Linguagem
e delírio autoritário
4/5/2005
13:41:00
Fonte: Observatório da Imprensa
João Ubaldo Ribeiro*
Notícia publicada no Globo de sábado (29/4) é estarrecedora
[veja íntegra abaixo]. Estamos ingressando numa era
totalitária, em que o governo dá o primeiro passo para
instituir uma nova língua e baixar normas sobre as palavras
que devemos usar? Será proibido em breve o uso de palavrões
na língua falada no Brasil? Serão eliminados dos dicionários
vocábulos e expressões não considerados apropriados
pelo governo? Palavras veneráveis da língua, como "beata",
em qualquer sentido, deverão ser banidas? Será criada
uma polícia da linguagem? Os brasileiros serão proibidos
por lei de discutir vigorosamente e xingar os interlocutores?
Que autoridade tem essa secretaria [Especial dos Direitos
Humanos] para emitir essas opiniões, que por enquanto
podem ser apenas opiniões, mas nada impede, na ditadura
mal disfarçada em que vivemos, que uma medida provisória,
da mesma forma com que já nos confiscaram a poupança
e os depósitos bancários, venha a ser baixada, confiscando
também a nossa língua e os nossos costumes, mesmo os
inaceitáveis pela maioria?
Os escritores e jornalistas terão seus livros e textos
examinados, para que se expurguem termos ou expressões
condenadas? Contar piadas será tido como conduta anti-social
e discriminatória? O governo é o dono da língua? As
palavras "negro", "preto", "escuro"
e semelhantes, nos casos em que não estiverem sendo
usadas sem relação alguma com a cor da pele de ninguém,
serão vedadas, se em qualquer contexto julgado negativo?
As nuvens de chuva por acaso são brancas e alguém está
insultando os negros, quando diz que há nuvens negras
no horizonte (e há)? Os túneis são escuros e existe
alusão racial na expressão "luz no fundo do túnel"?
A peste bubônica não poderá mais ser mencionada como
a "peste negra"?
Tratar-se-á como injúria ou difamação chamar de comunista
alguém que até o seja, mas não se considere como tal?
Não se poderá mais dizer que alguém é burro ou cometeu
uma burrice? Será publicada uma lista de palavras de
uso permitido, ou de uso proibido? Acontece isto em
alguma outra parte do mundo? Se um homossexual, como
fazem muitos deles, rotular-se a si mesmo de "veado",
poderá ser censurado ou punido? O pronome indefinido
peculiar à língua falada no Brasil ("nêgo",
como em "nêgo aqui gosta muito de uma festa")
só será aceitável se for numa afirmação elogiosa ou
"positiva"?
Ovinos imbecis
O ridículo dessa cartilha não nos deve cegar para o fato
de que está começando o que parece ser uma ampla distribuição,
que certamente atingirá as escolas, as quais, já hoje,
são obrigadas a classificar racialmente os alunos, dando
a entender que certas áreas certamente considerarão
um progresso e um passo em direção ao ambicionado terceiro
mundo a instituição da segregação no Brasil.
Não podemos aceitar esse delírio totalitário, autoritário,
preconceituoso (ele, sim), asnático, deletério e potencialmente
destrutivo – e, o que é pior, custeado com o nosso dinheiro.
Que está acontecendo neste país? Aonde vamos, nesse
passo? Quanto tempo falta para que os burocratas desocupados
que incham a máquina governamental regulem nossa conduta
sexual doméstica ou nosso uso de instalações sanitárias?
Enfim, o que é isso, pelo amor de Deus? Até quando vamos
suportar sermos tratados como um povo de ovinos imbecis
e submetidos ao jugo incontestável da "autoridade"?
Todo poder emana do povo ou da burocracia? Podemos ser
processados se chamarmos um membro do serviço público
de "funcionário"? Temos liberdade para alguma
coisa? Foi o Estado que nos concedeu o direito de pensar,
opinar e dizer, ou este é um direito básico e inalienável,
que não nos pode ser tirado?
Exijamos respeito
Não sei mais o que dizer sobre esse descalabro, esse
escândalo, essa vergonha, esse sinal de atraso monstruoso,
que de agora em diante não deverei mais poder chamar
de palhaçada, para não insultar os palhaços. Até onde
vamos regredir? É preciso que reajamos, é indispensável
que os homens responsáveis por tal despautério sejam
dispensados do serviço público, porque lá estão para
cometer atentados à liberdade e arbitrariedades desse
tipo. É indispensável que assumamos nosso papel de cidadãos
detentores da soberania que, pelo menos nominalmente,
é entre nós a soberania popular.
Chega de burrice, chega de abuso, chega de incompetência,
chega de merda jogada sobre nossas cabeças! Ou então
que nos calemos e vivamos o destino de gado a que forcejam
para cada vez mais nos impor, a escolha é nossa e essa
iniciativa grotesca e idiota seja imediatamente esmagada,
ou em breve não teremos direito a mais nada, nem à nossa
língua, aos nossos sentimentos e à escolha de nosso
comportamento que, não sendo criminoso, é exclusivamente
da nossa conta e de mais ninguém.
Não podemos ser mais humilhados e envergonhados dessa
forma, exijamos respeito e seriedade, defendamos nossa
integridade e dignidade, rebelemo-nos e, sim, xinguemos
– bons filhos das putas – ou, melhor, bons rebentos
de profissionais femininas do sexo, para respeitar as
novas diretrizes. Vão se catar, e não às nossas custas,
como vêm fazendo até agora. Desculpem, mas eu não posso
conter a indignação e tentar passá-la para tantos compatriotas
quanto possível. Saudações democráticas, revoltadas
e dispostas a se tornarem revoltosas de João Ubaldo
Ribeiro.
* João Ubaldo Ribeiro
é
jornalista e escritor, membro da Academia Brasileira
de Letras. Esta mensagem foi enviada pelo autor à
sua lista de amigos na internet.
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