MAURICE LACAZETTE
Operário
metalúrgico e dirigente da Federação Unitária Sindical dos
Metais. Responsável FTPF na Bretanha.
Preso
pela primeira vez em 1942 e hospitalizado, evade-se do Hôtel-Dieu.
Preso de novo em Janeiro de 1943, é fuzilado no dia 25 de Agosto
de 1943.
(Extractos
das cartas dirigidas à mulher)
20 de Fevereiro de 1943
Graças ao corajoso moço que te entregará
este bilhete, tenho a sorte única de te fazer chegar notícias
minhas. Quando irás recebê-las? Não sei. Terei já talvez
deixado de viver? Enfim, terás uma carta. É uma oportunidade
inesperada. É certo que eu teria preferido escrever-te livremente
na hora de morrer, mas não posso contar com isso e, no entanto,
haverá sentimentos que eu gostaria de poder comunicar-te nesse
momento...
Na minha primeira carta informava-te que
estava guardado pelos polícias franceses e que podia então
receber cartas, encomendas e livros em comum com os outros presos
políticos; era mesmo uma rica vida, mas não durou, e, regressado
à prisão, no dia 2 de Fevereiro, fui entregue aos Alemães, no
dia 8, às nove horas da noite. Então, mudança de cenário: cela
e no segredo mais absoluto, nem cartas, nem encomendas, nem
tabaco, nem roupa, nem recreio, nada, nada. Nenhuma ligação possível
com o exterior. Primeiramente fui transferido sozinho para os Alemães,
mas, alguns dias depois, soube que outros se tinham juntado a
mim...
O camarada poderá falar-te desta vida. Antes
de mais, temos fome, sempre fome, depois temos
frio e eu não consigo curar-me da minha necessidade
de fumar, com a morte sobre a minha cabeça todas
as manhãs ao acordar. Não é novo para mim, já
aconteceu duas vezes, mas, desta vez, “chefe de
terroristas”, eu não escapo, ou seria então um
milagre em que eu acredito cada vez menos; quero
a todo custo habituar-me à idéia de desaparecer.
Se ao menos tivéssemos notícias para
alicerçar as nossas esperanças! Mas nada! A mais recente hoje é
a tomada de Karkov; deve ter tido um grande impacto, mas nós não
sabemos nada.
Aqui, a pouca alegria a quebrar a monotomia
é a limpeza, o banheiro, o chuveiro, a sopa três vezes por dia e
os alertas que são muito frequentes e ainda os vários ruídos de
botas nos corredores provocando diversas reações. Por exemplo: Sábado,
13 de Fevereiro, os “boches” vieram buscar vinte e três
camaradas para os fuzilar; eles receberam os carrascos cantando a
Marselhesa. O camarada poderá dizer-te os minutos de intensa emoção
que vivemos.
É esta a minha vida material, nada
brilhante, como vés, por isso eu vivo intensamente pelo
pensamento, pelas recordações. Além disso tenho comigo dois
jovens, um deles é o que tu vais ver, para conquistar para a
nossa causa, e tenho a certeza de o conseguir. Converso muito com
eles sobre o que nós somos, o que perseguimos como objectivo, a
sociedade ideal que queremos construir. Vivo intensamente o que
lhes transmito e sinto-me orgulhoso pela minha vida e pela minha
morte tão próxima, porque estou certo de que triunfaremos, de
que os homens serão felizes. É certo que muitas vezes bem dentro
de mim tenho pena de pensar que já não estarei cá para ver; mas
resta-me uma consolação, é que não seremos esquecidos, nós
que tudo teremos dado para atingir este fim.
Vês, meu amor, eu não teria dificuldades
de convencer-te, a ti que me conheces, de que esyas conversas,
estas discussões me terão feito muito bem e que as horas passam
assim menos monótonas.
Uma outra coisa que me faz muitas vezes bem
e outras mal são as horas de solidão em que me encontro com a
minha L. querida. É para ti que vão os meus pensamentos mais
ternos, os mais amorosos.
Tenho comigo esta foto de 1938 em que nós
parecemos dois noivinhos e é sempre com a garganta um pouco
apertada que olho esta imagem da nossa felicidade passada. Como
lamento não ter sido mais cioso desta felicidade! Vês, penso
muitas vezes nisso, nós éramos feitos um para o outro, devíamos
ter uma vida feliz juntos, mas, para se amar bem, penso que é
preciso ser egoísta, pensar mais na sua própria vida, não ser
dominado por esta grande tarefa que me absorvia todo, tanto o
corpo como o espírito. Oh! Principalmente não penses que eu
lamento a minha actividade, a minha luta; não, eu não teria
podido viver sem isso e, se há alguma coisa de que hoje me sinto
orgulhoso, na véspera de desaparecer, é a minha rectidão de
militante, a minha fidelidade ao Partido e à uma causa.
O meu pesar, o meu doloroso pesar, é não
te ter feito mais feliz. Tenho medo que apenas guardes de mim uma
recordação que se apague depressa em face da vida e das suas
exigências, minha queridinha, pensa em mim, há muito de bom no
L... Havias de vê-lo, sentir-te-ias orgulhosa dele; tenho a
certeza de que, se tivesse conservado a vida, ter-te-ia feito
feliz.
Partir os dois de saco às costas, como
quando éramos jovens!... Alpes, Pyrénées, Bretagne, é uma
loucura tudo quanto se pode desejar da vida quando se vai
morrer...
Lembras-te, falamos muitas vezes da
menina... Que tortura para mim, hoje! Parece-me que com um filho
te teria guardado para sempre!... Estás a ver, perante a morte,
é a vida contigo que mais me tortura. “A vida”, estás
recordada, são as primeiras pelavras que “A mãe” (o romance
de Máximo Gorki) reconheceu.
Penso que todos os camaradas que morreram
antes de mim tiveram de enfrentar as mesmas reacções, ter fé na
vitória final, acreditar inabalavelmente nela, pregar a nossa
verdade até ao último suspiro, mas, simultaneamente, sentir o
desgosto de criança de não viver para ver realizar-se esse
grande sonho.
Afasto-me destes pensamentos que me fazem
bem e mal. Falemos de ti. Que tens feito? Toma muito cuidado
contigo...
Espero que tenhas encontrado trabalho, que
tenhas o tempo ocupado e que não tenhas nenhuma preocupação
material.
Se um dia tiveres ocasião de encontrar
amigos, podes dizer-lhes que o “grande” se aguentou bem. Oh!
Se eu pudesse receber um bilhete teu, que felicidade! Mas ai, é
melhor não pensar nisso...
E agora, meu amor, minha vida, temos que nos
separar, dizer adeus para sempre. Se os meus cálculos estão
certos, e considerando que somos pouco numerosos neste processo,
isto irá depressa e, contando pelo momento para ser mais agradável,
lá para fins de Abril serei riscado do número dos vivos. Sabê-lo
ás pelo portador que irá prevenir-te onde quer que te encontres
e talvez te diga onde vou ficar enterrado. E um dia tu virás
chorar onde eu repouso, porque eu não duvido do teu amor, meu
amorzinho; isto alivia-me e faz-me bem.
Adeus, minha mulher querida, ama-te muito, e
os meus últimos pensamentos serão para ti; no último minuto é
a ti que eu verei e pedirei perdão por todos os desgostos que
terei podido causar-te, pela frustração da felicidade que não
pude dar-te.
Adeus, pequena... adeus todos os caminhos
onde nos amámos. Não tenho a força para te dar a outro, mas um
dia, se tiveres um filho, dá-lhe o meu nome, se quiseres, minha
querida. Oh! Mas que fique claro, eu não te prendo a uma exigência,
é se tu quiseres e se isso não chocar ninguém. Adeus, minha
amada. Pensarei ainda muito em ti e não tenho dúvidas de que
pensas em mim. Conheço bem o teu amor, o teu grande amor por mim.
Com todas as minhas forças, beijo-te muito
ternamente.
Adeus a todos os camaradas, adeus, operários
meus irmãos. A vida será bela, não haverá mais ódio, nem miséria,
o direito do povo será sagrado! Mas é necessário lutar com
abnegação, saber sacrificar tudo pela vitória, a exemplo
daqueles que morreram.
Maurice Lacazette
21 de Agosto de 1943
Minha queridinha
Terceira tentativa para que tenhas notícias
minhas, mas irás recebê-las antes de partir?
Deves conhecer a sentença: quinze
condenados à morte e um absolvido e, é claro, eu tenho o número
um: grande honra, como vês, tendo a certeza de que não escapo ao
poste. Iniciado na quarta-feira, o processo terminou na
sexta-feira à noite; foi tudo feito muito à pressa e era
particularmente doloroso. Toda a gente se portou bem e todos os moços
se mostraram muito dignos na hora da sentença.
A partir de sexta-feira à noite mudei de
cela e fui posto com outros camaradas, condenados como eu, bem
acorrentados e guardados; passámos horas difíceis; tempo para
nos habituarmos à idéia de desaparecer; e todos os barulhos de
botas no corredor nos apertam um pouco o coração: Chegou a hora?
Os rostos crispam-se, mas todos estão preparados e, paderás dizê-lo,
armados com muita coragem.
De momento, tenho as mãos soltas e estou
preso por uma cadeia de cavilhas ao amigo Fernand que te manda
cumprimentos. Deste modo, não damos um passo um sem o outro e
dormimos ligados um ao outro; vós achais isso vergonhoso, mas é
que não estás habituada, como eu, desde há sete meses, aos
requintes da civilização européia...
De que é feita a nossa vida agora? Falamos
do passado, mas também deste futuro certo que sabemos radioso e são
os eternos: “Se tivéssemos vivido para ver isso...” Mas todos
nós nos consolamos um pouco com a idéia de que não seremos
esquecidos porque teremos participado na construção desse belo
futuro.
Na quarta-feira, contra todas as
expectativas, tivemos direito à encomenda sem restrições:
alimento e tabaco espalharam-se literalmente pela cela, era a
alegria para todos, e esquecemos mesmo a sorte que nos espera;
agora contamos viver ainda até quarta-feira, para aproveitar mais
uma vez. Ao tempo que nós não víamos todas estas riquezas,
imagina a nossa
alegria. (Poderás na próxima quarta
Pôr
umas calças na minha encomenda, eles vão deixar passar).
É assim, minha querida, foi voltada a página.
Adeus futuro, esse belo futuro que eu tinha imaginado nestes
longos meses de cativeiro! Tinha jurado tornar-me feliz e ter
contigo uma vida de trabalho, mas também dedicar-te muito tempo,
sentir junto a mim uma terna afeição, criar um lar de que tanto
precisávamos ambos, ter um filho, viver como dois seres que se
amam. Tínhamos sofrido tanto e pago de tal modo, que teríamos
construído uma felicidade indestrutível.
Adeus, minha pequenina, adeus toda minha
vida, sê corajosa, recalca as tuas lágrimas e o teu desgosto e
trabalha com todas as tuas forças e, num dia próximo, quando
vires brilhar o tempo da felicidade, dirás para ti mesma que
deste tudo pelo triunfo da nossa causa, inclusive um ser que era o
teu marido, e virás a um pequeno cemitério bretão verter
algumas lágrimas sobre o teu L...
Adeus, sê feliz, e mais tarde, quando
estiveres curada do teu desgosto, desejo que encontres um bom
proleta digno de ti. É duro dizer-te isso, porque eu sou
ciumento, mesmo diante da morte, mas tu mereces tanto ser feliz
que eu desejo-to de todo o coração.
Adeus a todos os companheiros, diz-lhes que
eu permaneci digno da sua confiança e que estou orgulhoso por
morrer pelo meu país e pela minha classe.
Adeus a todos os meus amigos, a essa
corajosa amiga que tanto fez por mim durante o meu cativeiro,
agradece-lhes e, não esqueças nunca, é por nós dois que
exprimirás o nosso reconhecimento...
Adeus, mulher querida, adeus toda a minha
vida, relê os belos livros que me escolheste e que tanto me
entusiasmavam; quando passares nesse velho Paris, diz-lhe bom-dia
por mim, tenho tanta pena, dele também. Aperto-te com todas as
minhas forças. O meu último pensamento para ti.
Manda-me um bilhete na quarta-feira, e tudo
o que tiveres de comer e tabaco para mim.
M.
L.
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