Capítulo
II — Histórico
Objetivo:
Reconhecer que os Direitos Humanos foram surgindo par e passo com o
desenvolvimento de uma consciência libertadora em prol da elevação
da pessoa humana, desenvolvendo-se através das sucessivas gerações,
de modo a procurar continuamente abranger todas as modalidades de
direitos que vão sendo identificados e agrupados como fundamentais ao
pleno desenvolvimento dos indivíduos.
“Nas
crises de transformação social ou política, a corrente dominante
propende. sempre, pela natureza das coisas, a exceder o limite da razão
e exerce sobre os espíritos uma ascendência intolerante,
exclusivista e radical.”
(Ruy
Barbosa — A Constituinte de 1891)
Seção
1 Evolução dos Direitos Humanos
Primórdios
Os
direitos traduzem com fidelidade o seu tempo. As inquietações
daquele exato momento histórico, são, portanto, resultado de um dado
momento na evolução da mentalidade dos seres humanos, podendo, por
vezes, parecer eventualmente absurdos, excessivamente dogmáticos, rígidos
ou lúcidos e liberais, mas em seu permanente movimento, serão sempre
a tradução mais autêntica de um povo.
“Um
problema insolúvel o de indagar o que é que constitui o conteúdo do
direito, porque ele é eternamente variável.”
“O
direito não exprime a verdade absoluta: a sua verdade é apenas
relativa e mede-se pelo seu fim. E assim é que o direito não só
pode mas deve mesmo ser infinitamente variado.”
(Rudolf
Von Jhering – A Evolução do Direito)
Até
a produção dos primeiros códigos, os governantes exerciam seu poder
despoticamente, sem qualquer limitação, variando as suas decisões -
e mesmo alguns princípios e leis esparsas existentes - de acordo com
a vontade e o humor do momento.
Deste
modo, os súditos não contavam com qualquer referência
comportamental que lhes garantisse os direitos mais fundamentais.
Nesse aspecto, a obediência através do temor exigia ser absoluta,
sem qualquer restrição ou hesitação.
A
lei de talião, antiga pena proveniente do chamado direito vindicativo - que
constituía em infligir ao condenado mal completamente idêntico ao
praticado -colaborou com todas as primitivas ordenações jurídicas
através do princípio: “olho por olho, dente por dente, braço por
braço, vida por vida.”
Tal
principio foi absorvido tanto pela legislação mosaico (Êxodo - XXI,
22-25) quanto pelo Alcorão
Em
sua maioria inspirados pelos deuses, os déspotas oniscientes
ordenaram a confecção de leis e códigos que foram espelhos de suas
épocas, até porque a lei é, invariavelmente, a expressão do poder
de quem a faz.
O
próprio “Código de Hamurabi” (1690 a.C.) exibe a figura de
Schamasch, o deus Sol, confiando à capacidade do imperador a garantia
do toque divino ao ordenamento jurídico então imposto.
“0
direito começava a viver entre os homens, procedente dos deuses, por
dádivas divinas, através dos profetas-estadistas e dos soberanos
tocados da luz dos primeiros esclarecimentos jurídicos.”
(Jayme
de Altavila - Origem dos direitos dos povos)
Mesmo
os legisladores da Revolução Francesa invocaram os auspícios
divinos para inspirar suas pretensões.
“Para
fundar os direitos do homem, Paine oferece uma justificação - e não
podia então ser de outro modo - religiosa. Segundo ele, para
encontrar o fundamento dos direitos do homem, é preciso não
permanecer na história, como fizera Burke, mas transcender a história
e chegar ao momento da origem, quando o homem surgiu das mãos do
Criador.”
(Norberto
Bobbio - A Era dos Direitos)
A
civilização ocidental, da qual fazemos parte, se confunde com a noção
de cristandade, principalmente em decorrência da influência das
fortes concepções religiosas introduzidas pelas igrejas nas culturas
através do processo de evangelização dos povos.
A
influência filosófico-religiosa se manifestou identicamente no
Oriente com a mensagem de Buda (500 A.C), fundamentada na igualdade
entre todos os homens.
A
civilização oriental e o lslã ajudam a compor o panorama de uma
civilização global.
Desde
que sentiram a necessidade da existência do direito, os homens começaram
a converter em leis as necessidades sociais, deixando para trás a era
da prevalência da força física e da esperteza com as quais se
defenderam desde as cavernas.
A
afirmação do direito se dá com sua projeção em todas as partes do
mundo antigo através das religiões que facilitam sua identificação
com os princípios morais estabelecidos, bem como sua assimilação e
seguimento.
Nessa
linha de argumentação, surge um novo paradoxo, desta feita
verificado a partir da confrontação do dogma religioso, de conteúdo
sagrado e estático, com a lei
profana,
de características dinâmicas e evolutivas, Inversamente, pode-se
perceber a existência de um outro paradoxo: os Direitos Humanos
representam uma imperatividade absoluta, e a ética e a moral se
traduzem pela relatividade e pela adaptação às circunstâncias
temporais e espaciais.
De
todo modo, os direitos naturais e sua doutrina foram se
caracterizando, par e passo, com a evolução da humanidade a partir
de situações concretas que iam surgindo, configurando sua
historicidade. Por conseguinte, exigindo solução desses conflitos
por parte dos governantes.
“Do
ponto de vista teórico, sempre defendi - e continuo a defender,
fortalecido por novos argumentos - que os direitos do homem, por mais
fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos
em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas
liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não
todos de uma vez e nem de uma vez por todas.”
(Norberto
Bobbio - A Era dos Direitos)
A
partir de um determinado momento a palavra oral já não mais bastava
para justificar e garantir os seus atos, surgindo dai a produção da
lei escrita manifestada inicialmente através de inscrições no barro
e em papiros, bem como gravadas em ossos de animais,
No
terceiro milênio a.C, já eram previstos alguns mecanismos legais de
proteção individual em relação ao Estado.
“0s
Direitos Humanos preexistem ao Estado.”
(Luiz
Gonzaga de Bem - A Justiça e os Direitos Humanos in Direitos Humanos
- Estudos e Debates)
Entretanto,
há um reconhecimento geral no sentido de que o Código de Hamurabi
-sexto rei da primeira dinastia da Babilônia - tenha sido
provavelmente o primeiro ordenamento jurídico escrito do Ocidente.
Com 282 artigos gravados em um único bloco de pedra, continha uma
seleção de casos jurisprudências que ajudavam na solução das
demandas jurídicas que se apresentavam ao arbítrio do rei.
“Para
os atenienses, a lei escrita é o grande antídoto contra o arbítrio
governamental, pois, como escreveu Eurípides na peça As Suplicantes
(verso 432), ‘uma vez escritas as leis, o fraco e o rico gozam de um
direito igual’.”
(Fábio
Konder Comparato - A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos)
Em
linhas gerais, esse diploma abrigava preceitos que deveriam ser
observados pelos súditos no relacionamento que mantinham entre si, e
destes em relação ao Estado, o qual, por sua vez, não devia satisfação
a ninguém. Nem existiam mecanismos que efetivamente impusessem
qualquer limitação ao poder real. Previa a supremacia das leis
frente às variações de humor dos governantes. Versava tanto sobre
sortilégios, juízo de Deus, falso acusação e falso testemunho,
prevaricação de juizes etc., como dedicava-se aos crimes de furto e
roubo, estupro, injúria e difamação, coibia a tortura e a aplicação
de penas cruéis, tratando ainda de reivindicações sobre imóveis,
locações, mútuo, depósito, dação em pagamento, processo de execução
de dividas, tributos etc.
Regulava
ainda as relações entre os comerciantes e os agentes do governo, as
relações de matrimônio, o regime de comunhão de bens, os dotes, a
adoção e as relações familiares, o abandono do lar, o repúdio, a
obrigatoriedade de prover de alimentos, os direitos das crianças e a
sucessão. Na área penal, entretanto, manteve-se fiel ao postulado de
Talião.
Os
gregos, principalmente através dos princípios enfocados pela
democracia direta proposta por Péricles, igualmente contribuíram
para a construção do edifício jurídico onde se amparam os
fundamentos dos direitos essenciais do homem.
“A
crença na existência de um direito natural anterior e superior às
leis escritas, defendida no pensamento dos sofistas e estóicos (por
exemplo, na obra Antigona - 441 a.C. -, Sófocles defende a existência
de normas não escritas e imutáveis, superiores aos direitos escritos
pelo homem).”
(Alexandre
de Moraes — Direitos Humanos Fundamentais)
Moisés
(séc. XIII a.C.) subiu ao alto do Sinai para elevar o espírito e
trazer consigo a palavra inscrita no Decálogo, seguindo-se o
Pentateuco, cujo quinto livro, o Deuteronômio, é uma consolidação
das antigas leis imemoriais acrescidas da sua experiência como
estadista, resultando no estabelecimento do ordenamento jurídico dos
hebreus.
A
legislação mosaico superou todas as anteriores, introduzindo princípios
de Direito Constitucional e Internacional, regras gerais de direito
como: Não matarás (5,17); Não furtarás (5,19); Não dirás falso
testemunho contra teu próximo (5,20) etc. Além dessas, muitas outras
no âmbito da assistência social, no Direito do Trabalho, como o
descanso semanal etc.
Criou
novas normas processuais, tratou de limites de propriedades, da
impenhorabilidade de bens e da inviolabilidade de domicílio, bem como
de questões como o adultério e o divórcio, do homicídio involuntário,
da repressão ao charlatanismo, regulamentou ainda a usura e
estabeleceu pesos e medidas justas, revelando uma moral diferente das
civilizações antigas.
Com
a Lei das XII Tábuas, considerada
como a origem dos textos escritos consagradores da liberdade, da
propriedade e da proteção aos direitos do cidadão, a lei deixava de
possuir uma condição essencialmente sagrada, exprimindo-se através
de um código sucinto e extremamente autoritário, que reconhecia e
consolidava a legislação anterior, bem como introduzia novas normas
ao direito romano tabulário, podendo, entretanto, ser consultada e
invocada por todos, uma vez que resultava do clamor e da aspiração
do povo, estabelecendo, ao menos no mundo romano, o seu caráter de
universalidade.
Quanto
à substituição do sagrado pelo espírito democrático, cabe lembrar
que os romanos conferiam extrema importância aos comícios como
mecanismo de decisão.
Assim
é, que por decisão manifestada em comício, o povo romano aprovou as
tábuas decenvirais, diploma que se constituiu no fundamento das
cartas jurídicas elaboradas a partir de então.
Dentre
os princípios então instituídos, cabe ressaltar alguns que dão bem
a medida dos valores emprestados à racionalidade naquela época:
“Não
se fará coisa alguma sem a prévia consulta aos Áugures.” (1);
“0 povo deve acreditar nos Magistrados. “ (IV); “As leis são
imparciais.” (V); “A guerra não será feita sem previa consulta
aos comícios.” (VI); “Aquele que matar o pai ou a mãe, terá a
cabeça cortada.” (IX); “Não se deve dizer coisas desonestas na
presença das senhoras. “ (X); “Deve-se andar na cidade com a túnica
até os calcanhares.” (XI); “É lícito matar os que nascem
monstruosos” (XII); “Compartilhe a mulher, com o marido, das
coisas existentes no seu lar.” (XV); “É lícito ao marido e aos
irmãos castigar convenientemente a mulher adúltera” (XVII); “Se
uma mulher se embriaga em sua casa, será punida como se tivesse sido
encontrada em adultério.” (XVIII); “Seja lícito ao pai e a mãe
banir , vender e matar os próprios filhos.” (XIX) etc.
Nesse
contexto, a Lex Duodecim Tabularum previa normas acerca do chamamento a juízo,
estabelecia instâncias judiciárias, normatizava critérios de confissão,
condenação e execução, o exercício do pátrio poder, a tutela hereditária,
a posse e a propriedade, legislando ainda acerca dos imóveis e dos prédios,
bem como dos delitos (dentre estes o de que os juros não poderiam exceder de
um por cento ao mês).
Na
Inglaterra governada entre 1199 e 1216 por João Sem Terra (Lackland) (Oxford
1167 — 1216 Nottinghamshire), quarto filho de Henrique II, não contemplado
com herança paterna, se impôs uma lei de salvação nacional, principalmente
em virtude do exacerbado conflito existente entre o governante e o clero, a
nobreza, a burguesia e, mais indiretamente, com as classes servis.
A
inabilidade na condução das assuntos de Estada, aliada às reivindicações
dos barões apoiadas pelo poder papal, deixaram finalmente encurralado o
soberano, culminando com a assinatura de um documento bem a contragosto do
governante, que sequer permitiu seu registro, possivelmente premeditando sua
destruição tão logo os ventos políticos voltassem a soprar em seu favor.
Vale lembrar que a inexistência de registro impedia que fosse formalmente
copiada e divulgada e, em conseqüência, cumprida.
A
“Magna Carta” (Magna Charta Libertatum) não se constituía em uma criação
original ou num modelo constitucional, Era redigida em latim, propositadamente
com a finalidade de dificultar o acesso aos letrados, mantendo as normas
virtualmente inacessíveis às massas, tanto que foi traduzida para o idioma
inglês apenas no século XVI. Mesmo assim, se constituiu num importante avanço,
uma vez inegável a sua influência em todas as constituições modernas.
Firmada
em 15 de junho de 1215, na localidade de Runnymede, condado de Surrey, com 67
cláusulas que, pela primeira vez afrontavam o poder dificultou de um
soberano, sendo que ao menos 12 delas beneficiavam diretamente o povo, embora
não criassem nenhum direito novo. Entretanto, foram instituídas diversas
normas de caráter pioneiro para a fundamentação dos Direitos Humanos.
Entre
as mais importantes estão as consignadas nos Artigos 48 e 49:
“48)
Ninguém poderá ser detido, preso ou despojado dos seus bens, costumes e
liberdades, senão em virtude de julgamento de seus Pares segundo as leis do
país.
49)
Não venderemos, nem recusaremos, nem dilataremos a quem quer que seja, a
administração da justiça.”
Estabeleceu
ainda, e de forma precursora, a unificação de pesos e medidas, que
protegeria os então consumidores contra as adulterações promovidas pelos
espertalhões e pelos poderosos.
“É
preciso que se olhe imparcialmente, em retrospecto. o panorama sombrio da
Europa na Idade Média, a fim de que se compreenda o alcance, a extensão benéfica
e as prerrogativas trazidas pela carta inglesa. Não foi ela um astro que
surgisse no firmamento das nações, para alumiar a consciência dos homens,
porém foi uma centelha inicial que serviu para despertar o espírito humano,
embotado pela barbárie e pelo feudalismo.”
(Jayme
de Altavila - Origem dos direitos dos povos)
Entre
outras garantias, a Magna Carta estabelecia a proporcionalidade entre delito e
sanção5,
a previsão do devido processo legal, o livre acesso à Justiça, assim como a
liberdade
de locomoção e a livre entrada e saída do país, lançando as sementes dos
princípios “da
legalidade”, da “reserva legal” e da “anterioridade da lei penal”
que iremos ver mais adiante.
Importante
lembrar que o servo não podia, então, sequer entrar ou sair do feudo,
comprar ou vender qualquer coisa sem autorização de seu senhor, subtraído
do poder de exercer qualquer direito de manifestação.
A
partir desse divisor de águas na relação de poder entre governantes e
governados, que ensejaria a derrocada do absolutismo, a burguesia européia,
então emergente, assumiu posições cada vez mais exigentes para com seus
dirigentes.
Cabe
ressaltar a importância do fato histórico dessa conquista, principalmente
sob a ótica de reafirmar que os governos são, e sempre foram, os maiores
violadores dos Direitos Humanos.
A
invenção da imprensa foi igualmente decisiva na multiplicação, acesso e
utilização dos códigos como mecanismo de balizamento de conduta social,
Entretanto, foi apenas com o surgimento dos Estados contemporâneos que se
produziram códigos capazes de efetivamente garantir os direitos neles
consignados. O principio já então vigente de que só o Estado poderia criar
normas jurídicas, atribui aos códigos a inestimável condição de
instrumento coletivo de referência legal.
“Petition
of Right”, de 1628, elencava diversas proteções tributárias que garantiam
a liberdade do indivíduo em hipótese de inadimplência.
O
Habeas Corpus Amendment Act, de 1679, regulamentava esse instituto jurídico
de garantia pessoal anteriormente previsto na Common Law.
Em
1689 surgiu a “Declaração de Direitos” (BilI of Rights), dotada de 13
artigos que cristalizavam e consolidavam os ideais políticos do povo inglês,
expressando significativas restrições ao poder estatal, regulamentando o
principio da legalidade, criando o direito de petição, assim como imunidades
parlamentares. Entretanto, restringia vigorosamente a liberdade religiosa.
No
entanto, as liberdades pessoais, que se procuraram garantir pelo habeas corpus
e o Bill of Rights do final do século, não beneficiavam indistintamente
todos os súditos de Sua Majestade, mas, preterencialmente, os dois primeiros
estamentos do reino: o clero e a nobreza. A novidade é que, pela sua formulação
mais geral e abstrata do que no texto da Carta Magna, a garantia dessas
liberdades individuais acabou aproveitando, e muito, à burguesia rica.
Pode-se mesmo afirmar que, sem esse novo estatuto das liberdades civis e políticas,
o capitalismo industrial dos séculos seguintes dificilmente teria
prosperado.”
(Fábio
Konder Comparato - A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos)