Projeto DHnet
Ponto de Cultura
Podcasts
 
 Direitos Humanos
 Desejos Humanos
 Educação EDH
 Cibercidadania
 Memória Histórica
 Arte e Cultura
 Central de Denúncias
 Banco de Dados
 MNDH Brasil
 ONGs Direitos Humanos
 ABC Militantes DH
 Rede Mercosul
 Rede Brasil DH
 Redes Estaduais
 Rede Estadual RN
 Mundo Comissões
 Brasil Nunca Mais
 Brasil Comissões
 Estados Comissões
 Comitês Verdade BR
 Comitê Verdade RN
 Rede Lusófona
 Rede Cabo Verde
 Rede Guiné-Bissau
 Rede Moçambique


Reforma do Sistema interamericano

Tradução :  Adriana Carneiro Monteiro

            Uma visão não governamental do processo de reforma
do sistema interamericano

Ariel     E. Dulitzky
Viviana Krsticevic
Alejandro Valencia Villa

I. Avaliação dos motivos do processo e a direção da reavaliação do sistema

II. Análise de algumas das propostas em discussão.  

A. A relação entre a Comissão e a Corte.

B. Transparência do Sistema: admissibilidade e duração do procedimento.

C. A confidencialidade e o uso da imprensa.

D. A doutrina de pertinência  

E. Sobre o vínculo operativo com as autoridades judiciais nacionais

F. Autonomia funcional do sistema 

G. O valor das recomendações  

III. Conclusões

 

I. Avaliação dos motivos do processo e a direção da reavaliação do sistema

O sistema interamericano de proteção dos Direitos Humanos, formado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (a Comissão) e a Corte Interamericana  de Direitos Humanos (a Corte), se encontra atualmente em um processo de redefinição de seu papel.

Em seus cinqüenta anos de funcionamento, tem evoluído em um processo de juridicização e efetividade dos mecanismos de proteção. Durante esse período, tem tido numerosos sucessos na promoção, exercício e defesa dos direitos humanos da região. Desempenhou papel de grande importância quando predominaram regimes autoritários, identificando e denunciando as graves e sistemáticas violações que ocorriam. Suas ações contribuíram para a abertura de espaços na sociedade civil e criaram um ciclo propício para o regresso da plena vigência das liberdades públicas.

Com o advento de governos eleitos democraticamente, a situação dos direitos humanos na América Latina melhorou consideravelmente. Todavia, as violações dos mesmos continuam. Ainda quando a maioria dos países não tem políticos planejados pelo aparelho do Estado contra violações graves, a omissão na investigação e castigo de execuções, torturas e outras violações responsabilizam o Estado internacionalmente. A impunidade continua sendo uma constante na nossa região nos anos noventa. Paralelamente, muitos Estados estão empenhados na melhoria da situação dos direitos humanos a nível doméstico, impulsionando  reformas legislativas, promovendo campanhas educativas, capacitando os membros da Força Pública, entre outros. Essa situação impõe novos desafios, discussões e preocupações, tanto para os Estados e para os defensores dos Direitos Humanos, como para os órgãos de supervisão internacional.

Todavia, essas compensações favoráveis à situação de direitos humanos no continente não se refletiam de maneira imediata nos órgãos do sistema interamericano. No final da década de oitenta e nos primeiros anos da década de 90, a Comissão não se caracterizou por ter uma atitude de acordo com os novos tempos que se viviam. A Comissão expediu durante esse período algumas decisões e relatórios sobre a situação de direitos humanos que resultaram sumamente valiosas; todavia, a razão jurídica da maioria das decisões não foi consistente com as decisões anteriores, nem suficientemente elaborada, nem tampouco o foram algumas das práticas processuais da Comissão. ( ) A gama de direitos examinados pela Comissão aumentou, mas o número de casos resultantes decresceu abruptamente nos últimos anos, ainda existindo centenas de casos na dependência de uma resolução final. Essa atitude da Comissão se traduziu na falta de resposta em muitos dos casos apresentados, com a conseqüente recusa de justiça. Todavia, à diferença da prática tradicional da Comissão durante os anos oitenta, a mesma remeteu numerosos casos à Corte . Durante o período em análise (entre o princípio da década e 1995), a Comissão se caracterizou por certa inconsistência nos critérios e por um perfil inferior, devido parcialmente à falta de juridicização das práticas da mesma, à desorganização administrativa, à delegação de decisões básicas do processo à Secretaria da Comissão e à incapacidade de adequação às novas condições políticas e de ação.

Entre 1995 e 1996, dois acontecimentos tiveram um forte impacto no desenvolvimento do sistema: a troca de Secretário Executivo da Comissão e a nova composição da Comissão. Em princípios de 1996, o Dr. Taiana assumiu suas novas funções como Secretário Executivo. Entretanto, a composição da Comissão foi trocada com a renovação parcial de seus membros em Janeiro de 1996.

Os membros da Comissão assumiram uma posição ativa no trato dos assuntos políticos e administrativos do processamento de casos e de elaboração de relatórios. Uma das principais preocupações da Comissão foi a de revisar as práticas processuais da Secretaria Executiva, num esforço de estabelecer critérios transparentes e eficientes de funcionamento do sistema interamericano, em particular em relação aos casos individuais. Essa nova prática se evidencia nas últimas sessões, onde se apresentam avanços significativos em matérias como relatórios de admissão de casos individuais, parâmetros para impulsionar soluções amistosas, critérios para a elaboração de relatórios sobre países, entre outros.

A avaliação do trabalho da Corte nos últimos anos resulta ainda mais despretensiosa pelo número delimitado de decisões que ela tem tomado. Por um lado, a Corte tem fortalecido a defesa dos direitos humanos através de sua jurisprudência (especialmente em seus primeiros anos  de funcionamento), na qual tem realizado uma contribuição especial às opiniões consultivas emanadas da mesma que supriram a falta de referência de casos à Corte pela Comissão durante um largo período, assim como na importante decisão dos casos hondurenhos. Em particular, a interpretação de alguns dos direitos consagrados pela Convenção se tem visto enriquecida por opiniões consultivas. Por outro, o pequeno número de casos contenciosos que tem tido oportunidade de examinar (-), não é representativo quanto ao número de casos tramitados pela Comissão e ao número de violações de direitos humanos  que se apresentam no continente, como quanto à própria representatividade dos direitos examinados. A Corte, em sua atual composição, tem elaborado uma valiosa jurisprudência em matérias de medidas de prevenção e reparação. Porém, de acordo com a perspectiva de numerosos juristas, a Corte não tem se dedicado a um consistente desenvolvimento essencial dos direitos, com o resultado de que a razão jurídica nas últimas decisões da Corte é menos elaborada que nos seus primeiros anos. É bem verdade que os Estados estavam desacostumados a receber demandas internacionais ante a Corte, e a ver a Comissão no papel de defensora das vítimas que lhe concede a Convenção; dessa forma, como produto de uma prática exclusiva da Comissão de enviar casos à Corte, os atritos entre ela e os Estados aumentaram.

Esses novos desafios e realidades têm gerado atitudes diferentes por parte dos Estados. Alguns têm respondido procurando que este renovado sistema interamericano se converta em um aliado à solução de muitos de seus problemas relacionados com a situação de direitos humanos. Esses Estados (entre eles, destacando-se a República da Argentina), têm-se caracterizado por uma atitude cooperante com o sistema, tanto a nível da Comissão como da Corte, utilizando-o como um meio para detectar algumas violações de direitos fundamentais cometidos tanto pela esfera executiva, como pela legislativa e judicial de seus países, impulsionando, dessa maneira, trocas nas políticas ou leis internas dirigidas a superar as situações violatórias à Convenção Americana de Direitos Humanos (a Convenção), e remediando violações em casos individuais. Outros Estados com graves problemas de direitos humanos, como Colômbia, têm-se comprometido ativamente nas soluções amistosas realizadas com o auspício da Comissão.

Outros Estados, ao contrário, em resposta à evidente vontade da Comissão de trabalhar mais eficientemente para a proteção dos direitos na região - em particular aqueles que se viram mais afetados - adotaram uma postura defensiva. A resposta foi propor reavaliar e modificar o funcionamento do sistema. O maior impulsionador das mudanças é o Peru, que tem pendentes mais de 150 casos perante a Comissão e 4 perante a Corte.

(-).

Em Junho de 1996, a Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou uma resolução encomendando ao Conselho Permanente ‘’a realização de uma avaliação do funcionamento do sistema com vistas a um processo que permita seu aperfeiçoamento, incluída a possibilidade de reformar os instrumentos jurídicos correspondentes, assim como os métodos e procedimentos de trabalho’’. Desse modo, resolveu promover um diálogo entre os Estados membros e entre estes, a Comissão e a Corte, assim como com especialistas, com vistas a contribuir para essa tarefa.

Como parte do processo, o secretário Geral do OEA, César Gaviria Trujillo e a Comissão, de 2 a 4 de Dezembro de 1996, convocaram um seminário sobre ‘’O sistema interamericano de promoção e proteção dos direitos humanos’’, em que participaram representantes dos Estados do hemisfério, especialistas e algumas organizações não governamentais.

O processo de reavaliação do sistema interamericano tem gerado duas posições opostas. Uma, de questionamento por parte de alguns dos Estados-membros da OEA. Países como Peru, México e Chile têm proposto iniciativas que, se aprovadas, debilitariam especialmente o trabalho do sistema interamericano. Entre as propostas que vêm impulsionando esses países, encontram-se a de estabelecer regras restritivas na admissibilidade das petições e na legitimidade processual, limitar a produção de relatórios gerais e especiais tanto sobre casos concretos como sobre as situações de direitos humanos em alguns países, determinar que o procedimento e os relatórios da Comissão sejam estritamente confidenciais e aprimorar o controle político sobre os órgãos do sistema. A outra posição, representada por alguns governos, pelos defensores de direitos humanos, pelas organizações não-governamentais, pelas vítimas e seus familiares, defende a consolidação, juridicização e maior efetividade do sistema interamericano.

O processo de avaliação do sistema pode ter aspectos sumamente positivos que permitam a avaliação das práticas e a sugestão de modificações necessárias no sistema. Especialmente se a discussão se dá no quadro de um debate que não se restrinja aos Estados; senão que inclua especialistas, os membros dos órgãos que os compõem, organizações não governamentais, etc. Nesse sentido, é interessante analisar as conclusões e recomendações do seminário organizado pela Comissão em Dezembro de 1996.

Os Estados têm o poder de decidir o que fazer, porém não devem esquecer que são os indivíduos os beneficiários do sistema e que são os Homens de carne e osso que compõem as nações do continente.

É nesse contexto que o Secretário Geral preparou um documento intitulado ‘’Em direção a uma nova visão do Sistema Interamericano de Direitos Humanos’’ a fim de enriquecer o processo de debate; algumas propostas desse documento serão comentadas a seguir. O documento foi distribuído às comissões permanentes e foi apresentado ao Conselho Permanente da Organização. O Dr. Gaviria se referiu a aspectos centrais do mesmo no seminário de dezembro.

II. Análise de algumas das propostas em discussão.

No processo que temos descrito se têm esboçado múltiplas propostas em relação ao procedimento diante da Comissão e da Corte e o papel que deveriam cumprir ambos os órgãos. Muitas delas teriam especial transcendência para o futuro do sistema com efeitos sumamente nocivos para os habitantes de nosso continente. Por exemplo, se tem proposto limitar o papel da Comissão a um simples órgão de promoção dos direitos humanos sem praticamente nenhuma função de tramitação de casos individuais, ou reduzir de diferentes maneiras o acesso das organizações não-governamentais de direitos humanos à Comissão.

Sem prejuízo de deixar firmada nossa posição contrária a ambas por levar a um sistema menos eficiente para a tutela dos direitos humanos, nas próximas seções analisaremos apenas algumas propostas que aparecem de uma ou outra maneira compiladas no documento elaborado pelo Secretário Geral da OEA.

A. A relação entre a Comissão e a Corte.  

Uma das propostas mais interessantes que está em debate é a de transformar a relação de trabalho entre a Comissão e a Corte, a fim de realizar mais eficientemente o trabalho dos órgãos com o objetivo de garantir o princípio de igualdade das partes e a integridade do sistema de proteção dos direitos humanos. Nesse sentido, e seguindo a mais avançada doutrina no tema, O Secretário Geral e alguns governos concordam com a importância de evitar que a Corte duplique as tarefas de determinação das ações que realiza a Comissão. Isto é, distribuir de maneira razoável as funções de investigação entre ambos os organismos em áreas de uma economia processual que evite a duplicação de certas atividades. Uma alternativa plausível é a proposta do Secretário Geral de conceder de maneira fundamental a tarefa da determinação das ações à Comissão, com o objetivo de que, somente de maneira excepcional, a Corte volte a tratá-las quando sejam ações supervenientes e relevantes.

Outro tema que corresponde à imparcialidade da Comissão é o papel que cumpre diante da Corte. Na atualidade, a Comissão atua na qualidade de parte, como defensora das vítimas diante da Corte. Esse papel gera a aparência de parcialidade, já que há uma passagem de juiz das partes - vítimas e Estados - na tramitação diante dela a advogado das vítimas e adversário do Estado na tramitação diante da Corte. A Comissão deve atuar em um quadro que lhe permita garantir a realidade assim como a aparência de imparcialidade à maneira de um Ministério Público a nível local em interesse da integridade do sistema de proteção. Em contrapartida, também concordamos com a importância da representação independente e direta dos peticionários diante da Corte, como recomenda o documento do Secretário Geral.

Um tema adicional que se vincula à aparência de imparcialidade é a faculdade da Comissão de enviar casos à Corte. Com vistas a eliminar a falta de imparcialidade, dever-se-ia estabelecer a possibilidade de que os peticionários tenham a legitimidade para submeter um caso à Corte - à maneira do Protocolo no 9 à Convenção Européia de Direitos Humanos - ou a Comissão deveria avaliar com especial atenção a solicitação dos peticionários de que um caso seja enviado ou não à Corte.

B. Transparência do Sistema: admissibilidade e duração do procedimento.

Uma matéria na qual o sistema ganharia muito em qualidade é fixar com exatidão os critérios e a tramitação dos casos diante da Comissão Interamericana, tal como acertadamente assinala o documento do Dr. Gaviria. O tema da admissão e duração do procedimento deve estabelecer-se de acordo com regras flexíveis, porém razoáveis, que estabeleçam prazos certos para a tomada de determinações. Tanto os Estados como os peticionários necessitam garantir um sistema que não permita que a tomada de certas decisões se atribua a causas políticas ou arbitrariedades. Se a determinação do número de relatórios não depende da maturidade dos casos nem do prazo transcorrido, senão da vontade e esforço de um relator ou advogado da Secretaria, os Estados e peticionários certamente podem atribui-lo a razões que não necessariamente sejam adequadas. Os recursos econômicos e humanos da Secretária da Comissão que permitam a contratação de pessoal especialista e o pagamento de salários para a gradual elevação da função de membro da Comissão a tempo integral, constituem uma condição necessária para que a mesma responda eficientemente às exigências dos Estados, especialistas e representantes das vítimas.

Um sistema transparente de admissibilidade deveria estabelecer alguns pontos essenciais. Entre os reunidos na proposta do Secretário Geral estão os seguintes: Primeiro, contar com um registro imediato da toda comunicação recebida com a respectiva notificação de recepção imediata aos peticionários. Segundo, dar notificação imediata aos governos sobre qualquer comunicação que lhes diga respeito a fim de lhes permitir atuar nessa situação ou caso; tudo isso entendendo-se que o registro das comunicações e a notificação ao governo não implica que exista um caso contra o Estado, do que deveria desejar-se firmeza na nota inicial. Terceiro, contestar as faculdades da Secretaria Executiva de rechaçar prima facie as solicitações sem dar ao governo a possibilidade de solucionar seus próprios assuntos, ainda quando a Secretaria não tenha faculdades para declarar a inadmissibilidade de um caso. Quarto, promover o estabelecimento de um procedimento de reconsideração das decisões de inadmissibilidade por parte da Comissão, seguindo o modelo do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas. Quinto, estabelecer um sistema especial de registro e tramitação das petições de medidas cautelares por seu caráter urgente. Sexto, o cumprimento dos prazos estabelecidos nos Regulamentos.

C. A confidencialidade e o uso da imprensa.

Alguns Estados estão seriamente preocupados em relação ao que consideram um uso prejudicial da imprensa por parte de alguns dos usuários do sistema. Sustentam que muitas vezes seus governos são condenados pela imprensa em virtude da apresentação de um único caso à Comissão Interamericana. Frente a isso, existe uma importante função da imprensa de manter informada a opinião pública. A difusão do trabalho da Comissão e da Corte cumpre um papel fundamental na promoção dos direitos humanos no hemisfério e contribui para a transparência do sistema. As notícias da imprensa não vão cessar com estabelecimento de regras de confidência sobre o procedimento, já que as vítimas vão continuar gozando da liberdade de informar à opinião pública sobre as denúncias submetidas ao órgão internacional em virtude das regras estabelecidas no próprio tratado para proteger a liberdade de expressão. Porém, as regras de confidência podem limitar a transparência do processo.

Frente a essas tendências contrapostas, a alternativa de criar um Secretário de Imprensa da Comissão, tal como propõe o Secretário Geral, contribuiria enormemente para superar esses problemas. Essa iniciativa permitiria a emissão de comunicados à imprensa e a consulta para confirmar informação oferecida pelos peticionários ou pelos Estados. Assim se alcançaria um equilíbrio razoável de interesses a respeito de informação fugaz ou mal intencionada. Outra alternativa para esclarecer as práticas seria a Comissão imitar o procedimento da Corte Internacional e de seu par europeu de emitir comunicado à imprensa cada vez que adota uma decisão, informando o conteúdo da mesma.

D. A doutrina de pertinência

O propósito dos sistemas de proteção é salvaguardar os direitos básicos de cada indivíduo em virtude de sua dignidade e, em segundo lugar, alguns dos mecanismos foram dessa forma pensados no sentido de que atuariam como sistemas anteriores de alerta para evitar as violações graves e nocivas que ocorreram na Europa na Segunda Guerra Mundial e que sensibilizaram a comunidade internacional a fim de criar um sistema de proteção internacional.

Levando em conta o propósito e a história dos mecanismos internacionais de proteção dos direitos humanos, não compartilhamos com o Secretário Geral sua proposta de estabelecer um mecanismo que permita eliminar casos em sua etapa de admissão em virtude de um critério discricionário. O documento sustenta que é necessário que haja mais que uma violação aos direitos protegidos e que os recursos judiciais a nível interno fracassem para que se possa iniciar um caso. Sugere-se que se estabeleça uma doutrina da pertinência a fim de deixar de lado casos que não devam ser objeto de uma decisão judicial. É muito provável que o caráter discricionário da faculdade politizaria o papel da Comissão nesta etapa inicial. Nem todos os Estados estariam sujeitos às mesmas regras, já que aqueles Estados com maior influência política poderiam evitar que se discutissem certos casos sensíveis politicamente. Por outro lado, nem todas as vítimas teriam direito à garantia de seus direitos. É razoável sustentar que o sistema interamericano não pode nem deve processar todas as denúncias que recebe, como de fato rechaça um número considerável de denúncias. Porém a solução ao trâmite de casos é definir com clareza as pautas de admissibilidade, publicando todas as decisões que a Comissão adote nesta matéria.

Alguns Estados têm delineado uma doutrina da discricionariedade, que consistiria na seleção de casos exemplares a fim de estabelecer precedentes interamericanos ao modo de uma Corte Suprema Interamericana. Algumas Cortes Supremas têm o poder discricionário de atuar apenas naqueles pontos sobre os quais haja uma jurisprudência clara ou consistente dos tribunais inferiores. Isso é razoável em sistemas que estabelecem vários instâncias para a garantia judicial de direitos, e quando a decisão da Corte Suprema obriga os tribunais inferiores. No caso do Sistema Interamericano, a Comissão e a Corte constituem a última e muitas vezes única segurança de justiça. Em resumo, é um erro técnico e político assemelhar o sistema internacional de proteção a uma Corte Suprema, ou fazer da proteção internacional uma faculdade discricionária, o que iria contra o objetivo e propósito do sistema interamericano e contribuiria para a deterioração de sua função.

E. Sobre o vínculo operativo com as autoridades judiciais nacionais

A relação e, em especial, o envolvimento dos ombudsman, órgãos fiscalizadores e defensores no sistema interamericano, propostos pelo Dr. Gaviria, têm a capacidade de enriquecer o sistema de proteção dos direitos humanos.

Com o objetivo de aproveitar a experiência e conhecimento das realidades nacionais e contatos com os distintos atores envolvidos nos casos dos ombudsman, poderiam ser contempladas as seguintes possibilidades de sua participação no sistema interamericano: primeiro, solicitação em determinados casos de uso de algumas provas que a Comissão lhe peça ou que contribua com meios probatórios que possam fazê-lo; segundo, solicitação de produção de opiniões em Direito sobre determinados pontos requeridos pela Comissão; terceiro, incorporação de alguns dos procedimentos de solução amistosa; quarto, é possível considerar a possibilidade de a Comissão fornecer notificação de uma petição inicial simultaneamente à autoridade competente (Embaixada, Ministério das Relações Exteriores, etc.) e ao respectivo ombudsman para que formule as observações ou contribua com a informação que estime conveniente.

Porém, acreditamos que violaria as regras básicas do processo estabelecer procedimentos desiguais baseados exclusivamente na qualidade do peticionário, tal como propõe seu documento.

A rapidez no procedimento deve depender da gravidade e urgência do caso e da prova aduzida, não de quem o apresenta.

F. Autonomia funcional do sistema

Também compartilhamos quase todas as sugestões relacionadas com o fortalecimento da administração do sistema (entre outras, que a Comissão deveria eleger seu Secretário Executivo e seu pessoal e controlar seu orçamento), que aparecem no documento do Secretário Geral. A autonomia administrativa do sistema, sem dúvida, por imprimir uma maior eficiência e celeridade em suas funções.

A capacidade da Secretaria da Comissão de investir maiores recursos na contratação de pessoal especializado e no pagamento de salários para a gradual elevação da função de membro da Comissão a tempo integral é uma condição necessária para que a mesma responda eficientemente às exigências dos Estados, especialistas e representantes das vítimas.

G. O valor das recomendações

A adoção da legislação nacional necessária para garantir o cumprimento das decisões do sistema interamericano não deve circunscrever-se apenas às sentenças da Corte, como sugere o documento do Secretário Geral. Nossa posição é a de que as recomendações da Comissão são obrigatórias e não meramente posições morais sem nenhum valor.

É importante que os Estados adotem modelos similares aos seguidos pela Colômbia (legislação que estabelece o procedimento de execução das recomendações relativas a indenizações) ou o projeto de lei argentino (faz-se obrigatório o cumprimento de todas as recomendações e, se o Governo não estiver de acordo, deve enviar o caso à Corte)

III. Conclusão

O sistema interamericano tem demostrado ser sumamente útil como instrumento para defesa e promoção dos direitos humanos. Porém, a Comissão e a Corte ainda não têm desenvolvido todas as potencialidades que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos lhes confere; e têm sido alvos de merecidas e não merecidas críticas pelos distintos atores do sistema interamericano.

O processo de avaliação do mecanismo regional de proteção deve servir para identificar aquelas áreas em que seja necessário esclarecer critérios e procedimentos, assim como propor as reformas necessárias, tendo em conta a experiência comparada à luz das realidades do nosso continente e sem perder de vista que o propósito da discussão deve ser o fortalecimento do mecanismo de proteção dos direitos humanos. Neste processo, é essencial que se garanta a ampla participação de especialistas na área de direitos humanos, dos membros dos órgãos do sistema, dos Estados, das organizações não governamentais e dos defensores das vítimas.

Os valores de condução do processo de reforma devem ser a celeridade, a transparência, a igualdade entre as partes, a segurança jurídica, a despolitização e a eficácia do procedimento diante da Comissão e da Corte. Isso deve complementar-se com a condição necessária para que essas garantias sejam efetivas, isto é, dotar ambos os órgãos de recursos econômicos e humanos suficientes para que possam desempenhar a contento suas funções.

Porém, a eficácia da reforma necessita mais do que de órgãos de proteção; requer, do mesmo modo, vontade política dos Estados de cumprir as obrigações assumidas na Convenção, modificando a legislação e as práticas a nível local quando seja necessário e, certamente, cumprindo as recomendações e sentenças dos órgãos do sistema.

Para desenvolver esse processo de diálogo e aperfeiçoamento, não é necessário reformar os instrumentos convencionais do sistema interamericano. Basta a discussão ampla, enriquecedora e de boa fé dos múltiplos atores do mesmo, que posteriormente se refletirá em modificações de normas regulamentares ou estatutárias, em contribuições econômicas, em vontade e apoio político a um sistema regional de proteção dos direitos humanos básicos.

1. Disso dão conta o relatório elaborado pela Associação de Advogados de Nova York, os sucessivos relatórios anuais do Internacional Human Rights Group, o Relatório Anual de 1995 do Human Rights Watch, etc.

2. Cabe recordar que somente os Estados ou a Comissão têm a capacidade de submeter casos à Corte segundo o estabelecido no art. 61.1 da Convenção.

3. Os casos se referem, em sua maioria, a violações ao direito à vida ou violações graves às garantias do processo devido. Entre eles, a demolição intencional de uma prisão a fim de conter um motim, causando a morte de mais de uma centena de processados. Corte IDH, Caso Neira Alegria e outros, Peru.

 
Desde 1995 © www.dhnet.org.br Copyleft - Telefones: 055 84 3211.5428 e 9977.8702 WhatsApp
Skype:direitoshumanos Email: enviardados@gmail.com Facebook: DHnetDh
Busca DHnet Google
Notícias de Direitos Humanos
Loja DHnet
DHnet 18 anos - 1995-2013
Linha do Tempo
Sistemas Internacionais de Direitos Humanos
Sistema Nacional de Direitos Humanos
Sistemas Estaduais de Direitos Humanos
Sistemas Municipais de Direitos Humanos
História dos Direitos Humanos no Brasil - Projeto DHnet
MNDH
Militantes Brasileiros de Direitos Humanos
Projeto Brasil Nunca Mais
Direito a Memória e a Verdade
Banco de Dados  Base de Dados Direitos Humanos
Tecido Cultural Ponto de Cultura Rio Grande do Norte
1935 Multimídia Memória Histórica Potiguar