Politicamente
correto ou o poder que as palavras têm
4/5/2005
13:37:00
Fonte: Palavra Sinistra
Marcio Alexandre M. Gualberto*
Eu não quero denegrir ninguém,
muito menos judiar da língua portuguesa, menos ainda
ofender bichas, anões, ladrões, comunistas, nem nada.
Mas a onda do politicamente correto chegou pra valer
e começou a gerar incômodos. O mulato-baiano-quase-branco
e ex-cachaceiro João Ubaldo Ribeiro, o careca do Zuenir
Ventura e tantos outros jornalistas velhos e barrigudos
já começaram a se manifestar. Então, se é pra se manifestar,
eu também quero dizer minhas besteirinhas.
Vamos aos fatos: o governo federal,
através da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH),
lançou na semana passada uma cartilha voltada para profissionais
de comunicação, professores, policiais, advogados etc.,
sobre temas considerados preconceituosos ou pejorativos.
No domingo, tomado por uma ira
libertadora da expressão, João Ubaldo Ribeiro escreveu
um artigo declarando que isso era arbitrariedade e ditadura
disfarçada. Foi seguido por muitos nos meios de comunicação
e o assunto continua rendendo. A Sedh, por sua vez, deu um recuo na iniciativa. Uma pena, porque
uma vez gerado o debate o que tem que se fazer é sustentá-lo
para que dele não saiam vencedores e vencidos, mas que
ganhe a sociedade como um todo.
O primeiro argumento dos coleguinhas
da grande imprensa é que isso fere o princípio da liberdade
de expressão e sobre este princípio armam-se de tanques
e canhões para defendê-lo. Eu acho divertidíssimo esse
povo que defende livre expressão nos grandes veículos
de comunicação do país. Há estatísticas que mostram
que 6 famílias concentram a quase totalidade dos meios
de comunicação do Brasil. Há dados que mostram perseguição
a jornalistas em redações e que muitos jornalistas independentes
(que têm, estes sim, seu livre direito à expressão reprimidos),
vêm sendo mortos ou feridos por ousarem exercer seu
livre direito de dizer alguma coisa contra os poderosos.
Esses pretensos paladinos da liberdade de expressão
esquecem-se que em qualquer publicação séria existe
um manual de redação que aponta, a partir de questões
consensuais ou de discussões internas ao longo do tempo,
termos que devem ou não ser usados, em que contexto
determinada expressão pode ser usada ou não. E isso
não fere nenhum um pouco o livre exercício da expressão
de ninguém.
Uma outra questão que os coleguinhas
têm posto é que o país tem coisas mais importantes a
tratar, o que é uma grande verdade. O que eles esquecem
é que o país precisa tratar das coisas grandes e pequenas
concomitantemente. Não dá para fazer determinadas coisas
em detrimento de outras. Por isso existe o Estado, por
isso entendemos que seu papel deve ser o de atuar em
determinadas áreas que consideramos prioritárias e estratégicas.
Educação é uma delas. E uma cartilha como esta, com
seus erros e acertos, nada mais é que uma estratégia
de educar.
A comunidade judaica vai protestar
porque na cartilha da Sedh
não consta o verbo "judiar". E estão
corretíssimos. Hoje, qualquer jornalista sério não escreverá
no seu texto nem o verbo judiar e nem o denegrir. Porque
ambos têm uma carga preconceituosa enorme. Porque as
outras questões incomodam tanto? Será que efetivamente
não começamos a dar alguns saltos evolutivos em nossa
sociedade quando começamos a discutir questões importantes
como a linguagem?
Está certo o Zuenir quando diz
que há sutilezas da linguagem que vão além das palavras.
Sempre me lembro de um amigo australiano que viveu alguns
anos no Brasil. Ele dizia que iria embora sem entender
o fato de chegarmos pra um sujeito e chamá-lo de veado,
filho da puta e corno e depois abraçá-lo dizendo que
estávamos com saudades e há muito não nos víamos. Ele
dizia impressionar-se como isso não acabava em briga.
São de fatos sutis as nuances que separam o fato de
eu chamar um amigo meu de veado e me referir a alguém
que seja homossexual dizendo que ele é veado, ou ainda
chamar de veado alguém numa discussão com a clara intenção
de ofendê-lo. Mas não é porque existem essas sutilezas
que deveremos colocar tudo num mesmo pacote e tratar
tudo da mesma maneira.
Este é um daqueles momentos em
que cabe dizer que o governo atirou no que viu e acertou
no que não viu. O debate está nas ruas, na imprensa,
nas listas e nos blogs. E isso já é um grande êxito.
Nós não podemos permitir que as gerações futuras cresçam
sem achar problemático chamar homossexual de bicha,
veado, ou usar expressões ofensivas contra negros, mulheres,
nordestinos, judeus etc.
A questão aqui não é se a discussão
é sobre o politicamente correto. A discussão é sobre
os valores que construímos em nossa sociedade, e esses
valores refletem-se no que dizemos, em como dizemos
e nas palavras que usamos para dizer.
* Marcio Alexandre M. Gualberto é editor
de Afirma – Revista Negra Online
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