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Da Diferença à Igualdade: 
Os Direitos Humanos de Gays, Lésbicas e Travestis

Luiz Mello de Almeida

Sociólogo e Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília – UnB

Não parece absurdo dizer que nem todos os seres humanos que vive(ra) no que se convencionou mar de mundo ocidental reconhece(ra)m os homens gays e mulheres lésbicas como seus iguais em espécie. Mesmo antes do surgimento, em fins do século XIX, da “homossexualidade” enquanto diagnóstico médico-psicológico e do “homossexual” como construtor identitário, um número significativo de pessoas já vi­nha se esforçando para convencer a humanidade de que uma das características principais do ser humano ple­namente desenvolvido é a busca de complementaridade sexual e amorosa com o sexo oposto. Não é à toa que, ainda hoje, “para a maioria das pessoas, o homossexual pertence a uma raça diferente da do homem viril” (Hocquenghem. 1980: 43), e, acrescente-se, da “mu­lher verdadeira”, no caso das lésbicas.

Por contrariar parâmetros supostamente naturais e divinos, a existência de desejo sexual e de gratificação amorosa entre pessoas do mesmo sexo tem sido sistema­ticamente considerada pecado, crime ou doença, passí­veis de arrependimento, punição ou cura, dependendo do enfoque — religioso, jurídico ou médico — adotado. Se na Grécia e na Roma antigas, respectivamente. o contato afetivo-sexual entre cidadão e adolescente impúbere e entre cidadão e escravo — desde que o cidadão fosse sempre o agente penetrante, ativo, no vínculo — era visto com uma expressiva aceitação social (Sartre, 1992), ao longo do processo de cristianização do Ocidente o amor entre pessoas do mesmo sexo passou a ser visto como um misto de pecado-crime-doença.

Na atualidade, mesmo quando em parte expressiva do inundo ocidental os homossexuais não mais são vis­tos. necessariamente, como criminosos ou doentes — embora nau tenham perdido a condição de pecadores — parece que seu estatuto de seres humanos ainda não se encontra plenamente assegurado, talvez porque ain­da seja recorrente a idéia de que os homossexuais sub­vertem as leis de Deus, da natureza e da sociedade, no próprio cerne do que torna humano um ser humano: a capacidade de amar e ser amado (Sullivan, 1996). Para muitos, talvez os homossexuais sejam mesmo marcia­nos , máquinas sexuais desumanizadas em sua “essên­cia”, pois, como afirma Costa:

(...) ao aprendermos a usar apropriadamente a pa­lavra homem’ ou ‘humano’, quando se trata de morai sexual, aprendemos a distinguir entre os que são moralmente diferentes mas iguais — os homens e as mulheres — e os que são moralmente diferentes e desiguais: os ‘heterossexuais’ são su­periores e os ‘homossexuais’, inferiores (1992: 149, itálicos do autor).

Em face das fortes reações que o desejo e a práti­ca homossexuais costumam despertar no imaginário heterocêntrico dominante, cunhou-se, inclusive, o ter­mo homofobia, para designar um misto de ódio e medo irracionais que muitos seres humanos, particularmente homens, sentem em relação às pessoas homossexuais As origens desta rejeição profunda à homossexualidade costumam ser atribuídas aos desejos e fantasias homos­sexuais que habitam. consciente ou inconscientemente. o self do sujeito homofóbico (Trevisan, 1997; Nolasco. 1993; Axpitarte, 1991; Gauderer, 1980). Segundo Badinter, os homófobos são pessoas conservadoras, rígidas, favoráveis à manutenção dos papéis sexuais tra­dicionais, inclusive em outras culturas” (1993:18). Via de regra, a homofobia costuma estar associada ao machismo e ao fundamentalismo religioso, podendo as­sumir variadas formas de manifestação, associadas ou não à misoginia, variando desde o preconceito camuflado e racionalmente administrado até as explosões de violência física contra homossexua!s.

 

Aproximando o Foco

 

Ao longo do ano 2000, pelo menos quatro marcos importantes podem ser destacados no que diz respeito à luta pela garantia dos direitos humanos de gays, lésbicas e travesti s no Brasil:

1) A publicação, no Diário Oficial da União (08.06.00). da Instrução Normativa n0 25, do Instituto Nacional do Seguro Social, a qual “estabelece, por força de decisão judicial, procedimentos a serem adotados para a concessão de pensão por morte de companheiro ou companheira homossexual”;

2) A realização de uma das maiores manifestações po­pulares da história recente do Brasil: a passeata que muniu mais de 100 mil pessoas na cidade de São Paulo, em comemoração ao Dia do Orgulho Gay’;

3) A prisão do grupo de skinheads acusados de espan­car e matar o adestrador de cães Edson Neris, quan­do este passeava de mios dadas com outro homem na Praça da República, em Suo Paulo, numa noite de fevereiro de 2000 e

4) O envio, por grupos neonazistas, em setembro de 2000, de pacotes-bomba a um funcionário da Anis­tia Internacional e à Associação da Parada do Orgu­lho GLBT (gays. lésbicas. bissexuais e transgêneros) de São Paulo. al6m de cartas ameaçadoras a pessoas envolvidas na luta em defesa dos direitos humanos e da cidadania de homossexuais.

Seguramente, a problematização dos significados sociais de cada um destes marcos foge aos objetivos deste artigo. assim como não seria suficiente para traduzir a diversidade de iniciativas e lutas que estio ocorrendo no Brasil e no mundo com vistas a assegurar o reconhe­cimento da igualdade entre heterossexuais e homossexu­ais na esfera pública. Todavia, não se pode deixar de destacar que tais marcos sinalizam que a questão dos di­reitos humanos da população homossexual brasileira está mais do que nunca na ordem do dia, seja pelo crescente movimento de organização em nível da sociedade civil, seja pela necessidade de enfrentamento da intolerância social e da violência que ainda atingem este grupo minoritário.

Para se ter uma idéia da brutal e cotidiana violação dos direitos humanos de gays, lésbicas e travestis na contemporaneidade, deve ser destacado que, no relatório “Quebrando o Silêncio”, elaborado pela Anistia Internacio­nal, em 1998, afirma-se que atitudes homofóbicas são co­muns cm pelo menos 150 países, enquanto apenas 13 dispõem de legislação que proíbe a discriminação de homos­sexuais. Não são incomuns as ameaças de morte e o apedrejamento em praça pública em função da orientação sexual homossexual, sendo a “homofobia de Estado” um fenômeno que atinge 2/3 do planeta. Há pena de morte para práticas homossexuais no Paquistão, Irã, Arábia Saudita, Iraque, Sudão e Afeganistão.

Ainda segundo a Anistia Internacional, a homossexu­alidade masculina 6 proibida, por lei, em 83 países, en­quanto o lesbianismo é legalmente proibido em 44. Esta maior incidência de explícita criminalização da homosse­xualidade masculina talvez possa ser compreendida como resultante do fato de que, em muitas partes do mundo, a sexualidade da mulher é considerada praticamente nula ou é controlada de forma tão veemente na esfera dos costu­mes — vide a frequência das cirurgias de extirpação de direitos em vários países africanos, por exemplo — que a explícita criminalizaçio do lesbianismo torna-se uma ques­tão de menor importância em alguns ordenamentos jurídi­cos específicos. As interdições em relação ao lesbianismo costumam ser, assim, mais que legais, morais (Brash, 1998).

Neste contexto, a construção de uma identidade ho­mossexual parece ser a base a partir da qual os homosse­xuais ingressam na arena política. Especialmente a partir de fins dos anos 60, com os acontecimentos desencadea­dos pelos já referidos conflitos de Stonewall, a população homossexual estadunidense, inspirada nos exemplos de luta por direitos civis dos negros e das mulheres, passa a afir­mar a especificidade e o orgulho de sua identidade, funcio­nando como um pólo irradiador da consolidação deste novo projeto identitário em escala mundial. Ao procurarem a afir­mação de sua igualdade formal na esfera pública, os ho­mossexuais estadunidenses lutariam, ao mesmo tempo, pelo reconhecimento de sua diferença, de sua especificidade, decorrente do lato de escolherem iguais biológicos como parceiros afetivos e sexuais. “Após um século sob os olha­res do outro, as bichas inverteram brutalmente os dados do problema. E uma inversão que ocorre nas palavras: te­rnos orgulho em ser homossexuais {Hocquenghem, 1980: 09). Nos embates sempre renovados dessa luta cotidiana, que encontra nos grupos religiosos fundamentalistas seus opositores mais radicais, a identidade homossexual termi­na sendo, cada vez mais, reafirmada, seja pelos próprios homossexuais, seja pelos oposicionistas a uma política de integração social não heterocêntrica. O “assumir-se” (internalizar e publicizar uma identidade homossexual) trans­forma-se numa bandeira de luta e numa palavra de ordem.

Apesar das especificidades identitárias constitutivas das diversas homossexualidades, não se pode esquecer que, em geral, gays, lésbicas e travestis são objeto da mesma discriminação e intolerância sociais, dirigidas aos que, pela expressão de seu desejo sexual, questionam a exclusivida­de da norma heterossexual. Talvez esta seja a razão princi­pal por que os homens e as mulheres homossexuais este­jam juntos na arena política, reivindicando o pleno reco­nhecimento de sua cidadania e condição humana, ainda que, via de regra, as lésbicas reclamem do machismo e da misoginia de alguns gays e que estes questionem uma suposta androfobia (medo e aversão irracional ao macho) in­trínseca a algumas lésbicas. Ademais, juntos. travestis, lés­bicas e gays deparam-se cotidianamente com as divergên­cias políticas características de quaisquer agrupamentos humanos e com os conflitos decorrentes da afirmação de políticas identitárias distintas — gay. lésbica e travesti — e relativamente autônomas.

No que diz respeito à proporção de homens e mulhe­res homossexuais em relação ao conjunto total da população brasileira, não existem levantamentos estatísticos con­clusivos. Todavia, a partir da pesquisa realizada pelo sexólogo Alfred Kinsey. na década de 40, sobre o compor­tamento sexual de 50 mil pessoas nos EUA — entre nós conhecida como Relatórios Kinsey (1948 e 1953) —. gene­ralizou-se o entendimento de que aproximadamente 10% dos integrantes da espécie humana são predominantemente homossexuais, independentemente de quaisquer especificidades, como nacionalidade, classe social, etnia e, inclusive, sexo. Enquanto religiosos e moralistas, geral­mente, entendem que essa porcentagem superestima a real e efetiva população homossexual no Brasil e no mundo, os militantes homossexuais consideram que. na atualidade, a proporção de homossexuais na população mundial e brasi­leira seria superior aos resultados originais de Kinsey, ten­do em vista a diminuição do preconceito e da intolerância em relação à homossexualidade, como consequências das mudanças sociais, culturais, políticas e econômicas ocor­ridas na segunda metade do século XX.

Por outro lado, deve ser destacada, como o faz Costa (1994), a pouca relevância sociopolítica da eventual desco­berta de supostas causas da homossexualidade, no que diz respeito à efetiva garantia dos direitos humanos de gays, lésbicas e travestis. Tal entendimento, todavia, contraria a compreensão de alguns ativistas e religiosos, os quais en­tendem que a comprovação da origem genética ou hormonal da homossexualidade, por si só, eximiria gays. lésbicas e travestis de qualquer responsabilidade objetiva ou culpa individual decorrentes de sua orientação sexual, o que con­tribuiria para amenizar a discriminação que os atinge. Para Costa, no entanto, a busca desenfreada de causas para a homossexualidade, bem como a crença de que sua determinação biológica implicaria uma desculpabilização automática do sujeito homossexual, recorreria a “argumentos particularistas ou naturalistas para defender o direito que têm 05 indivíduos de ser respeitados em suas vidas públicas ou privadas, indepen­dente de traços físicos ou de suas preferências morais, emoci­onais, sexuais ou religiosas” (1994: 49). Não se pode esque­cer, por outro lado, que negros são negros por determina­ção cromossômica e. embora já se soubesse disso há muitos anos, só se conseguiu combater de forma minimamen­te eletiva o preconceito e a intolerância raciais a partir de um valor moral maior, no qual se funda a igualdade formal de direitos entre todos os indivíduos, independentemente de especificidades biológicas. Só a obediência a um ethos individualista e democrático pode impedir que as diferen­ças naturais transformem-se em desigualdades morais.

Ao invés de se corroborar a importância da desco­berta das eventuais causas da homossexualidade, segura­mente o mais importante seria procurar compreender porque os seres humanos têm uma dificuldade expres­siva para lidar com a diferença, principalmente quando esta diferença manifesta-se na esfera da sexualidade. Assim, o desafio maior talvez não seja refletir apenas sobre as causas da diferença — sexual ou de qualquer ordem —, mas, principalmente, acerca de seus signifi­cados e de sua importância no contexto da construção de sociedades justas, solidárias e democráticas.

 

Os Homossexuais em Cena

 

Independentemente de causas. significados e consequência sociopolíticas da homossexualidade, o fato é que, des­de os primórdios da colonização portuguesa, existem regis­tros sobre as práticas afetivo-sexuais entre iguais biológi­cos nestas terras “descobertas” por Cabral (TREVISAN, 2000). Faz pouco mais de 20 anos, porém, que os homos­sexuais brasileiros, seguindo, ainda que tardiamente, o exemplo de seus pares estadunidenses e europeus, passa­ram a se organizar politicamente e a reivindicar o reconhe­cimento de sua cidadania ode seus direitos humanos. Quem sabe a ausência de uma legislação explicitamente anti-ho­mossexual no Brasil livre da dominação inquisitorial seja um fator explicativo importante. entre outros, para a compreensão desse atraso relativo.

Sob o calor de uma abertura política vitalizada peio retorno dos exilados da ditadura militar, em 1978 foi fun­dado o Jornal “Lampião de Esquina”, a primeira expressão efetiva de um incipiente movimento homossexual no Bra­sil, quase ao mesmo tempo em que surgiu o Grupo Somos de Afirmação Homossexual, nos idos de 1979, em São Pau­lo. Nesta movimentada segunda metade dos anos 70, os brasileiros também vinham assistindo, entre o encanto e o estupefato. ao surgimento e à afirmação dos primeiros gru­pos organizados de negros e de mulheres, aos quais os grupos homossexuais associam-se e ingressam na arena política com reivindicações que não mais se restringem ao universo da luta de classes. Ainda que embrionariamente, esses grupos. com frágeis relações de aliança entre si. pas­sam a publicizar afirmativamente identidades raciais e se­xuais até então relegadas ao ostracismo social e a questio­nar os valores racistas e sexistas da cultura patriarcal bra­sileira. Segundo MacRae (1990), rompia-se, assim, com a idéia de uma classe operária unida pela mesma exploração capitalista e tentava-se abrir espaços, por meio de uma polinização do privado fundada num ideário individualista, para as discussões e reivindicações que diziam respeito a segmentos sociais específicos, ainda que o objetivo co­mum fosse produzir transformações que alcançassem toda a sociedade brasileira. Como afirmam Miccolis e Daniel em relação aos primeiros grupos homossexuais, “a luta não é — como erroneamente se supõe — em prol dos ‘direitos homossexuais mas da liberdade humana (...)“ (1983: 77). Em nome de uma suposta prioridade atribuída à luta maior — leia-se a utopia revolucionária socialista — mesmo os par­tidos políticos de esquerda tentaram muitas vezes cooptar os ativistas desses novos movimentos sociais para suas esferas de atuação.

Embora o movimento homossexual rapidamente vi­esse dando sinais de expressiva ampliação e articulação. Os conflitos internos já se faziam presentes desde suas ori­gens. sendo motivados por questões raciais, de gênero, político-ideológicas e de classe social, entre outras mais privadas. Muitas vezes o denominador comum da orienta­ção sexual não conseguia fazer com que os militantes su­perassem suas divergências internas e o movimento, em consequência, começou a esfacelar-se, em conflitos multifacetados entre gays e lésbicas, negros e brancos, filiados a partidos e apartidários, entre outros. A priorida­de atribuída à afirmação de uma identidade homossexual, quase sempre homogeneizadora e uniformizante, e à ne­cessidade de seu exercício público — bandeiras de luta re­lativamente distantes da realidade dos homossexuais não organizados politicamente — radicalizava ainda mais esses conflitos e já em junho de 1983, quando os jornais alarde­avam a morto do estilista Markito, no primeiro caso com­provado de AIDS no Pais, a maior parte dos grupos já se encontrava agonizante. Dos existentes nesta época, che­gariam aos anos 90 apenas o Grupo Gay da Bahia e o Dialogay. de Aracaju.

Indiscutivelmente, porém, o surgimento da epidemia de HIV/AIDS influenciou fortemente o ativismo homos­sexual. não só no Brasil, mas também no mundo. De um lado, muitos ativistas tornaram-se vitimas, efetivas ou potenci­ais. da síndrome, sendo obrigados a abandonar o movimen­to ou preferindo vincular-se a grupos que trabalhassem es­tritamente com a questão da AIDS’. De outro, o temor de terem sua identidade homossexual associada ao fenômeno da AIDS fez com que muitos potenciais militantes optas­sem por manter na clandestinidade sua orientação sexual, como forma de proteger-se do agora duplo estigma, que passou a associar homossexualidade à AIDS. Por fim, os que se mantiveram vinculados aos grupos existentes ou fundaram novos viram-se às voltas com o conflito entre incorporar a AIDS à sua agenda política ou continuar numa militância voltada para o combate ao preconceito c à dis­criminação contra os homossexuais, não atribuindo gran­de ênfase aos impactos da epidemia. Segundo Terto Jr (1996), nesse período de transição, só conseguiram so­breviver politicamente os grupos que assumiram a AIDS como uma questão central para o avanço das lutas contra a homofobia. Tais grupos passaram a utilizar, inclusive, recursos governamentais e de organizações não-governa­mentais estrangeiras destinados ao combate à AIDS, cri­ando melhores condições objetivas para sua atuação política. Vale dizer que esse fenômeno ocorreu em praticamente todos os países largamente atingidos pela AIDS, nos quais, apesar de um recrudescimento inicial da homofobia. ocor­reu um fortalecimento da militância homossexual, especi­almente nos BUA e na Europa.

Os anos 80, todavia, não podem ser considerados como a “década perdida” também para a militância homossexual brasileira. Para além de uma contribuição expressiva no combate à epidemia de HIV/AIDS e de uma sensibilização difusa da sociedade brasileira acerca da cidadania e dos direitos humanos dos homossexuais, os grupos de militan­tes participaram ativamente de pelo menos dois importan­tes momentos nas discussões acerca da liberdade de orientação sexual no Pais: 1) nos primeiros anos da década, a intensa mobilização, liderada pelo Grupo Gay da Bahia, com vistas à alteração do Código 302.0 da Classificação Internacional de Doenças, que culminou com o reconheci­mento, pelo Conselho Federal de Medicina, em 09.02.83, de que a homossexualidade não é uma doença; e 2) a participação no processo constituinte (1986-1988). quando se pretendia a inclusão da expressa proibição de discriminação por orientação sexual no texto da nova Constituição Federal.

Se o pleito junto ao Conselho Federal de Medicina implicou uma conquista de largas consequências políticas. o mesmo não se pode dizer cm relação ao Congresso Cons­tituinte, uma vez que o Movimento Brasileiro de Defesa dos Direitos dos Homossexuais liderado pelo Grupo Tri­ângulo Rosa, do Rio de Janeiro, não conseguiu convencer os parlamentares a incluírem no art. 30, IV, da Constitui­ção de 1988. a expressa proibição de discriminação por orientação sexual. Valores religiosos foram o sustentáculo de praticamente todos os discursos contrários à demanda dos grupos homossexuais

Mesmo em face deste resultado, os ganhos políti­cos secundários da participação dos grupos homossexu­ais no processo constituinte foram expressivos antes de mais nada pela visibilidade social que se conseguiu atribuir á uma das principais demandas do movimento. Se­guramente. foi também a partir dessa mobilização ini­cial que os grupos de militância se reorganizaram e con­seguiram. em fins dos anos 80 e ao longo dos 90, asse­gurar a inclusão) da expressa proibição de discriminação por orientação sexual nas Cartas Políticas de 74 muni­cípios. 2 Estados e do Distrito Federal, além de obterem êxito na aprovação de leis que disciplinam as sanções civis para casa modalidade de discriminação, nas cida­des do Rio de Janeiro, Salvador. Porto Alegre, Fortale­za. Nova Iguaçu, Recife e Olinda. entre outras.

Mas é especialmente a partir de meados dos anos 90 que o movimento homossexual passa a ganhar visibilidade social ostensiva no Brasil, num momento em que a discus­são sobro a cidadania e os direitos humanos de gays e lés­bicas avança simultaneamente em vários lugares do mun­do e que a equação homossexualidade = AIDS = morte já estava sendo parcialmente desconstruída. em função tanto da ampliação do raio de incidência da epidemia para outros grupos sociais, particularmente mulheres e jovens hete­rossexuais, quanto da difusão em massa de informações acerca das formas de prevenção da síndrome e da desco­berta de medicamentos capazes de deter a manifestação dos efeitos do vírus HIV.

Hoje, já existem mais de 80 grupos homossexuais no Brasil, muitos deles filiados à Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis (ABGLT) — fundada em 1995 — e também à International Lesbian and Gay Ausociation (ILGA), cuja 178 Conferência Mundial ocor­reu no mesmo ano, no Rio de Janeiro. Esses grupos, além de desenvolverem trabalhos relacionados ao com­bate e à prevenção ao HIV/AIDS, também procuram atuar em virias frentes, que vão desde o debate público sobre homossexualidade em escolas e nos meios de co­municação de massa, especialmente televisão, até reu­niões de compartilhamento de informações e experiên­cias, destinadas ao fortalecimento da auto-estima de gays e lésbicas (Almeida e Crillanovick, 1999). Os re­presentantes de um discurso religioso — especialmente católico e evangélico — continuam a ser os principais opositores aos homossexuais nesse novo momento de afirmação do direito à liberdade de orientação sexual (Almeida, 1999).

Já em 1995, a Deputada Marta Suplicy apresentou o Projeto de Lei n.º 1.151, que institui a união civil entre pessoas do mesmo sexo, proporcionando uma grande visi­bilidade para a questão homossexual no Brasil, a qual passou a receber urna cobertura ostensiva da mídia. A Câmara dos Deputados tornou-se uma caixa de ressonância das discus­sões que ocorriam de Norte a Sul do País, tornando-se palco de acalorados debates acerca da legitimidade social das relações amorosas entre pessoas do mesmo sexo.

Talvez não seja exagerado dizer, então, que nunca se falou tanto sobre homossexualidade no Brasil como nos dias atuais, como também que os grupos homos­sexuais estão mais articulados, visíveis e politizados em suas ações. Seguramente, ainda existem muitos confli­tos internos ao movimento, mas isso não impediu. como em suas origens em fins dos anos 70, que os grupos con­seguissem se articular em torno de uma entidade de representação nacional e venham lutando pela construção de uma sociedade que respeite a pluralidade das orien­tações sexuais de seus cidadãos.

 

Por uma Nova igualdade

 

Se os primeiros grupos homossexuais brasileiros es­tavam basicamente preocupados com a construção de uma identidade, que demarcasse e “normalizasse” explicitamente as diferenças entre os homo e os heterossexuais (Pereira, 1990). nos anos 90 a preocupação maior dos militantes parece situar-se não mais na construção de uma mica iden­tidade homossexual, mas, ao invés, na afirmação das múltiplas homossexualidade:, identidades nômades de homens que elegem homens e de mulheres que elegem mulheres como objeto de amor e de desejo sexual.

A luta primeira passa a ser, então, não mais pela afir­mação de identidades — gay. lésbica e travesti — absolutas e normativas, mas pelo reconhecimento da cidadania e dos direitos humanos de homens e mulheres que, além de serem homossexuais, partilham com os outros membros da socie­dade, em maior ou menor grau, todo um conjunto de valo­res, hábitos, tradições e crenças. Reivindica-se, assim, que a homossexualidade seja socialmente definida apenas como uma singularidade a mais, em meio a tantas outras que caracteri­za os seres humanos, procurando-se esvaziar, duplamente, o sentido da noção de diferença que atinge OS homossexuais: nem mais fonte para a discriminação, a exclusão e a intole­rância, nem mais ponto de partida para a construção de identidades isolacionistas, autistas, esquizóides e apartadoras.

Ainda que a luta pelo reconhecimento social da diferen­ça dos homossexuais em relação aos heterossexuais tenha sido urna reivindicação necessária para a afirmação dos primeiros, enquanto) grupo minoritário, na arena política, a rei­vindicação obsessiva da diferença muitas vezes produz o re­crudescimento da estigmatização e o isolamento aprisionador do gueto, a despeito do prazer e do sentimento de segurança que este possa proporcionar. Com vistas a superar esses ris­cos. os homossexuais, no Brasil e no inundo — à exceção de alguns indivíduos e grupos defensores de uma identidade homossexual que exclui a convivência com o restante da socie­dade vêm reivindicando o direito à “indiferença”, ou seja, a serem tratados como seres humanos e cidadãos comuns, sem exclusões ou privilégios particulares.

Assim, por meio do entendimento de que a homosse­xualidade seria apenas uma das formas de manifestação da sexualidade humana, que. para além da esfera da reprodu­ção biológica, não implicaria diferenças substantivas em relação â heterossexualidade. a não ser as decorrentes da intolerância social, luta-se contra uma homofobia que muitas vezes expressa-se no âmbito da família, das relações soci­ais e do acesso a direitos na esfera pública. Instaura-se, então, nesses diversos níveis de interação social, aquela dialética descrita por Santos (1997) entre o direito à rei­vindicação da igualdade, quando a diferença inferioriza, e o direito à reivindicação da diferença, quando a igualdade descaracteriza. só que agora com ênfase maior na primei­ra perspectiva. Talvez por essa razão, Ávila e Gouveia afir­mem que as mulheres e os homossexuais são os constru­tores dos direitos sexuais, numa luta que se baseia no prin­cípio de que "a igualdade não quer dizer idêntico, mas sim o que tem o mesmo valor” (1996: 169).

No entanto, a regulação das relações afetivo-sexuais, seja entre homo, seja entre heterossexuais. não se dá apenas no âmbito da legislação, mas também — e talvez princi­palmente —. nos da religião, da ciência, da sociedade civil organizada e da mídia, instâncias mediadoras que produ­zem. reformulam e repassam códigos e definições. Parece, então, como diria Hocquenghem (1980) desiludido com a perda de força da diferença homossexual, que as possibilidades de integração social de gays, lésbicas e travestis passam não apenas por mudanças na esfera do Direito, mas da reciclagem dos desejos homossexuais em uma “nor­malidade” um pouco alargada, que afirma a igualdade em detrimento da diferença.

A atuação solidária da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, do Ministério da Justiça, em relação às deman­das dos grupos homossexuais brasileiros parece ser um indicativo de que alguns sinais de mudança começam a se delinear no front da luta política pela conquista do respeito aos direitos humanos de gays, lésbicas e travestis no Bra­sil. Todavia, o silêncio do Governo Fernando Henrique Car­doso no tocante à elaboração e implantação de uma legisla­ção específica, que assegure 1) a expressa punição de dis­criminação por orientação sexual e 2) os direitos civis de­correntes das uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, é uma omissão que demonstra de forma inconteste o quanto os homossexuais brasileiros ainda se encontram à margem das prioridades governamentais e da agenda política naci­onal na esfera dos direitos humanos.

 

 
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