Projeto DHnet
Ponto de Cultura
Podcasts
 
 Direitos Humanos
 Desejos Humanos
 Educação EDH
 Cibercidadania
 Memória Histórica
 Arte e Cultura
 Central de Denúncias
 Banco de Dados
 MNDH Brasil
 ONGs Direitos Humanos
 ABC Militantes DH
 Rede Mercosul
 Rede Brasil DH
 Redes Estaduais
 Rede Estadual RN
 Mundo Comissões
 Brasil Nunca Mais
 Brasil Comissões
 Estados Comissões
 Comitês Verdade BR
 Comitê Verdade RN
 Rede Lusófona
 Rede Cabo Verde
 Rede Guiné-Bissau
 Rede Moçambique

 

MAURICE LACAZETTE

 

Operário metalúrgico e dirigente da Federação Unitária Sindical dos Metais. Responsável FTPF na Bretanha.

Preso pela primeira vez em 1942 e hospitalizado, evade-se do Hôtel-Dieu. Preso de novo em Janeiro de 1943, é fuzilado no dia 25 de Agosto de 1943.

 

(Extractos das cartas dirigidas à mulher)

 

20 de Fevereiro de 1943

 

Graças ao corajoso moço que te entregará este bilhete, tenho a sorte única de te fazer chegar notícias minhas. Quando irás recebê-las? Não sei. Terei já talvez deixado de viver? Enfim, terás uma carta. É uma oportunidade inesperada. É certo que eu teria preferido escrever-te livremente na hora de morrer, mas não posso contar com isso e, no entanto, haverá sentimentos que eu gostaria de poder comunicar-te nesse momento...

Na minha primeira carta informava-te que estava guardado pelos polícias franceses e que podia então receber cartas, encomendas e livros em comum com os outros presos políticos; era mesmo uma rica vida, mas não durou, e, regressado à prisão, no dia 2 de Fevereiro, fui entregue aos Alemães, no dia 8, às nove horas da noite. Então, mudança de cenário: cela e no segredo mais absoluto, nem cartas, nem encomendas, nem tabaco, nem roupa, nem recreio, nada, nada. Nenhuma ligação possível com o exterior. Primeiramente fui transferido sozinho para os Alemães, mas, alguns dias depois, soube que outros se tinham juntado a mim...

O camarada poderá falar-te desta vida. Antes de mais, temos fome, sempre fome, depois temos frio e eu não consigo curar-me da minha necessidade de fumar, com a morte sobre a minha cabeça todas as manhãs ao acordar. Não é novo para mim, já aconteceu duas vezes, mas, desta vez, “chefe de terroristas”, eu não escapo, ou seria então um milagre em que eu acredito cada vez menos; quero a todo custo habituar-me à idéia de desaparecer.

Se ao menos tivéssemos notícias para alicerçar as nossas esperanças! Mas nada! A mais recente hoje é a tomada de Karkov; deve ter tido um grande impacto, mas nós não sabemos nada.

Aqui, a pouca alegria a quebrar a monotomia é a limpeza, o banheiro, o chuveiro, a sopa três vezes por dia e os alertas que são muito frequentes e ainda os vários ruídos de botas nos corredores provocando diversas reações. Por exemplo: Sábado, 13 de Fevereiro, os “boches” vieram buscar vinte e três camaradas para os fuzilar; eles receberam os carrascos cantando a Marselhesa. O camarada poderá dizer-te os minutos de intensa emoção que  vivemos.

É esta a minha vida material, nada brilhante, como vés, por isso eu vivo intensamente pelo pensamento, pelas recordações. Além disso tenho comigo dois jovens, um deles é o que tu vais ver, para conquistar para a nossa causa, e tenho a certeza de o conseguir. Converso muito com eles sobre o que nós somos, o que perseguimos como objectivo, a sociedade ideal que queremos construir. Vivo intensamente o que lhes transmito e sinto-me orgulhoso pela minha vida e pela minha morte tão próxima, porque estou certo de que triunfaremos, de que os homens serão felizes. É certo que muitas vezes bem dentro de mim tenho pena de pensar que já não estarei cá para ver; mas resta-me uma consolação, é que não seremos esquecidos, nós que tudo teremos dado para atingir este fim.

Vês, meu amor, eu não teria dificuldades de convencer-te, a ti que me conheces, de que esyas conversas, estas discussões me terão feito muito bem e que as horas passam assim menos monótonas.

Uma outra coisa que me faz muitas vezes bem e outras mal são as horas de solidão em que me encontro com a minha L. querida. É para ti que vão os meus pensamentos mais ternos, os mais amorosos.

Tenho comigo esta foto de 1938 em que nós parecemos dois noivinhos e é sempre com a garganta um pouco apertada que olho esta imagem da nossa felicidade passada. Como lamento não ter sido mais cioso desta felicidade! Vês, penso muitas vezes nisso, nós éramos feitos um para o outro, devíamos ter uma vida feliz juntos, mas, para se amar bem, penso que é preciso ser egoísta, pensar mais na sua própria vida, não ser dominado por esta grande tarefa que me absorvia todo, tanto o corpo como o espírito. Oh! Principalmente não penses que eu lamento a minha actividade, a minha luta; não, eu não teria podido viver sem isso e, se há alguma coisa de que hoje me sinto orgulhoso, na véspera de desaparecer, é a minha rectidão de militante, a minha fidelidade ao Partido e à uma causa.

O meu pesar, o meu doloroso pesar, é não te ter feito mais feliz. Tenho medo que apenas guardes de mim uma recordação que se apague depressa em face da vida e das suas exigências, minha queridinha, pensa em mim, há muito de bom no L... Havias de vê-lo, sentir-te-ias orgulhosa dele; tenho a certeza de que, se tivesse conservado a vida, ter-te-ia feito feliz.

Partir os dois de saco às costas, como quando éramos jovens!... Alpes, Pyrénées, Bretagne, é uma loucura tudo quanto se pode desejar da vida quando se vai morrer...

Lembras-te, falamos muitas vezes da menina... Que tortura para mim, hoje! Parece-me que com um filho te teria guardado para sempre!... Estás a ver, perante a morte, é a vida contigo que mais me tortura. “A vida”, estás recordada, são as primeiras pelavras que “A mãe” (o romance de Máximo Gorki) reconheceu.

Penso que todos os camaradas que morreram antes de mim tiveram de enfrentar as mesmas reacções, ter fé na vitória final, acreditar inabalavelmente nela, pregar a nossa verdade até ao último suspiro, mas, simultaneamente, sentir o desgosto de criança de não viver para ver realizar-se esse grande sonho.

Afasto-me destes pensamentos que me fazem bem e mal. Falemos de ti. Que tens feito? Toma muito cuidado contigo...

Espero que tenhas encontrado trabalho, que tenhas o tempo ocupado e que não tenhas nenhuma preocupação material.

Se um dia tiveres ocasião de encontrar amigos, podes dizer-lhes que o “grande” se aguentou bem. Oh! Se eu pudesse receber um bilhete teu, que felicidade! Mas ai, é melhor não pensar nisso...

E agora, meu amor, minha vida, temos que nos separar, dizer adeus para sempre. Se os meus cálculos estão certos, e considerando que somos pouco numerosos neste processo, isto irá depressa e, contando pelo momento para ser mais agradável, lá para fins de Abril serei riscado do número dos vivos. Sabê-lo ás pelo portador que irá prevenir-te onde quer que te encontres e talvez te diga onde vou ficar enterrado. E um dia tu virás chorar onde eu repouso, porque eu não duvido do teu amor, meu amorzinho; isto alivia-me e faz-me bem.

Adeus, minha mulher querida, ama-te muito, e os meus últimos pensamentos serão para ti; no último minuto é a ti que eu verei e pedirei perdão por todos os desgostos que terei podido causar-te, pela frustração da felicidade que não pude dar-te.

Adeus, pequena... adeus todos os caminhos onde nos amámos. Não tenho a força para te dar a outro, mas um dia, se tiveres um filho, dá-lhe o meu nome, se quiseres, minha querida. Oh! Mas que fique claro, eu não te prendo a uma exigência, é se tu quiseres e se isso não chocar ninguém. Adeus, minha amada. Pensarei ainda muito em ti e não tenho dúvidas de que pensas em mim. Conheço bem o teu amor, o teu grande amor por mim.

Com todas as minhas forças, beijo-te muito ternamente.

Adeus a todos os camaradas, adeus, operários meus irmãos. A vida será bela, não haverá mais ódio, nem miséria, o direito do povo será sagrado! Mas é necessário lutar com abnegação, saber sacrificar tudo pela vitória, a exemplo daqueles que morreram.

 

Maurice Lacazette

 

21 de Agosto de 1943

 

Minha queridinha

 

Terceira tentativa para que tenhas notícias minhas, mas irás recebê-las antes de partir?

Deves conhecer a sentença: quinze condenados à morte e um absolvido e, é claro, eu tenho o número um: grande honra, como vês, tendo a certeza de que não escapo ao poste. Iniciado na quarta-feira, o processo terminou na sexta-feira à noite; foi tudo feito muito à pressa e era particularmente doloroso. Toda a gente se portou bem e todos os moços se mostraram muito dignos na hora da sentença.

A partir de sexta-feira à noite mudei de cela e fui posto com outros camaradas, condenados como eu, bem acorrentados e guardados; passámos horas difíceis; tempo para nos habituarmos à idéia de desaparecer; e todos os barulhos de botas no corredor nos apertam um pouco o coração: Chegou a hora? Os rostos crispam-se, mas todos estão preparados e, paderás dizê-lo, armados com muita coragem.

De momento, tenho as mãos soltas e estou preso por uma cadeia de cavilhas ao amigo Fernand que te manda cumprimentos. Deste modo, não damos um passo um sem o outro e dormimos ligados um ao outro; vós achais isso vergonhoso, mas é que não estás habituada, como eu, desde há sete meses, aos requintes da civilização européia...

De que é feita a nossa vida agora? Falamos do passado, mas também deste futuro certo que sabemos radioso e são os eternos: “Se tivéssemos vivido para ver isso...” Mas todos nós nos consolamos um pouco com a idéia de que não seremos esquecidos porque teremos participado na construção desse belo futuro.

Na quarta-feira, contra todas as expectativas, tivemos direito à encomenda sem restrições: alimento e tabaco espalharam-se literalmente pela cela, era a alegria para todos, e esquecemos mesmo a sorte que nos espera; agora contamos viver ainda até quarta-feira, para aproveitar mais uma vez. Ao tempo que nós não víamos todas estas riquezas, imagina  a nossa alegria. (Poderás na próxima quarta

 Pôr umas calças na minha encomenda, eles vão deixar passar).

É assim, minha querida, foi voltada a página. Adeus futuro, esse belo futuro que eu tinha imaginado nestes longos meses de cativeiro! Tinha jurado tornar-me feliz e ter contigo uma vida de trabalho, mas também dedicar-te muito tempo, sentir junto a mim uma terna afeição, criar um lar de que tanto precisávamos ambos, ter um filho, viver como dois seres que se amam. Tínhamos sofrido tanto e pago de tal modo, que teríamos construído uma felicidade indestrutível.

Adeus, minha pequenina, adeus toda minha vida, sê corajosa, recalca as tuas lágrimas e o teu desgosto e trabalha com todas as tuas forças e, num dia próximo, quando vires brilhar o tempo da felicidade, dirás para ti mesma que deste tudo pelo triunfo da nossa causa, inclusive um ser que era o teu marido, e virás a um pequeno cemitério bretão verter algumas lágrimas sobre o teu L...

Adeus, sê feliz, e mais tarde, quando estiveres curada do teu desgosto, desejo que encontres um bom proleta digno de ti. É duro dizer-te isso, porque eu sou ciumento, mesmo diante da morte, mas tu mereces tanto ser feliz que eu desejo-to de todo o coração.

Adeus a todos os companheiros, diz-lhes que eu permaneci digno da sua confiança e que estou orgulhoso por morrer pelo meu país e pela minha classe.

Adeus a todos os meus amigos, a essa corajosa amiga que tanto fez por mim durante o meu cativeiro, agradece-lhes e, não esqueças nunca, é por nós dois que exprimirás o nosso reconhecimento...

Adeus, mulher querida, adeus toda a minha vida, relê os belos livros que me escolheste e que tanto me entusiasmavam; quando passares nesse velho Paris, diz-lhe bom-dia por mim, tenho tanta pena, dele também. Aperto-te com todas as minhas forças. O meu último pensamento para ti.

Manda-me um bilhete na quarta-feira, e tudo o que tiveres de comer e tabaco para mim.

 

M. L.

Desde 1995 © www.dhnet.org.br Copyleft - Telefones: 055 84 3211.5428 e 9977.8702 WhatsApp
Skype:direitoshumanos Email: enviardados@gmail.com Facebook: DHnetDh
Busca DHnet Google
Notícias de Direitos Humanos
Loja DHnet
DHnet 18 anos - 1995-2013
Linha do Tempo
Sistemas Internacionais de Direitos Humanos
Sistema Nacional de Direitos Humanos
Sistemas Estaduais de Direitos Humanos
Sistemas Municipais de Direitos Humanos
História dos Direitos Humanos no Brasil - Projeto DHnet
MNDH
Militantes Brasileiros de Direitos Humanos
Projeto Brasil Nunca Mais
Direito a Memória e a Verdade
Banco de Dados  Base de Dados Direitos Humanos
Tecido Cultural Ponto de Cultura Rio Grande do Norte
1935 Multimídia Memória Histórica Potiguar