MECANISMOS
EFICAZES
DE
IMPLEMENTAÇÃO
DOS DIREITOS:
O
DESAFIO BRASILEIRO
Valéria
Getulio de Brito e Silva
Ricardo Barbosa de Lima
Na
década passada, quando completamos 50 anos da assinatura da
Declaração Universal dos Direitos Humanos. vimos que a promessa
da modernidade, de um mundo cada vez mais inclusivo o igualitário
entre os diversos grupos de cidadãos, não se cumpriu. Pelo
contrario. os fundamentalismos étnicos e religiosos, a diferenciação
econômica entre os países ricos do Norte e os empobrecidos do
Sul, a favelização e marginalização da população das
periferias das grandes cidades, o desemprego em escala mundial,
entre outros [atores que caracterizam os aspectos negativos da
globalização, acirraram os conflitos entre diferentes grupos
sociais e sociedades.
Nesses
últimos anos, em razão do aumento dos índices de violência em
nossa sociedade, a questão da implementação dos direitos
humanos ganhou nova importância e visibilidade social. A situação
de desrespeito aos direitos humanos agravou-se a tal ponto que
setores da imprensa transformaram a noticia da violência e da
desigualdade social em espetáculo e, nesse contexto, a sociedade,
civil e política, aparece como refém desse estado de violência
e de exclusão social.
O
problema está posto: quais soluções mais duradouras os
governos podem construir para os problemas colocados pela questão
da consolidação dos direitos humanos e a sua perversa
contra-face: a violência e a desigualdade?
O
debate sobre os mecanismos de implementação dos direitos
humanos, como da própria compreendo desses alio pode prescindir
do estudo da realidade na qual se quer atuar, da definição de
prioridades e ações imediatas. Para que essas ações possam ser
eficazes, devem partir de uma visão de interdependência e
indivisibilidade dos direitos humanos. “Todos
os direitos humanos para todos, é este o único caminho seguro
para a atuação lúcida no campo da proteção dos direitos
humanos”, como reitera o professor Augusto Cançado Trindade
(1994:20).
Existem
níveis de obrigações comuns que perpassam todos os direitos
humanos e que, no limite, expressam a obrigação de respeito,
proteção e satisfação. Deste modo, nenhuma categoria de
direito pode ser vista como mais importante ou superior a outra,
todas se complementam e devem oferecer o mesmo grau de
exigibilidade.
A
Declaração Universal dos Direitos Humanos aio
pode ser tratada como se fosse uma colcha de retalhos, de
forma separada, em que pese a existência de dois instrumentos
internacionais que tratam separadamente dos direitos humanos: o
Pacto dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais. A década de 90 foi extremamente prodigiosa
no que tange à realização de grandes e fundamentais debates
internacionais vinculados às temáticas afeitas aos direitos
humanos: discutiu-se e chegou-se a consensos e acordos
internacionais importantes nas áreas dos direitos das mulheres,
da criança e do adolescente, do meio ambiente, do
desenvolvimento, dentre tantas outras. Nesse processo de construção
e atualização constante dos problemas que atingem diretamente os
direitos humanos, a população mundial, de forma mais acentuada
em alguns lugares e noutros de forma mais subjacente, demonstra o
esforço de milhares de organizações civis e das Nações Unidas
no sentido de superar as desigualdades. exclusões e atrocidades
vivenciadas. Portanto, não é mais possível pensar em desenvolvimento
sem direitos humanos para todos.
O
texto constitucional brasileiro de 1988 apresenta, a começar
pelo preâmbulo da Carta Magna, várias similitudes com esse
processo internacional de construção de consensos e busca de
mecanismos que possam assegurar a prevalência dos direitos
humanos, na medida em que faz referência aos direitos sociais,
bem-estar e desenvolvimento como valores da sociedade brasileira:
o art. 1º, que institui os valores sociais do trabalho como um
dos fundamentos do Estado Democrático de Direito; o art. 3º, que
estabelece como objetivos fundamentais da República a
solidariedade, o desenvolvimento nacional e a erradicação da
pobreza e da marginalização e redução das desigualdades
sociais e regionais.
Encontram-se
também estabelecidos na Constituição Brasileira o direito à
autodeterminação, à não-intervenção, à igualdade entre os
estados, à solução pacífica dos conflitos, à defesa da paz,
ao repúdio ao terrorismo e ao racismo. à cooperação entre os
povos para o progresso da humanidade e à concessão de asilo
político, que estão presentes no Art. 4º.
Quanto
ao direito à propriedade, o texto constitucional o estabelece,
nos incisos XXII ao XXXI. do art. 5º, nos quais constam normas
gerais relativas à propriedade e aos limites a esse direito. O
direito ao trabalho consta do art. 5º, inciso XIII e art. 7º com
respectivos incisos. Os direitos sociais (política urbana e agrária)
aparecem nos artigos 182, 183,184 ao 191. O direito à saúde está
assegurado no art. 196. Além disso, encontramos no Título VIII -
Da Ordem Social, Capítulo LI - Da Seguridade Social, questões
fundamentais presentes quando o enfoque são os direitos humanos.
Afora outros direitos vinculados à educação e à cultura,
presentes no Capítulo III da Constituição, dentre outros
(Benvenuto Jr. 2000 :5).
Os
direitos civis e políticos também estão largamente assegurados
no texto constitucional de 1988. No entanto, a similitude
existente entre o que aqui ressaltamos como construção de
consensos internacionais na área dos direitos humanos e a Carta
Magna brasileira não tem sido suficiente para a prevalência
dos direitos humanos em nosso país.
A
realidade brasileira não deixa dúvidas sobre as histórias e já
estruturais violações aos direitos humanos. Soma-se a esta situação)
a visão equivocada de sobreposição entre os direitos humanos,
que alude maior importância aos direitos civis e políticos em
detrimento dos direitos econômicos. sociais, culturais e
ambientais.
Os
desafios para a implementação de mecanismos eficazes de
defesas dos direitos humanos no Brasil partem da necessidade de
superação de quatro pontos preliminares:
1.
a não adoção de políticas públicas capazes de atender concreta
e definitivamente as demandas históricas vividas por todos
aqueles que não têm acesso (ou quando têm, este acesso ocorre
de forma limitada) ao mercado, à propriedade, á cultura, à
educação. á saúde, à segurança, à moradia, enfim, a todos
05 meios que propiciam uma vida integral e digna;
2.
a extraordinária concentração da renda;
3.
os limites colocados para o acesso da maioria da população à
justiça, como morosidade dos processos impetrados que tratam de
questões penais, cíveis e trabalhistas e
4.
a discriminação racial, de gênero, de opção sexual e de faixa
etária ainda existente nos espaços públicos e privados,
exigindo a adoção de ações afirmativas capazes de incluir e
não apenas proteger, sobretudo frente ao processo de feminilização
da pobreza. da apartação) da cidadania dos afrodescendentes,
da desqualificação profissional de jovens e da exclusão de
idosos, portadores de deficiências e doentes crônicos das
atividades produtivas e das atividades socialmente
significativas.
No
Brasil, temos cerca de 44 milhões de pessoas que sobrevivem em
condições extremamente precárias, com uma renda mensal inferior
a meio salário mínimo (Hoffman, apud
Mercadante: 2000): são 15,2 milhões de analfabetos absolutos
(dados do MEC) e estima-se a existência de cerca de 30 milhões
de analfabetos funcionais. A população brasileira na faixa etária
entre 14 e 17 anos de idade 6 da ordem de 28 milhões de crianças.
Como os dados oficiais apontam uma escolarização liquida
(apenas as crianças entre 7 e 14 anos de idade) de 95,5Ç
no ensino fundamental, pode-se concluir que existem cerca de
1.26 milhões de crianças de 7 a 14 anos fora da escola.
Portanto,
a pobreza no país não pode ser percebida como um fenômeno
isolado, conjuntural ou residual, capaz de ser solucionado pela
via filantrópica ou assistencialista, tão pouco constitui-se em
uma “deformação” do funcionamento da economia e da sociedade
brasileiras. Como analisa o Deputado Aloizio Mercadante,
a
pobreza. assim como a desigualdade e a exclusão social, é
uma manifestação inerente &
dinâmica de um mesmo
processo - o desenvolvimento e funcionamento do capitalismo nas
condições específicas da realidade brasileira. Em consequência,
a natureza destes fenômenos só pode ser plenamente apreendida
em sua relação com os fatores estruturais que determinam a geração
e reprodução contínuas, sob diferentes modalidades em cada fase
da nossa evolução histórica, dos estados de pobreza e
marginalidade social (Mercadante, 2000).
O
Governo Federal e sua base na Chiara dos Deputados pretendem
solucionar o problema da pobreza e exclusão social no Brasil,
tendo como sustentação um projeto político nitidamente
neoliberal, acrescido de uma tênue maquiagem social”. Essa política
segue quase que estritamente as orientações do Fundo Monetário
Internacional. Por outro lado, organizações da sociedade civil,
igrejas e partidos políticos têm buscado aprofundar o diagnóstico
dos determinantes da pobreza e exclusão social, objetivando
contribuir com uma contraproposta ao neoliberalismo.
Compreende-se
que é necessário aliar ações focalizadas com ações
estruturais, com vistas a implementar um modelo de desenvolvimento
sustentável. que assegure a promoção e a defesa dos direitos
humanos em sua integralidade. Essa linha de compromisso político,
social e econômico distingue-se em muito da adoção de políticas
públicas eminentemente assistencialistas e pensa assistência
social como determina a LOAS: de segurança pública preventiva e
não apenas repressiva: de educação e saúde para todos como um
direito e não uma dádiva estatal; de habitação. saneamento básico
e transporte como expressões do exercício concreto da
democracia.
Torna-se
preponderante que ocorra no país uma ação consistente, que
assegure a superação da absurda concentração da riqueza e da
renda em nosso país. Vejamos: 1% da população, pouco mais de
1,5 milhão de pessoas (equivalente a cerca de 400 mil famílias)
controla 17% da renda nacional e 53% do estoque líquido de
riqueza privada do pais.
O
Brasil possui um padrão de distribuição de recursos
extremamente injusto. De acordo com estudos realizados pelo Núcleo
Interdisciplinar de Estudo sobre Desigualdades, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, acerca da desigualdade no Brasil,
calcula-se que 7% das crianças no Brasil sofram de subnutrição.
Por outro lado, a produção nacional de grãos seria suficiente
para alimentar uma vez e meia a população total. Quanto à
erradicação da pobreza, percebe-se que os recursos necessários
para seu fim estariam na ordem de 5% da renda nacional para a
sua completa e eliminação.
Conjugados
às evidências referentes ao tipo de desigualdades
distributivas acima mencionadas, aquelas referentes à distribuição
por gênero, raça, dentre outros, percebe-se que, no Brasil, os
padrões de distribuição de recursos são, da mesma forma,
extremamente injustos. Levando-se em conta que mais de 75% da
população mundial vive com uma renda per
capita inferior à brasileira, é forçoso reconhecer que as
precárias condições de vida de segmentos importantes da
sociedade brasileira advém, não de uma escassez absoluta de
recursos, mas, sim, da má distribuição desses. Em conformidade
com o Relatório sobre Desenvolvimento Humano da ONU de 1998, no
Brasil, 20% dos mais ricos controlam mais de 64% da renda,
enquanto os 20% mais pobres sobrevivem com 2,5% da renda.
O
acesso de todos á justiça é um dos pressupostos básicos para
um estado que se pretende democrático. No entanto, em nosso país
as estruturas judiciárias, e sobretudo o seu funcionamento, não
têm cumprido com sua missão, uma vez que a população mais
necessitada não tem acesso ã Justiça. Além disso, esse poder
tem servido, sobretudo, para a continuidade dos privilégios
econômicos e políticos. Nesse prisma. a reforma do Judiciário
pode e esperamos venha a ser um importante passo na construção
de uma Justiça que não feche os olhos para os pobres, abrindo-os
apenas para os ricos.
Nesse
contexto, a construção de consensos internacionais e a sua
correspondência no ordenamento jurídico interno, não têm sido
suficientes para assegurar a plena efetivação da não-discriminação
por motivo de raça, cor. sexo, religião, opinião política ou
de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, situação
econômica, nascimento) ou qualquer outra situação”
(Constituição Federal). Essa breve análise da realidade nos
leva a dizer que ainda não logramos a efetiva promoção e proteção
dos direitos humanos e que. portanto, ainda temos muito a fazer.
Torna-se
necessária a realização de esforços redobrados por parte das
organizações da sociedade civil brasileira. no sentido de
pressionar o Estado, por intermédio de seus governos, a criar
condições materiais e institucionais para o eletivo exercício
dos direitos humanos de forma universal, integral e indivisível,
especialmente para os chamados grupos vulneráveis e em situação
de risco que sofrem discriminação econômica e social,
especialmente em face das características ético-raciais. Esses são
os negros e índios, mulheres, nordestinos, trabalhadores rurais,
crianças e adolescentes em situação de rua, populações de
rua, portadores de necessidades especiais. dentre outros.
Por
outro lado, vale destacar que os esforços realizados para a
construção de um Programa Nacional de Direitos Humanos pelo
Governo Federal não lograram a superação da visão dicotômica
expressa nesse Programa Nacional no que tange aos direitos civis
e políticos, de um lado, e aos direitos econômicos, sociais e
culturais, de outro. Além disso, esse ainda não obteve o devido
compromisso por parte dos Governos Estaduais e Municipais para a
formulação e concreta implementação de Programas nos níveis
estaduais e municipais, com exceção do Estado de São Paulo, que
já instituiu seu Programa Estadual de Direitos Humanos.
Por
fim, ressaltamos que a importância do compromisso de todos com
a luta pelos direitos humanos deve ser uma ação cotidiana e
organizada. Não podemos nos intimidar se as dificuldades são
enormes e os obstáculos também. Não podemos nos curvar a eles,
temos que continuar a desenvolver nossos trabalhos, ações e denúncias,
sempre na perspectiva de apresentar os direitos humanos como
fundamento de uma intransigente defesa da vida e de uma
cidadania plena e integral.
BIBLIOGRAFIA
BENVENUTO
ir. Os direitos econômicos,
sociais e culturais em direitos Humanos: uma justificação. UFPE,
Recife, dissertação de mestrado (mimeo).
BRASIL,
Constituição da República Federativa do Brasil, 1998.
MERCADANTE,
Aloizio. Pobreza e desigualdade.
Câmara dos Deputados. Brasília, 2000.
TRINDADE,
Antônio
Augusto Cançado. Apresentação. In Os Direitos Humanos como Tema
Global. São Paulo,
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