Carta
de Fuzilados
Vários
Autores
Coleção
Campo da História – 4
Campo
das Letras Editores S.A – Porto, 1995
1ª
Ed. Dezembro de 1995
CARTAS
DE FUZILADOS
Que
tempos são estes,
Em
que uma conversa sobre árvores
É
quase um crime, porque inclui
Um
silêncio sobre tantos malefícios...
Bertolt
Brecht
Esta edição
é uma homenagem aos milhões de vítimas do
nazi-fascismo, no 50º aniversário do fim da 2ª
Guerra Mundial
PREFÁCIO
Palavras
breves para um “Post-Scriptum”
Mesmo
a esta distância de meio século é impossível reler as Cartas
de Fuzilados, agora editadas em Portugal pela Editora Campo das
Letras, sem uma funda emoção e uma breve reflexão do seu tempo
histórico.
Foram
resistentes franceses mas é universalista a mensagem que
transmitem à posteridade.
Na
derradeira “hora da verdade” das suas vidas heróicas, como
que em representação dos milhões de combatentes exterminados
pela besta nazi, estes quarenta e um homens e mulheres que
souberam, como milhares de outros companheiros de combate e de idéias,
morrer de pé por uma pátria livre e um mundo liberto de terror e
opressão sob as formas mais hediondas, quiseram transmitir aos
seus entes queridos e aos seus irmãos de luta uma épica palavra
de imorredoira esperança.
Os
mártires de Châteaubriant fuzilados em Outubro de 1941, no
momento em que parecia que todas as grandes conquistas do Homem
iam soçobrar sob o jugo do nazi-fascismo, tal como os que já com
a vitória à vista e a escassos meses da libertação subiram ao
cadafalso, não morreram na descrença e no desespero, mas
serenamente confiantes no devir da Liberdade, da Paz, da
Democracia.
Muita
água correu em turbilhão sob as pontes da
história dos últimos cinquenta anos. Referências e dados
essenciais de percurso desapareceram ou mudaram de conteúdo ou de
forma. A geografia política do Mundo sofreu alterações
profundas. O Socialismo como Estado foi subvertido no continente
europeu e em largas extensões do continente asiático. Conceitos
obsoletos perderam validade; outros surgiram das novas realidades
a imporem reformulações na teoria e na prática.
Mas,
emergentes da hecatombe, como o granito que dá consistência à
terra, os princípios básicos elementares e os ideais e valores
morais por que os quarenta e um se bateram e tombaram permanecem
actuais e válidos.
Eram,
os fuzilados destas cartas, de condições sociais as mais
variadas.
Um,
Georges Pittard, escrevia em 1941 à mulher: “Procura o Bastonário
e diz-lhe que eu creio ter honrado a Ordem dos Advogados”.
Outro,
em Março de 1942, Pierre Semard, ferroviário, fundador do
Partido Comunista Francês, escrevia aos seus familiares e amigos:
“Aguardo a morte com calma(...). Morro com a certeza da libertação.
Digam aos meus amigos ferroviários que não façam nada que possa
ajudar os nazis. Eles vão compreender-me(...). Está próxima a
hora de morrer. Mas eu sei que os nazis que vão fuzilar-me já
estão vencidos...”.
Danielle
Casanova, a valorosa jovem dirigente da Juventude Comunista
Francesa, morta pelo tifo no campo de extermínio de Auschwitz em
Janeiro de 1943, escrevia, já a braços com a morte: “Sinto-me
feliz com esta alegria que dá a alta consciência de nunca ter
fraquejado e de sentir nas minhas veias um sangue impetuoso e
jovem. A nossa bela França será livre e o nosso ideal triunfará”.
Eram desta têmpera os heróis que iam morrer.
Inevitavelmente,
as Cartas de Fuzilados
reconduzem-nos para a realidade nacional delas contemporânea,
para o nosso país amordaçado de há
50 anos.
Exactamente
nos anos 41 e 42, quando as balas trespassavam os corações de
resistentes ao nazismo, quando o “tiro na nuca”, as forcas e
guilhotinas dos carrascos hitlerianos suprimiam vidas de patriotas
e semeavam a morte nos países ocupados, no Portugal da época, há
quinze anos dominado pelo fascismo, Salazar, o paladino da morte
lenta, ia dizimando à sua maneira os patriotas e resistentes
anti-fascistas portugueses.
Nos
primeiros anos da década de 40, no campo do Tarrafal, nas duras
privações do regime prisional e inclemências do clima, foram
ceifadas pela biliosa 32 vidas de prisioneiros, a maioria
comunistas, mas também democratas de outras tendências. Alguns
ainda puderam transmitir para o exterior as suas “Cartas”...
Cá
fora, nas ruas e nos campos ou nos antros da tortura da PIDE,
outros patriotas foram liquidados. Alguns torturados até a morte,
outros abatidos a tiro à queima roupa. Estes não puderam
legar-nos senão o seu exemplo de heroísmo, coragem e abnegação.
Em
Janeiro de 1941, na região de Espinho, o médico comunista
Ferreira Soares, que fazia da medicina um sacerdócio para os
pobres do seu concelho, foi cortado à metralhadora dentro da sua
própria casa pelos assassinos da PIDE.
Foi
um estendal que se prolongou até aos dias radiosos do 25 de
abril.
Em
1945, dois meses após a derrota de Hitler, o operário da indústria
naval Alfredo Dinis foi brutalmente esmagado sob o rodado de uma
“ramona” da PIDE e de seguida varado com duas balas numa
estrada do concelho de Loures.
Quase
na mesma altura, o dirigente sindical alentejano Germano Vidigal
foi torturado até a morte na Praça de Touros de Montemor-o-Novo.
Em
1950, José Moreira, metalúrgico da Marinha Grande, na
cladestinidade, foi preso e torturado até a morte e, já cadáver,
ao fim de três horas, atirado pela janela do 3º andar para a
rua, na sede da PIDE da Rua António Maria Cardoso.
Em
1954, nos trigais alentejanos, houve um novo sangue derramado:
Catarina Eufémia, jovem camponesa de Baleizão, grávida e com um
filho ao colo, foi abatida à queima roupa pela GNR.
Em
1961, José Dias Coelho, jovem escultor e pintor de grande
talento, também na clandestinidade, cai sob balas da PIDE na rua
de Lisboa que tem hoje o seu nome e na encruzilhada de outra que
tem o nome da obra épica de Camões – a rua dos Lusíades.
São
apenas alguns dos cerca de 80 que perderam a vida às mãos dos
inimigos da liberdade em Portugal.
Que
teriam podido escrever para a posteridade? Certamente uma mensagem
idêntica à das Cartas de Fuzilados, talvez escrita com sangue como a do dirigente
comunista Militão Bessa Ribeiro, já exangue na Cadeia Penitenciária:
“Não sei como tenho tido forças para tanto. Mas com todo esse
sofrimento nunca deixei de ter fé na nossa causa. Sei que
venceremos!”.
E
o que teria escrito no último momento um patriota e antifascista
como Cândido de Oliveira, um dos mais qualificados técnicos
desportistas portugueses de todos os tempos, falecido no Tarrafal,
que havia sido selvagemente torturado pelo PIDE Roquete,
guarda-redes que ele escolhera tantas vezes para a seleção
nacional de futebol e que viria a ser mais tarde um sádico
torcionário da PIDE?
As
Cartas de Fuzilados constituem na sua épica simplicidade um alerta
e um forte motivo de reflexão e de preocupações nos tempos
sombrios que vivemos, quando milhões de seres estão morrendo de
fome ou ceifados pelas balas em razão dos interesses dos senhores
da guerra e barões do armamento, e quando no nosso próprio país
cresce a exigência de impedir práticas repressivas e tentativas
de ressurgimento de aparelhos policiais que fazem lembrar tempos
de triste memória que Abril apagou da nossa vida nacional.
Leiamos
as Cartas de Fuzilados e meditemos na sua mensagem, na sua grande lição
de dignidade, coragem e confiança nos supremos ideais que
norteiam as suas vidas de heróicos combatentes que tombaram pela
liberdade.
E
associemos à sua memória o elegíaco poema de Paul Eluard:
Sur les marches de la mort
J’écris
ton nom
Liberté!
António
Dias Lourenço
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