecanismos tradicionais de cooperação já não respondem às necessidades do momento porque os impasses enfrentados são, qualitativa e quantitativamente, diversos.

A preservação da paz - que é um dos pilares em que se assenta a Organização dos Estados Americanos - não mais se identifica com a simples manutenção de um estado de não beligerância. É preciso enfrentar a questão dos desequilíbrios sociais e regionais que se agravam dia a dia, tornando cada vez mais precária a estabilidade das relações humanas. Políticas corretivas precisam ser adotadas para evitar o progressivo distanciamento entre excluídos e partícipes da evolução científica, tecnológica e cultural. A competitividade, quando levada a extremos e num ambiente de total ausência de regulamentação, gera distorções e fraturas que rapidamente se transformam em motivo de enfrentamento. A segurança comum exige, sobretudo, medidas preventivas capazes de eliminar os focos de tensão. A ordem internacional precisa coibir e sancionar toda sorte de medida unilateral que atente contra a igualdade soberana dos Estados, que imponha o interesse de uns em detrimento de outros, que dificulte ou impeça o acesso dos demais ao saber e aos frutos do progresso. A solidariedade na superação das iniquidades é uma obrigação que a todos se impõe.

A defesa da democracia - que ´e outro fundamento desta entidade - não mais pode se limitar à condenação das formas autoritárias e totalitárias de conquista do poder. Se desejamos assegurar o exercício da autêntica representatividade política em tudo que diga respeito ao interesse coletivo, à promoção do bem comum, é preciso caminhar no sentido de reformas que garantam às autoridades públicas meios eficazes para implementar as suas decisões, as suas prioridades. O poder que escapa a qualquer sanção, a qualquer controle, a qualquer tipo de disciplina, e que só se movimenta na busca do interesse setorial, é cada vez maior. Trata-se de um poder anônimo, e por isto mesmo insuscetível de qualquer responsabilização perante as sociedades. É um poder que transcende as fronteiras de todos os países, que se estrutura e organiza globalmente, e que poderá submeter as instituições democráticas aos seus desídeos particulares. Seria um equívoco imaginarmos que a concorrência no plano econômico seja capaz, por si só, de criar um clima de estabilidade e prosperidade geral. A ausência de regras, de autoridades investidas de efetivo poder para zelar pelo bem da coletividade, pode ensejar novas ameaças à democracia e à liberdade do cidadão.

O crescimento sustentado e equilibrado - única fórmula capaz de criar e disseminar a riqueza de forma eqüitativa - exige a preservação de núcleos estratégicos aptos a fomentar e direcionar a atividade produtiva no sentido  do atendimento das necessidades essenciais do ser humano, do seu pleno desenvolvimento e do fortalecimento da solidariedade social.

Em que pese a diversidade cultural e a multiplicidade dos estágios de desenvolvimento, todos os países enfrentam, basicamente, os mesmos problemas: desemprego, educação, saúde, seguridade e exclusão sociais, meio ambiente e violência. O fenômeno do inter-relacionamento, que marca o nosso tempo, alcança também as causas estruturais ensejadoras dos impasses. A concentração política e diplomática que este foro enseja certamente contribuirá para a solução dos problemas que nos afetam, bem como para a construção de um mundo melhor para as gerações futuras.

Inspirados nos mesmos nobres ideais que moveram os nossos antepassados a lutarem pela conquista de pátrias livres e independentes, somemos os nossos esforços pela causa e aspiração comum de progresso com estabilidade e justiça.

4.2. Hélio Bicudo fala à OEA

 

Hélio Bicudo 3

 

“Uma dissertação sobre violência, nos seus vários prismas, deve começar, necessariamente, pela abordagem do conceito de cidadania. A cidadania - conjunto de direitos e deveres da pessoa - não é uma concessão do Estado, mas uma conquista do povo. Os direitos nascem com o homem, que busca, no que poderíamos denominar “flecha da evolução”, o reconhecimento desses direitos pelo poder do Estado e, assim, os concretiza.

A consolidação da cidadania vem sendo obtida no decorrer de muitas lutas, que desaguaram, do século XIII, na Magna Carta e nos bills (declarações) ingleses. No século XVIII, os direitos do homem ainda incipientemente inscritos, apareceram ratificados nas declarações de Virgínia e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, elaborada na Revolução Francesa. Alcançava-se, assim, a expressão da personalidade no que ela tem de próprio e inalienável para a realização do destino humano.

A partir daí, esses direitos passaram a ser inscritos nas cartas políticas. No entanto, a trajetória da humanidade demonstra que aos povos não bastam, para seu aperfeiçoamento, os direitos e deveres inscritos em seus códigos de conduta. A exigência de novos direitos e deveres surge à medida que o homem se insere na comunidade - que não é estática, mas cada vez mais dinâmica - e se qualifica como cidadão.

 

 

 


3 Pronunciamento realizado em 6 de setembro de 1994,  diante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, quando Hélio Pereira Bicudo era presidente do Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo. A denúncia de violência no Brasil, em especial a praticada contra crianças e jovens, serviu de subsídio para o relatório da CIDH sobre os direitos humanos no país.

Na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), esses direitos foram esmagados pelas ditaduras instaladas na Alemanha, Itália e Japão. Então, ainda durante a conflagração, firmou-se a Carta do Atlântico, que contemplava três liberdades consideradas fundamentais: a liberdade de crença religiosa e a liberdade de não ter medo da polícia. Com o fim da guerra, os países vencedores reuniram-se em São Francisco, nos Estados Unidos, e aprovaram, em 1948, a Declaração dos Direitos da Pessoa Humana. Nascia assim um dos grandes monumentos que demarca os avanços na conquista dos direitos individuais e coletivos.

No Brasil, esses direitos e garantias, tal qual formulados pelas revoluções americana e francesa, apareceram nas constituições do Império e da República. Sua ampliação - já considerando o homem real - surgiu com a Constituição de 1934, seguida fielmente pela Constituição de 1946.

A Constituição em vigor, promulgada em 1988, deu ênfase especial ao capítulo dos direitos e garantias individuais e sociais. Deslocou-o das últimas páginas das antigas leis maiores para o seu pórtico, inscrevendo seus dispositivos nos artigos 5º e 7º. E fez mais: em seu Artigo 3º, esclareceu que constituem objetivos fundamentais da República:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

De fato, os direitos e garantias individuais encontram-se grafados de modo amplo e abrangente. Mas é preciso perguntar: isso basta para que se afirme que conquistamos, realmente, a cidadania? A violência institucional parece desmentir essa hipótese. Trata-se de uma violência abrangente, que atinge a todos, homens, mulheres, crianças e jovens. Quanto a estes, as conclusões de Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a apurar a eliminação de crianças e jovens desnudam um quadro perverso em todo o Brasil: temos, na verdade, uma política voltada para extermínio de nossas crianças e jovens. A rejeição marca a criança brasileira desde a concepção. Quando consegue nascer, ela é recebida por um mundo hostil que a elimina. E se isso não acontece, acaba sendo lançada às ruas, onde irá conhecer apenas as fachada das casas, não desvendando nunca o seu interior. Para completar o cenário, há a violência da polícia e dos grupos parapoliciais, as prisões ilegais, a tortura, os assassinatos nas ruas. Tudo isso evidencia até que ponto podemos falar, hoje, em cidadania.

A Polícia de São Paulo confessou a eliminação, em 1990, de mais de mil pessoas, e dentre estas muitas crianças e jovens.  Esse número, fornecido por entidades oficiais, continuou a crescer nos dois anos seguintes, chegando a mais de mil e quinhentas vítimas em 1992. Os dados são oficiais, constatados nos Institutos Médico Legais. A CPI sobre as crianças apurou que os órgãos de segurança assassinam, pelo menos, três crianças por dia. Isso acontece em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Belo Horizonte.

Enquanto ocorre essa chacina, o povo, manipulado pelos meios de comunicação, instila seu ódio contra os meninos e meninas de rua, condenando-os a um só destino: a morte. Ou, então, debate a outorga do voto facultativo aos dezesseis anos ou da carteira de motorista para jovens da mesma idade, como se tais medidas constituíssem fatores de cidadania. Ora, essas duas faculdades contemplam apenas determinados setores da população, que representam não mais de 5% do seu total. E para solucionar o problema da violência, a sociedade, já exausta e embrutecida, propõe ainda mais violência, morte, penas mais longas e mais duras, novos tipos penais, a diminuição da idade de responsabilidade criminal e, por último a privatização das prisões.

Pela Constituição brasileira, a responsabilidade penal começa aos dezoito anos. Entretanto, numa visão equivocada da problemática da violência, quer-se fixá-la em catorze ou dezesseis anos, diante da alegação de que a mesma Constituição já atribui o voto facultativo aos jovens de dezesseis anos, idade também pretendida para a direção de veículos automotores.

Ora, convém reafirmar, a cidadania só se constrói dentro do Estado de Direito democrático, respeitando-se as instituições estabelecidas pelo povo nas suas constituições. E não é isso o que pretendem os segmentos mais conservadores da sociedade brasileira, quando tentam desfigurar o significado da representação política. A cidadania somente existe e cresce na medida em que os representantes do povo verdadeiramente o representem.

A primeira tentativa para concretizar esse desiderato ocorreu durante a ditadura militar, quando os menores de 16 anos foram considerados sujeitos ativos nos chamados “delitos contra a segurança nacional” (Lei 6.620, de 17 de dezembro de 1978). A idéia ficou no ar e reapareceu pelas mãos daqueles que vêm na pena tão-somente uma forma de exclusão social. Se a luta dos meninos nas ruas, como um fator de seleção natural, transformaram aqueles que nunca brincaram em elementos potencialmente perigosos para a manutenção das regras estabelecidas de convivência social, não há porque, argumentam, considerá-los penalmente inimputáveis. Esquecem-se, em suas considerações, do descaso dos órgãos estatais responsáveis pela aplicação da política, definida legalmente, de atendimento à criança e ao jovem infrator. Em vez de defenderem uma atuação que proteja a criança ou o adolescente jogados à marginalidade por uma ordem social injusta, enfatizam a necessidade de uma repressão sem limites. Nestas condições, fundações estatais chamadas do bem-estar do menor, em lugar de promoverem o “bem-estar do menor”, funcionam como órgãos de contenção, onde prevalecem os maus-tratos e o desconhecimento dos direitos hoje elencados no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Se o jovem de dezesseis anos já vota e logo dirigirá veículos automotores, conclui-se que ele não deve escapar da responsabilidade penal. Isso é totalmente falso. Argumenta-se, ao escolher os dirigentes da República, dos estados e dos municípios, o menor sujeita-se a todas as regras insertas na legislação eleitoral, inclusive as de natureza penal. Ou, dirigindo um carro, ele pode envolver-se em acidentes que danifiquem o patrimônio e a integridade física ou a vida de terceiros. Então, por que não considerá-lo sujeito ativo para os efeitos penais?

Ora, tanto o voto facultativo como a condução de automóveis são direitos que se outorgam aos jovens das classes mais favorecidas. Conforme observa dom Luciano Mendes de Almeida, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, na luta diária pela sobrevivência, uma menina ou um menino de rua não estão interessados em qualificar-se como crescer nos dois anos seguintes, chegando a mais de mil e quinhentas vítimas em 1992. Os dados são oficiais, constatados nos Institutos Médico Legais. A CPI sobre as crianças apurou que os órgãos de segurança assassinam, pelo menos, três crianças por dia. Isso acontece em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Belo Horizonte.

Enquanto ocorre essa chacina, o povo, manipulado pelos meios de comunicação, instila seu ódio contra os meninos e meninas de rua, condenando-os a um só destino: a morte. Ou, então, debate a outorga do voto facultativo aos dezesseis anos ou da carteira de motorista para jovens da mesma idade, como se tais medidas constituíssem fatores de cidadania. Ora, essas duas faculdades contemplam apenas determinados setores da população, que representam não mais de 5% do seu total. E para solucionar o problema da violência, a sociedade, já exausta e embrutecida, propõe ainda mais violência, morte, penas mais longas e mais duras, novos tipos penais, a diminuição da idade de responsabilidade criminal e, por último a privatização das prisões.

Pela Constituição brasileira, a responsabilidade penal começa aos dezoito anos. Entretanto, numa visão equivocada da problemática da violência, quer-se fixá-la em catorze ou dezesseis anos, diante da alegação de que a mesma Constituição já atribui o voto facultativo aos jovens de dezesseis anos, idade também pretendida para a direção de veículos automotores.

Ora, convém reafirmar, a cidadania só se constrói dentro do Estado de Direito democrático, respeitando-se as instituições estabelecidas pelo povo nas suas constituições. E não é isso o que pretendem os segmentos mais conservadores da sociedade brasileira, quando tentam desfigurar o significado da representação política. A cidadania somente existe e cresce na medida em que os representantes do povo verdadeiramente o representem.

A primeira tentativa para concretizar esse desiderato ocorreu durante a ditadura militar, quando os menores de 16 anos foram considerados sujeitos ativos nos chamados “delitos contra a segurança nacional” (Lei 6.620, de 17 de dezembro de 1978). A idéia ficou no ar e reapareceu pelas mãos daqueles que vêm na pena tão-somente uma forma de exclusão social. Se a luta dos meninos nas ruas, como um fator de seleção natural, transformaram aqueles que nunca brincaram em elementos potencialmente perigosos para a manutenção das regras estabelecidas de convivência social, não há porque, argumentam, considerá-los penalmente inimputáveis. Esquecem-se, em suas considerações, do descaso dos órgãos estatais responsáveis pela aplicação da política, definida legalmente, de atendimento à criança e ao jovem infrator. Em vez de defenderem uma atuação que proteja a criança ou o adolescente jogados à marginalidade por uma ordem social injusta, enfatizam a necessidade de uma repressão sem limites. Nestas condições, fundações estatais chamadas do bem-estar do menor, em lugar de promoverem o “bem-estar do menor”, funcionam como órgãos de contenção, onde prevalecem os maus-tratos e o desconhecimento dos direitos hoje elencados no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Se o jovem de dezesseis anos já vota e logo dirigirá veículos automotores, conclui-se que ele não deve escapar da responsabilidade penal. Isso é totalmente falso. Argumenta-se, ao escolher os dirigentes da República, dos estados e dos municípios, o menor sujeita-se a todas as regras insertas na legislação eleitoral, inclusive as de natureza penal. Ou, dirigindo um carro, ele pode envolver-se em acidentes que danifiquem o patrimônio e a integridade física ou a vida de terceiros. Então, por que não considerá-lo sujeito ativo para os efeitos penais?

Ora, tanto o voto facultativo como a condução de automóveis são direitos que se outorgam aos jovens das classes mais favorecidas. Conforme observa dom Luciano Mendes de Almeida, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, na luta diária pela sobrevivência, uma menina ou um menino de rua não estão interessados em qualificar-se como eleitor e votar. E muito menos terão acesso a uma carteira de motorista, para exercer uma profissão no contexto do transporte de pessoas ou de mercadorias. Esses jovens vêem a vida, com a qual não contam, de outro prisma. Não conhecem a solidariedade, o amor, ou o aconchego da família.

E mais: as faculdades concedidas aos jovens dos estratos superiores da sociedade transformam-se numa verdadeira armadilha para os demais jovens, a grande maioria. As discriminações já existentes contra as meninas e meninos de rua tendem a agravar-se ainda mais. Os jovens infratores das famílias ricas conseguem escapar facilmente das malhas policiais ou dos procedimentos judiciais. Entretanto, os meninos e meninas de rua continuarão a ser penalizados, não porque desejamos abrir-lhes possibilidades de integração à comunidade, mas simplesmente porque não queremos vê-los nas ruas. Desejamos, isto sim, afastá-los do nosso convívio.

Além disso, falar em responsabilidade criminal aos catorze ou dezesseis anos eqüivale a ignorar a realidade brasileira. Segundo dados do IBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 1990 tínhamos 60 milhões de crianças e adolescentes, dos quais 32 milhões (53,5%) viviam em famílias cuja renda per capita não ultrapassava meio salário mínimo.

Aproximadamente quatro milhões de crianças em idade escolar não freqüentavam a escola, e 18 milhões de pessoas com mais de quinze anos eram analfabetas. Esses indicadores, por si só perversos, ainda não evidenciam os problemas das crianças de rua, que se avolumam nas grandes cidades, e os dos jovens infratores que, apesar de numericamente insignificantes, assumem proporções alarmantes nas rebeliões no sistema de contenção.

A falência das políticas sociais públicas necessárias ao atendimento da população na faixa etária até dezoito anos é um dado da realidade, expresso nos índices de mortalidade infantil, de evasão escolar, de desnutrição, fome e miséria. Pesquisa desenvolvida pela professora Myriam Mesquita Pugliese de Castro, do Núcleo de Estudos sobre a Violência da USP, revelou um cenário contristador. De acordo com os registros do IML-SP, em 1990 ocorreram, na capital paulista, 994 homicídios de crianças e jovens, sobretudo na faixa etária de 15-17 anos - uma média de 2,7 assassinatos/dia. Esse tipo de quadro também demonstra a intencionalidade de matar por parte dos agentes agressores (10,9% identificados como policiais, segundo a mesma pesquisa) e a exacerbação da violência (criança no Rio de Janeiro morta com 38 tiros na cabeça, conforme divulgou a imprensa carioca).

Enfim, estamos diante da banalização da morte. E tudo decorrência da não-adoção de uma política social voltada para a erradicação da violência pelo tratamento adequado de suas causas (injustiças sociais, miséria) e vítimas.

No lugar da erradicação da violência pela violência, é preciso exigir a erradicação da violência pela construção da cidadania. E isso implica, sobretudo, em alimentar, educar, dar acesso a recursos médicos e prover os pais de salários dignos, que viabilizem a moradia sem promiscuidade e impeçam o abandono das crianças.

Depois das generalidades expostas, vamos particularizar a realidade.

As meninas e meninos que estão nas ruas podem ser classificados como jovens e crianças, indiferentemente. São encontrados às vezes no mesmo grupo desde crianças de três ou quatro anos até jovens perto da maioridade legal. E muitos comportamentos que não seriam esperados nas crianças são observados, como a capacidade de organizar-se no trabalho ou a facilidade de manipularem dinheiro. Por outro lado, as mesmas “crianças maduras” manifestam, muitas vezes, condutas infantis. Em pesquisa da Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, conta-se a história de um menino de 12 anos que vivia nas ruas da cidade, e que dizia que ia “tirar férias” e questionado sobre o que faria nesse período, respondeu que passaria o tempo todo brincando de empinar papagaio, passando a discorrer longa e entusiasmadamente sobre o que faria e o prazer que teria.

É até os dezesseis anos que se conta o maior número de crianças nas ruas. Os bebês, desde recém-nascidos até cerca de três anos de idade são encontrados em grande quantidade nas ruas e nos grupos que esmolam, os quais podem ser compostos por crianças e adolescentes, mas mais freqüentemente são formados por crianças e adultos, principalmente mulheres.

Na faixa além dos dezesseis anos a freqüência diminui, provavelmente em função de dois fatores básicos: com o aumento da idade aumenta o envolvimento de alguns desses menores com a delinqüência e, consequentemente, com a máquina de corrupção do crime adulto aliado às organizações de repressão. Estes jovens devem evitar “a circulação” excessiva, escondendo-se em “mocós” e já não exercendo as atividades típicas da rua para evitarem prisões ou retaliações que fazem parte da prática desse envolvimento. Por outro lado, a proximidade da maioridade obriga a busca de situações mais seguras e controláveis de ganho. Os menos envolvidos com a delinqüência tendem a procurar empregos regulares, pois a “carteira assinada” serve de defesa às abordagens da Polícia. Os excessivamente envolvidos passam para uma vida semi-clandestina.

No Brasil, ao invés de buscar-se uma política de atendimento da criança e do adolescente, tendo em vista o respeito pela sua dignidade, ou como hoje se diz, pelo reconhecimento de sua cidadania - e neste caso o Estatuto da Criança e do Adolescente, não permanecesse nas prateleiras das bibliotecas, seria contribuição importante no caminho da participação da sociedade no encaminhamento do problema - partiu-se para uma política de intimidação e de eliminação, ignorando-se as recomendações do UNICEF em seu relatório sobre a Situação Mundial da Infância 1991, que apontam, como único caminho, o surgimento de uma nova ética pela criança, circunstância capaz de manter o esforço para criar um mundo melhor para a criança na década de 1990.

Os números de crianças e adolescentes exterminados pela Polícia ou por forças para-militares sugere a institucionalização dessa política de eliminação. Em 1990 foram eliminadas em sete Estados (Sergipe 140, Pernambuco 127, Maranhão 7, Piauí 29, Espírito Santo 16, São Paulo 918 e Rio de Janeiro 492) 1.729 crianças e adolescentes. No primeiro trimestre de 1991 foram eliminadas em 10 Estados 408 crianças e adolescentes: Rio de Janeiro 181; Pernambuco 81; Bahia 34; Alagoas 29; São Paulo 28; Espírito Santo 27; Sergipe 12; Paraná 10; Paraíba 4; e Amapá 4.

Os totais são impressionantes: de 1988 a 1990 foram eliminadas 4.611 crianças e adolescentes.

Pesquisa do Centro de Documentação do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP), realizada em noticiário da imprensa do Rio de Janeiro (junho a agosto de 1990) revela que 75% das crianças e adolescentes assassinados, as quais foram identificadas, são negros. As mulheres representam 13% do total. A faixa etária que concentra maior número de assassinatos é a de 15 a 17 anos, representando 73% do total. É significativo também o resultado encontrado para as faixas inferiores. A de 10 a 14 anos encontra 15% do total, e a de 0 a 9 anos, 8% (4% dos casos não foram identificados).

O jornal “O Estado de S. Paulo” de abril de 1993, informa que o extermínio de menores cresceu 38% no Rio de Janeiro em 1992, onde foram eliminados 424 menores, aumento significativo em relação aos 306 em 1991.

O Governo dos Estados Unidos da América, em relatório sobre práticas de direitos humanos no Brasil, referente ao ano de 1993, assinalou que “cinco policiais militares foram indiciados por terem assassinado oito crianças de rua na Praça da Candelária no Rio, em 23 de julho. As estatísticas da polícia divulgadas após os assassinatos da Candelária indicaram que 328 menores haviam sido assassinados entre janeiro e junho, somente no Rio.”

Documento elaborado pelo Departamento de Estatística da Policia Federal do Brasil (Folha de S. Paulo, 14 de junho de 1991) afirma que em 1988 na cidade do Rio de Janeiro e adjacências foram assassinadas 294 crianças; em 1989, 445; e em 1990, 492, ou seja, 1,34 por dia. Na cidade de São Paulo, em 1988, houve 449 assassinatos de crianças; em 1989, 782; em 1990, 918, ou seja, 2,51 por dia. O mesmo documento diz que teria havido 4.600 assassinatos de crianças em todo o Brasil, no decorrer desses três últimos anos, o que dá uma média entre 4 e 5 por dia, mas entre 6 e 7 para o ano de 1990. Trata-se de um mínimo, porque esses números foram obtidos no Instituto de Medicina Legal e deles não constam os “desaparecidos”.

O Unicef patrocinou, recentemente, um estudo sobre as crianças e adolescentes na Bahia: o que está acontecendo?

Nesse estudo, os homicídios de crianças e adolescentes ocupam o terceiro lugar nos casos pesquisados nos Institutos Médico Legais, com 15% do total.

Os caminhos da morte são trilhados pelo contingente de crianças e adolescentes mais diretamente atingidos pela violência estrutural: o das classes populares, que viveu em desvantagens não só material como também afetiva, emocional e cognitiva. Viveu miseravelmente, mas contraditoriamente espera-se que estas crianças e adolescentes se tornem seres humanos.

Ressalte-se o fato da criança e do adolescente trilharem os caminhos da morte por necessidade financeira, revolta familiar, necessidade, cobiça, brincadeira, valentia, fuga da realidade. Estes são os fatores que conduzem às avenidas do roubo, ao tráfico e/ou ao uso de drogas; à prostituição; ao crime, dentre outras situações violentas de enfrentamento do cotidiano sem a perspectiva de alcançar a cidadania.

Nas ruas de Salvador, hoje com mais de 12 mil crianças, o que mais impressiona são as pequenas prostitutas - meninas entre 11 e 15 anos que ganham a vida usando o próprio corpo.

L., 15 anos, vem de Itabuna ganhar a vida em Salvador e acabou se especializando em atender marinheiros nos navios fundeados na Baía de Todos os Santos. Junto com amigas ela circula pela área do Mercado Modelo em busca da clientela estrangeira - “Eu gosto de dólares, aquelas notinhas verdes são o ouro, os navios são lindos por dentro, ganho 20 a 60 dólares. Dá pra ficar curtindo a semana toda”.

Mas não é só na Bahia. A prostituição infantil cresce no Brasil e já atinge mais de 500 mil meninas, envolvidas cada vez mais com drogas. Esse número expressa, com base em estimativa sobre a população brasileira em 1989 (147,4 milhões), a existência de uma menor prostituta entre cada 300 habitantes. Segundo cálculos do UNICEF, cerca de 2 milhões de jovens entre 10 a 15 anos estão prostituídas ou em vias de se prostituir no Brasil.

“Ana Vasconcelos, que, em Recife (PE), trabalha há vários anos com meninas prostitutas, tentando recuperá-las para o mercado de trabalho não apenas por tratamento psicológico, mas formando mão-de-obra especializada, montou uma instituição chamada “Casa de Passagem”, freqüentada por meninas prostitutas, algumas delas com 9 anos . Ali, elas se alimentam, aprendem ofícios e discutem seus problemas com psicólogas.

As garotas entrevistadas pelas psicólogas contam algo que é comum para as prostitutas em todo o país. Já foram estupradas - algumas delas dentro da própria casa pelo pai ou tio. Na prostituição se submetem aos mais variados tipos de crueldades. As entidades assistências que cuidam de prostitutas no Brasil têm registrados casos escabrosos de perversidade sexual. Ana Vasconcelos por exemplo, tem em sua instituição uma menina que foi estuprada pela primeira vez com três anos e teve, depois, de levar vários pontos para religar partes de seu corpo.

Uma dessas meninas chegou a fazer uma pergunta a Ana que a deixou desconcertada:

-”Será que não dá para nascer de novo?”

Por trás dessa pergunta está a percepção de que, “nessa vida”, as possibilidades estariam esgotadas.”

“...Quando começou a cuidar de meninas prostitutas em Recife, a psicóloga Ana Vasconcelos ficou intrigada ao ouvir uma expressão desconhecida empregada como sinônimo de aborto. De fato, é uma palavra estranha: “pezada”. Ela acompanhava a descontraída conversa entre duas meninas. Uma delas contou que há dias tinha feito um aborto e, enfim, estava livre da gravidez que lhe tirava clientes na rua:

_ Como tirou? - quis saber a menina que ouvia o relato.

_ Foi com pezada - respondeu.

Ana se aproximou, curiosa. E perguntou:

_ O que é pezada?

A psicóloga ficou estarrecida com a explicação. “Pezada” era levar um chute forte na barriga. Era um meio, segundo a menina, fácil e certeiro de se fazer um aborto. E, ainda por cima, mais barato - não necessitava de médico ou parteira. Bastava a ajuda de alguém que se dispusesse a dar a “pezada”, o que não era difícil...” (Revista Vamos CDDH - Jan/Jun-91 - João Pessoa, PB).

“A Folha de S. Paulo (26.10.90), em matéria assinada por Marcos Uchôa, publicou depoimento de menores prostitutas entrevistadas nas ruas de São Paulo que evidenciam a situação dessas crianças. Vejamos:

T.S.C., 17 anos, é uma das prostitutas que atuam na região do Brás (Zona Leste de São Paulo). Seu local de trabalho restringe-se a vielas e becos localizados ao redor da estação de trem. “Não temos vez no “paredão” da estação. Lá, a oferta é maior”, afirma. O “paredão” começa a ser freqüentado por volta das 19 horas e serve de ponto para as prostitutas adultas ou para as que estão há mais tempo no ramo. “Como somos novas, não podemos decidir nosso espaço”.

Seus clientes são atendidos há três anos em pequenos hotéis da região. Isso significa que começou a exercer a profissão aos 14 anos.

Ainda no Nordeste, M.A. recebe cerca de US$ 100,00 por mês. Cobra US$ 5,00 por hora, preço que inclui, segundo ela, uma camisinha. Diz que “dependendo da criatividade” do interessado, o programa pode sair por US$ 10,00 a hora. “Definimos o preço de acordo com a cara do freguês. Ultimamente tenho trabalhado pouco”, disse. Ela trabalha cerca de 12 horas por dia.” (Revista Vamos CDDH - Jan/Jun-91 - João Pessoa, PB).

De acordo com pesquisas, uma das principais causas da entrada na prostituição é a gravidez precoce: mais de um milhão de mulheres menores de 19 anos são mães. Haveria 500 mil meninas de rua também suscetíveis, pela necessidade de sobrevivência, a ingressar na prostituição.

Vincula-se o aumento da prostituição infantil ao comércio de narcóticos. Acredita-se que cresce o número de adolescentes que fazem uso “abusivo” de drogas, e a venda do corpo passa a ser um meio de manter o vício.

Na verdade, as meninas e meninos de rua vivem numa mistura de vida onde as experiências infantis, juvenis e adultas se superpõem no mesmo momento e sempre de forma drástica: à beira da morte; sofrendo o medo; atacando e sendo atacado.

Vivem um quotidiano que os impede de projetar expectativas amplas para si e para as pessoas com quem se ligam. Seus anseios, como toda sua estrutura de vida, são referidos ao que pode ser obtido imediatamente: o dinheiro para “descolar uma beca nova” (roupa nova); a maconha, cola ou droga que propicie a sensação de alegria; uma noite no Play Center (parque de diversões existente em São Paulo) para aliviar a tensão depois do assalto; um “carrão pra conseguir umas menininhas”.

As expectativas para além do momento presente não são elaboradas porque não há segurança de se passar deste para o momento futuro, uma vez que não possuem nenhum controle sobre as condições que vivenciam.

O Unicef, ao estudar a situação mundial da infância (relatório de 1993), destacou, no Brasil, o movimento em prol das crianças, o que já se constitui numa esperança.

Assim se posiciona o relatório: “O assassinato dos meninos e meninas de rua no Brasil foi alvo de justa condenação mundial. Menos conhecidos, porém, são os esforços de milhares de pessoas e organizações no Brasil que trabalham para criar o movimento em favor dos direitos da criança.

Sob duas décadas de ditadura, a própria lei tornou-se um instrumento de opressão para a criança brasileira. Milhares delas foram mandadas para rígidas instituições correcionais, simplesmente por serem pobres e abandonadas. Essas crianças não tinham sequer direitos legais, e o abuso por parte da polícia e de outras autoridades tornou-se norma generalizada.

O empobrecimento cada vez maior dos trabalhadores - o salário mínimo caiu de US$ 98,87 em 1950, para US$ 48,46 em 1980, estando hoje ao nível médio anual de US $ 50 ; o produto interno caiu de 9,2, em, 1980, para 0,9 em 1991, sendo que em 1990 chegou a 4,4 - e, portanto, o agravamento da questão social, num país que se classifica entre as dez maiores economias do mundo, foram, ao lado da falta de liberdade política, estimuladores da participação da sociedade civil. Por paradoxal que possa parecer, os movimentos sociais, durante vinte anos de ditadura militar, abriram espaços e se fortaleceram nas lutas por habitação, transporte, educação e “menor”.

Com o retorno da democracia, em 1985, as mesmas leis e instituições permaneceram em vigor, e muitas atitudes e práticas continuaram a prevalecer no sistema judiciário, na polícia e nas grandes e superlotadas instituições. Mas, na esteira daqueles movimentos foi possível, ao menos, lançar campanhas para modificar esta situação. E, no mesmo ano em que foram realizadas eleições diretas, 200 organizações não-governamentais (ONGs) que trabalham para ajudar crianças de rua reuniram-se para criar o movimento em favor dos meninos e meninas de rua.

A tarefa primordial do novo movimento foi resgatar o conceito de direito da criança para a sociedade brasileira e suas instituições. A elaboração da nova Constituição do país ofereceu uma oportunidade perfeita. Com o apoio da Igreja Católica, dos meios de comunicação e das áreas médica e legal, o movimento em favor dos direitos da criança lançou uma campanha nacional que, nos últimos seis meses de 1986, apresentou mais de 3 mil artigos em revistas e jornais e 72 programas de televisão sobre os direitos da criança. Em maio de 1987, o Presidente da Assembléia Constituinte recebeu uma petição assinada por 1,3 milhão de brasileiros que apoiavam a inclusão dos direitos da criança na nova Constituição. Era o início do movimento em favor dos direitos da criança.

Mudanças constitucionais foram realizadas. Esse processo, porém, implicou mudanças nas leis e na política. Novamente com o apoio da Igreja, dos meios de comunicação, de juízes favoráveis às reformas e de funcionários públicos, uma campanha começou a substituir a legislação repressiva pelo novo Estatuto da Criança e do Adolescente. Sob a nova lei, o poder dos tribunais com relação à privação da liberdade da criança foi limitado aos casos de transgressão da lei. Sempre que possível, as crianças abandonadas deveriam ser restituídas às suas famílias. Caso contrário, deveriam ser colocadas sob os cuidados de instituições tão pequenas e semelhantes à família quanto possível. As crianças sob os cuidados dessas instituições freqüentariam normalmente a escola, fazendo parte integrante da comunidade.

Mais uma vez, milhares de indivíduos e organizações mobilizaram-se em apoio à nova lei, que em 1990 foi aprovada pelo Congresso e ratificada, sem modificações, pelo Presidente.

Um longo caminho ainda deverá ser percorrido até que as providências adotadas em favor dos direitos da criança no Brasil possam ser consideradas satisfatórias. Entretanto, as mudanças constitucionais e legais já realizadas são a base fundamental para o progresso. Correm, entretanto, o risco de desaparecerem na voragem da chamada “revisão constitucional”. As instituições para crianças começam a oferecer treinamento e a viabilizar oportunidades que revertam em rendimentos. Muitos estados instalaram serviços telefônicos do tipo SOS, e as ONGs criaram, também, centros de defesa  da criança e do adolescente, geralmente com funcionários voluntários. Quase todos os estados e muitos municípios têm atualmente um conselho de direitos da criança, no qual as ONGs e o governo têm representação paritária. Atualmente, o abuso praticado contra a criança já não é aceito de maneira passiva.

Sob a nova legislação, os problemas das crianças que não cometeram uma transgressão específica da lei já não são tratados pelo sistema judiciário, mas pelos conselhos de defesa comunitários. E desde o final de 1991, uma ampla aliança nacional chamada “Pacto pela Infância”, incluindo representantes do governo, da Igreja, do meio empresarial, dos sindicatos, dos meios de comunicação e dos movimentos sociais, tem atuado como vigilante dos direitos da criança e da implementação da nova legislação”.

Essas conquistas, em si importantes, não são porém suficientes para garantir o padrão necessário de proteção social que a conjuntura recessiva do país impõe.

No Brasil, se de um lado, como se ressaltou, procura-se viabilizar uma política de atendimento à criança e ao jovem, de outro, as políticas de ajuste econômico se constituíram em fator de maior miséria e, por que não dizer, de verdadeiro genocídio infantil. Aliás, poderíamos aqui repetir a pergunta feita pelo ex-presidente Julius Neyerere: “devemos matar nossas crianças de fome para pagar nossas dívidas?”

Publicação do UNICEF, correspondente à situação mundial da infância em 1991, assinala que “nos países em desenvolvimento, as políticas de ajuste poderiam ser planejadas de modo a que os recursos para o setor social não sofressem cortes profundos.

Essa necessidade, segundo se afirma, está sendo amplamente reconhecida e foi expressamente endossada tanto pelo Banco Mundial como pelo FMI.

No Brasil, os planos de estabilização monetária foram nefastos para o setor social e, sobretudo, para a vida de suas crianças e jovens. Para tanto constatar, basta que se tenha em vista os índices da mortalidade infantil (embora se verifique uma queda nos índices, passando de 75,0 em 1980 para 45,0 óbitos infantis por 1.000 nascidos vivos, em 1989. Esta taxa permanece bastante alta quando comparada com a de outros países como Cuba (14,0), EUA (11,0) ou Japão (5,2). Acrescente-se, todavia, que as diferenças regionais e sócio-econômicas, no Brasil, são extremamente acentuadas. Assim, em 1989, a taxa de mortalidade infantil variava de 33% na região Sudeste para 75% na região Nordeste. No mesmo ano, sua incidência entre famílias com renda per capita de até 1 salário mínimo era de 75,2%, ao passo que, entre famílias com renda per capita superior a 1 salário mínimo, correspondia a 33,3%), da baixa escolaridade (em 1990 contávamos com 20,2 milhões de analfabetos com mais de 10 anos ou mais de idade) e da falta de atendimento à saúde.

No último Plano, que acaba de ser editado, tem-se como pressuposto indispensável, a criação de um Fundo Social de Emergência, para cuja composição - o que é pelo menos curioso - retiraram-se verbas originalmente concedidas à educação, saúde e moradia...

Se o diagnóstico existiu por parte do Banco Mundial e do FMI, os agentes financiadores externos limitaram-se a constatações, mas não adotaram medidas, sequer, para compensar os efeitos maléficos das políticas de ajuste, e muito menos para implementar medidas objetivando proteger a saúde e a educação da população mais pobre e mais vulnerável.

Na linha de pensamento de que as condições de vida da infância e juventude refletem as dos adultos, convém, contudo, lembrar que somente depois de 42 anos da promulgação da Carta dos Direitos Humanos em 1948, é que surgiu a “declaração mundial sobre a sobrevivência, a proteção e o desenvolvimento da criança”, por ocasião do Encontro Mundial de Cúpula pela Criança, realizado em New York, em 30 de setembro de 1990.

Essa declaração englobou um Plano de Ação a ser implementado até o ano 2.000, no qual se ressalta o papel da mulher e da família, no contexto da meta a ser alcançada, do bem-estar das crianças e adolescentes.

Impõe-se, portanto, na forma proposta, que todos os esforços devem ser feitos para que a criança não seja separada de sua mãe e de sua família. Quando esse afastamento ocorrer por motivos de força maior ou em função do interesse superior da criança, é necessário que se tomem providências para que ela receba atenção familiar alternativa apropriada, ou seja colocada em alguma instituição, desde que se leve em conta a importância de permanecer em seu próprio meio cultural. Assim, os grupos familiares, os parentes e as instituições comunitárias devem receber apoio para poderem suprir as necessidades das crianças orfãs, refugiadas ou abandonadas (nºs. 15 a 19).

O Estado brasileiro, como se viu, é um péssimo exemplo no que respeita ao tratamento que se dispensa à criança e ao adolescente, não tendo demonstrado efetiva vontade política de diminuir, nessa área, os índices de violência.

Na questão do extermínio de menores não existem inocentes, seja no Estado ou na sociedade. De algum modo todos nós contribuímos, ainda que por omissão, para a perpetuação desse genocídio continuado e ignóbil.

A sociedade brasileira parece ter perdido a capacidade de se indignar com as mortes de crianças e adolescentes. Se é verdade que durante a ditadura militar se protestava contra a tortura que atingia preferencialmente a classe média e rica, hoje se silencia diante das mortes de crianças e jovens, talvez porque pertençam aos bolsões de despossuídos que não tem vez.

É certo que já se assiste a uma reação, ainda tímida, da sociedade como se acentuou, através das entidades de direitos humanos - e a Igreja tem tido papel relevante nesse setor - que procuram empolgar representações outras da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados e o Ministério Público para a tarefa comum da construção de uma vida digna para as crianças brasileiras..

Esse quadro precisa, para que possa ser revertido, de maiores investimentos na área social; da instituição de uma nova polícia democrática, preocupada com a segurança das pessoas e não com a segurança do Estado; de uma nova atitude do Ministério Público e da Justiça, para que atuem na devida apuração e punição da violência contra a criança e o jovem.

Como se vê, temos tudo, praticamente, por fazer e somente o levedo democrático pode apontar para a construção de uma sociedade justa e solidária. Na minha visão não se poderá alcançar esse ideal, com a tremenda concentração de renda inexistente no Brasil, lançando nas fronteiras da miséria cerca de 60 milhões de pessoas num total de 150 milhões. Enfim, esse problema que não será resolvido sem que se adotem medidas para uma efetiva reforma agrária e para a instituição de uma política salarial capaz de atender às necessidades de moradia, transporte, saúde e educação da classe trabalhadora, isto é, sem que caminhemos para uma política de real distribuição de renda.

Para encerrar estas palavras, permito-me ler uma poesia que me ofereceu um menino de rua, um retrato de um país violento, sem maquiagem: ]

 

 

“Os camelôs do amanhã”

(de um menino de rua)

 

Os tempos mudaram

na vida do trabalhador

que a cada dia vive a batalha de sobreviver

entre a fome e a vontade de comer...

Os anos passaram

De Jânio a Castelo

de Médici a Figueiredo

de Sarney a Collor

o seu salário foi diminuindo

com a falsa intenção

de acabar com a inflação.

Dos planos infalíveis surgiu a recessão

fazendo sumir na mesa do trabalhador o leite,

a carne e o feijão

levando sua pobre família à desnutrição.

Você foi ficando empobrecido

esquecido descamisado e desgraçado

jogado feito lixo nas sarjetas metropolitanas

passando dificuldades pela sua penúria.

O sol raiou em berço esplêndido

onde jamais houve jus ao suor do trabalhador.

Por detrás das janelas chiques

haverá sempre uma mansão formosa

entre os ternos e as gravatas do patrão

conseguidos às custas do teu sangue e do teu suor;

trabalhador do hoje

miserável do amanhã...”


Hélio Pereira Bicudo é presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA

 

4.3.Hélio Bicudo é eleito presidente da CIDH 4

 

Primeiro presidente do Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo e membro de sua equipe executiva desde sua criação, Hélio Pereira Bicudo é o primeiro brasileiro a assumir um cargo na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Desde janeiro de 2000, é o presidente da Comissão.

O Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo foi criado por inspiração de dom Paulo EvaristoArns, ex-arcebispo de São Paulo, para ajudar vítimas de violência policial. A idéia da entidade nasceu depois da morte do operário metalúrgico Santo Dias da Silva, em 1979, em frente a Fábrica Sylvania, em Santo Amaro. “Este foi um fato emblemático da violência policial e que levou dom Paulo Evaristo a criar o Centro, exatamente para combater a violência policial.”

Desde sua criação, o Centro Santo Dias dedica-se exatamente a isso: o combate à violência policial. Essa determinação levou a entidade à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, onde, em 1994, o jurista Hélio Bicudo fez um pronunciamento sobre o problema da violência contra as crianças e os jovens, incluindo a questão do tráfico de entorpecentes e da prostituição infantil.

Durante esta viagem Hélio Bicudo foi sondado sobre a possibilidade de integrar a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, composta por sete membros, indicados pelos governos e eleitos a título pessoal pela assembléia anual da OEA e com mandato de quatro anos, renovado por mais quatro. No caso de Bicudo, a  sugestão  feita  pelo

 


4 Entrevista concedida por Hélio Pereira Bicudo, em dezembro de 1999, à jornalista Bernadete Toneto, editora do jornal O SÃO PAULO.

cardeal Arns ao presidente Fernando Henrique Cardoso foi acatada e apresentada à assembléia geral da OEA de 1997, em Lima, no Peru, pelo então embaixador brasileiro junto à OEA, o ex-presidente Itamar Franco.

Hélio Bicudo começou a exercer seu mandato na Comissão Interamericana de Direitos Humanos em fevereiro de 1998, tendo assumido o cargo de vice-presidente. Em fevereiro de 2000, Hélio Bicudo assumiu o posto de presidente da Comissão, seguindo uma tradição da entidade. Essa eleição gerou um fato inédito: o Brasil assume pela primeira vez dois importantes postos na OEA, com a presença do professor Cançado Trindade na presidência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, e de Hélio Bicudo na presidência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos reúne-se em três sessões ordinárias - em Washington, nos Estados Unidos, ou em cidades de outros países. Além disso, quando convidados seus membros fazem periódicas visitas a países, para avaliar denúncias de violação de direitos humanos.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos mantém também relatorias especiais, que se debruçam sobre problemas que atingem o continente: uma especial para tratar da questão das migrações, sobre povos indígenas, sobre os direitos da mulher, sobre prisões, sobre crianças e adolescentes e sobre a liberdade de expressão.

O jurista Bicudo explica que uma denúncia só é aceita pela Comissão se todos os recursos internos tiverem sido esgotados. Aceita a denúncia, a Comissão tem competência para examinar e fazer as recomendações devidas ao governo brasileiro (não são feitas recomendações aos governos dos Estados pois quem representa a Federação é a União). “É um trabalho bastante interessante. A ignorância a respeito dos tratados dos direitos humanos pelo próprio Judiciário brasileiro, pelo Ministério Público, muitas vezes dificulta a atuação mais positiva de sistema”. 

Para o coordenador do Centro Santo Dias de Direitos Humanos, nos últimos quatro anos um movimento espontâneo da sociedade civil garantiu no Brasil o reconhecimento da Corte e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. “No início o Itamarati se opôs porque temia a violação do princípio de soberania, mas hoje, no âmbito do Direito Internacional, não se pode mais admitir que violações de direitos humanos fiquem apenas sujeitas aos critérios de países onde elas ocorreram, porque não se tratam de violações internas mas de violações que têm repercussão mundial. São crimes contra a humanidade e os crimes contra a humanidade não podem ficar apenas sujeitos à jurisdição de determinados países”.

 

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