Politicamente
incorreto
Jaime Pinsky - historiador e editor, co-autor
de “12 Faces do Preconceito” e “História
da Cidadania”, entre outros livros
Têm
razão aqueles que temem a censura prévia
para textos no Brasil. Ainda há poucos anos
muitos de nós sofremos com a determinação
do “isto pode, isto não pode” vinda de censores
ou diretamente dos quartéis. Jornais, livros,
letras de música, atividades docentes eram
objeto da mordaça, impedindo a livre manifestação
de artistas, intelectuais e jornalistas.
Eu mesmo fui vítima da censura prévia governamental,
que por esse instrumento inviabilizou a
continuidade das revistas “Debate &
Crítica” e “Contexto”, que dirigi ao lado
dos sociólogos Florestan Fernandes e José
de Souza Martins, e que tinha no conselho
editorial intelectuais como Sérgio Buarque
de Holanda, Paul Singer e Fernando Henrique
Cardoso, entre muitos outros.
Censura
prévia, salvo engano, não parece ser a intenção
da cartilha Politicamente Correto, publicada
pela Secretaria Especial de Direitos Humanos.
O fato é que, embora a relação entre os
grupos étnicos e de origem, no Brasil, seja
diferente daquela que acontece nos Estados
Unidos, estamos longe de ser generosos para
com as chamadas minorias. As pessoas podem
achar muito divertido contar piadas sobre
o trabalho malfeito dos negros, a “viadagem”
dos homossexuais, a inferioridade das mulheres,
especialmente se forem bonitas e, mais especialmente,
se forem loiras, a paixão dos judeus pelo
dinheiro, a ignorância dos caipiras, “baianos”
e “paraíbas”, e por aí afora. Não será o
caso de perguntar para os homossexuais e
às
loiras, aos judeus e aos negros, aos nordestinos
e aos interioranos se eles também acham
graça nas piadas?
Claro
que “sapatão” é pejorativo, assim como “baianada”.
Claro que nuvens de chuva são negras, ou
cinzentas, e isso não ofende ninguém. Sejamos
sérios, só para variar. Se alguém quer culpar
o governo pela inflação com juros altos,
que o faça, mas que não desqualifique com
deboche uma tentativa de chamar a atenção
para questões reais e importantes. Quem
nunca
foi vítima de discriminação, ou não teve
a sensibilidade para acompanhar o sofrimento
de quem é discriminado diariamente, pode
achar tudo muito divertido. Quem acha que
ser chamado de “doutor” pelos serviçais
é a glória, não se dá conta do “preconceito
nosso de cada dia”, aquele que está tão
presente em nossa sociedade que parece fazer
parte dela, naturalmente.
Amigos,
nada é natural, é tudo social. O “negro”
ofensivo que disparamos não se refere à
cor da pele, à quantidade de melanina, mas
é uma categoria de pensamento e laborada
por uma sociedade que marginaliza, para
depois interagir (desde que, é claro “o
negro saiba o seu papel”). A mulher é “barbeira”,
não porque tenhamos comprovado a necessidade
do pênis
para lidar com o volante de um carro, mas
porque, conscientemente, ou não, partimos
do pressuposto (preconceituoso) de que a
mulher é inferior, portanto incapaz de desempenhar
a contento algumas atividades “de homem”,
como dirigir.
Deve-se
alertar as pessoas para essas questões?
É evidente, desde que queiramos, seriamente,
enfrentar problemas que cindem a nossa sociedade.
Muita gente, por trás de aparente defesa
da democracia e da livre manifestação, quer
mais é que as coisas se transformem, desde
que fiquem como estão. Para muitos de nós
parece “natural” que num apartamento de
quatrocentos metros quadrados o “quarto
de empregada” não tenha mais que dois metros
quadrados, ela tenha que dormir quase em
pé e a ducha do seu chuveiro caia diretamente
no vaso da privada. Afinal, ela é a “em
pregada”, além de “mulher”, “negra” e “baiana”,
e, “do lugar em que ela vem, nem isso ela
tinha”, não é mesmo?
A
cartilha está equivocada? Exagerada? Corrijam-se
as distorções, depois de se ouvir o que
diferentes setores da sociedade têm a dizer.
Escritores, jornalistas, lingüistas especialistas
em análise de discurso, antropólogos, grupos
que congregam cidadãos que se sentem prejudicados,
todos devem falar e ser levados em consideração.
Se o objetivo da cartilha for
listar e proibir, sou contra. Mas se é alertar
e educar, ela talvez possa ser muito útil.
O fato é que fazer piadinhas é fácil, principalmente
quando a vítima é o outro. Todos adoramos
nos divertir, mas tem que ser à custa da
humilhação do outro? Daí a dizer que o problema
não existe, façam-me o favor.
Artigo
publicado na seção “Opinião” do Correio
Braziliense de 8 de maio de 2005.
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