Como
é difícil quebrar preconceitos
Antônio
Carlos Queiroz (*)
Por
que será que uma publicaçãozinha
de bolso de 88 páginas, muito semelhante às listas de
"palavras perigosas" de qualquer manual de
redação de jornal, está causando tanto barulho e discussões
apaixonadas país afora? Será que, por milagre, o Brasil
de repente atingiu um grau de civilização tão grande
que já pode dispensar o debate de suas taras e preconceitos?
Será que a dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos
constitucionais da República, teria, na expressão de
Dom Hélder Câmara, "saltado do papel para a vida" de
um dia para o outro?
Para
início de conversa, um esclarecimento. Diferentemente
do que dizem os críticos, a cartilha
Politicamente Correto & Direitos
Humanos não é uma espécie de Index
Auctorum et
Librorum Prohibitorum inquisitorial,
destinado a regular, controlar, policiar o linguajar
grosseiro da população nacional. Com 5 mil exemplares,
num mar de 183 milhões de pessoas, o objetivo da publicaçãozinha
era mais que modesto. Dentro do programa de educação
da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência
da República (SEDH), ela foi concebida para chamar a
atenção de pessoas que lidam com o
público – parlamentares, agentes e delegados
de polícia, guardas de trânsito, jornalistas, professores
do ensino fundamental – para o fato de que certas palavras
e expressões, dependendo do contexto, são discriminatórias,
preconceituosas, humilhantes. A SEDH já havia produzido
muitas cartilhas semelhantes, algumas com o apoio do Unicef, e nunca ninguém chiou por causa delas. Por que a
chiadeira, agora?
Como
explicar a cruzada expurgatória que uniu João Ubaldo
Ribeiro, Arnaldo Jabor, José
Sarney, alguns comunistas do PC do B, o frei Betto,
alguns respeitáveis PhDs
da Ciência Política, os editores da revista do PSDB
e o próprio presidente da República?
Como
explicar que Ricardo Noblat,
tido e havido como paladino da liberdade de expressão,
noticiou a decisão do secretário Nilmário
Miranda de suspender a distribuição da cartilha dizendo
que ela iria mofar no fundo
de uma gaveta se não fosse "discretamente incinerada"? Seria uma sugestão?
Julgamentos
automáticos
Por
que Maria Celina D’Araújo, com a sofreguidão que em
nada combina com o método cuidadoso de uma intelectual
consistente, que ela parece ser, comparou a iniciativa
da cartilhinha com as práticas
de censura da ditadura militar?
Por
que o presidente da Academia Brasileira de Letras, Ivan
Junqueira, qualificou a iniciativa de "fascista",
banalizando um conceito que ele, na condição do legítimo
delegado de polícia da língua, deveria conhecer melhor
do que ninguém?
Por
que os PhDistas
de plantão reclamaram contra a intromissão do Estado
na seara da Cultura, por gastar dinheiro público com
a publicaçãozinha, se antes
não haviam dito nada contra os financiamentos oficiais
do dicionário Houaiss, do Aurélio e de tantos outros? Se o
Estado não pode investir na Cultura, por que a tolerância
desses liberais casuístiscos com os autores que têm a venda de seus livros
garantida pelos programas do Fundo Nacional de Desenvolvimento
da Educação?
Por
que tanto mau humor na defesa da liberdade ao direito
de fazer piadinhas com crioulos, sapatões, ceguinhos
e leprosos?
Por
que tanta caradura na defesa do riso? Qual tipo de riso?
A quem serviu as gargalhadas dos soldados americanos
em Abu Ghraib e Guantánamo?
Goebbels também era um piadista,
pô! E Al Capone
também mandava flores. Talvez Freud, que nasceu a 6
de maio, uma coincidência na semana em que a cartilha
foi espinafrada, possa explicar os exageros de tantos
julgamentos automáticos (pré-juízos, pré-conceitos).
Militante
nervoso
O
mais incrível nessa história é que a maioria dos críticos
não leu a cartilha, contentando-se apenas com o conteúdo
e com as reproduções da primeira matéria publicada a
respeito dela, no jornal O Globo (sábado, 30/4).
Daí as bobagens e jaborbagens
pronunciadas a respeito do assunto.
É
evidente, por exemplo, que seria uma sandice classificar
como inadequada em si a expressão "farinha do mesmo
saco". De fato, como disse, se não me engano, Zuenir
Ventura, dessa forma não se sabe se a ofensa atinge
a farinha ou a saco. Ocorre que o verbete sobre essa
frase diz o seguinte:
"A
expressão, junto com outras semelhantes – ‘Todo político
é ladrão’, ‘Os jornalistas são mentirosos’, ‘Os muçulmanos
são terroristas’ – ilustra a falsidade e a leviandade
das generalizações apressadas, base de quase todos os
preconceitos. O fato de haver políticos corruptos, jornalistas
imprecisos e muçulmanos extremistas não significa que
a totalidade de cada um desses segmentos mereça aquelas
respectivas acusações".
"Qual
é o pó?", diria Pablo Scholar a respeito desse
ponto.
É
óbvio que chamar um comunista como Oscar Niemeyer de
"comunista" não machuca ninguém, nem muito
menos ele, que é mesmo comunista desde criancinha. Mas
vá chamar um discípulo do Leonardo Boff (audácia!) de
comunista para você ver o que é bom pra tosse. O verbete
da cartilha diz que o termo, até recentemente, foi utilizado
"para discriminar ou justificar perseguições a
qualquer militantes de esquerda
ou de causas sociais" e até para justificar genocídios,
como na Alemanha nazista ou na Indonésia, em 1965. Isso
é um fato, e realmente não deu para entender por que
alguns militantes do PC do B ficaram tão irados com
a cartilha, logo eles que defendem
o projeto de lei do deputado Aldo Rebelo que
propõe multas para quem se utiliza de termos de origem
estrangeira, certamente uma postura contraditória com
a vocação internacionalista do comunismo.
O
mais engraçado, no caso dos comunistas, eu li numa carta
enviada ao portal Vermelho, na qual um militante muito
nervoso afirmou que é um absurdo a proposta de chamar
os homossexuais com um estrangeirismo: "gay"!
Houve
quem dissesse que, para ser isento, o livreto deveria
trazer também o verbete "fascista". Mas traz,
uai:
"Fascista
– A palavra muitas vezes é utilizada por militantes
de esquerda para desqualificar adversários de direita,
embora se refira, especificamente, aos adeptos do sistema
ditatorial cujas maiores expressões históricas foram
os regimes da Itália de Benito Mussolini e a Alemanha
de Adolf Hitler, entre as décadas de 20 e 40 do século
20".
Noel
Rosa
O
editor da revista Primeira Leitura , ligada ao PSDB,
é outro que não leu a cartilha. Para fazer graça, e
achar motivo para botar a foto da cachorrinha dele na
revista, disse que o livreco deveria ter a palavra "burro".
Tem, sô:
"Xingamento
dirigido a quem se atribui falta de inteligência. Conferir
às pessoas supostas características de animais é um
dos recursos mais comuns para desqualificá-las".
Já
o presidente Lula teria ficado
uma arara com o fato da maldita listar a palavra "peão",
logo ele, que se considera peão e que gosta de chamar
sua turma de "peãozada". É outro que não leu e não gostou, embora a
Secretaria Especial dos Direitos Humanos seja diretamente
vinculada à Presidência. O verbete respectivo diz o
seguinte:
"Peão
– O trabalhador braçal, do campo ou da cidade. O termo
tem conotação pejorativa quando é utilizado para inferiorizar
alguém na hierarquia das classes sociais, como na frase
"Isso é coisa de peão", para significar
que se trata de atitude de alguém rude, bruto, ‘inculto’".
Um
verbete em especial ilustra como algumas pessoas gostam
de dar palpite sem se inteirar do assunto. É verdade,
por exemplo, que a cartilha diz que a expressão "samba
do crioulo doido" é utilizada "para discriminar
os negros, atribuindo-lhes confusões e trapalhadas".
Só que antes dessa afirmação, está dito ali que a expressão
é o...
"...título
de famoso samba composto pelo genial Sérgio Porto para
satirizar o ensino de História do Brasil nas escolas
do País, iniciado pela estrofe ‘Foi em Diamantina/ Onde
nasceu JK/ Que a princesa Leopoldina/ Arresolveu
se casá/ Mas Chica da Silva/ Tinha
outros pretendentes/E obrigou
a princesa/A se casar com
Tiradentes/ Lá iá lá iá
lá iá’".
Ah,
ah, ah!, diria
o Stanislaw Ponte Preta, que, para quem não sabe, é
o próprio Sérgio Porto. Realmente, há um Festival de
Besteira assolando o País!
O
meu amigo Armando Mendes, no blog
do Noblat, caiu matando, dizendo
que a cartilha do "politicamente correto"
copia servilmente uma política cultural dos americanos.
Meu filho Osvaldo mandou-lhe uma resposta, de gozação,
lembrando que, no Brasil, quem inventou o "politicamente
correto" foi o Noel Rosa, em 1932, com o samba
Rapaz Folgado. Prestem atenção na última estrofe:
Deixa
de arrastar o teu tamanco / Pois tamanco nunca foi sandália
/ E tira do pescoço o lenço branco / Compra sapato e
gravata / Joga fora esta navalha que te atrapalha
Com
chapéu do lado deste rata /
Da polícia quero que escapes / Fazendo um samba-canção
/ Já te dei papel e lápis / Arranja um amor e um violão
Malandro
é palavra derrotista / Que só serve pra tirar / Todo
o valor do sambista / Proponho ao povo civilizado / Não te chamar de malandro /
E sim de rapaz folgado
Tese
de Einstein
Antes
de encerrar, e parar de alugar os leitores mais do que
fiz, sem querer – diga-se! –, durante uma semana inteira,
mais algumas observações.
A
execução da cartilha foi uma idéia do subsecretário
de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, Perly
Cipriano, sensibilizado com o número de reclamações
recebidas por ele contra os preconceitos que atingem
diversos setores sociais.
Sem
ser especialmente adepto do "politicamente correto",
sugeri outro título, O inferno são os
outros – Respeito é bom e eu gosto. Mas o
Perly insistiu no Politicamente
Correto, exatamente por conta da controvérsia que
nós dois achamos que a coisa provocaria. Mas, por precaução,
ele escreveu na apresentação da cartilha:
"A
idéia do título, Politicamente Correto, tem,
em parte, um sentido provocador. Foi escolhida com o
objetivo de chamar a atenção dos formadores de opinião
para o problema do desrespeito à imagem e à dignidade
das pessoas consideradas diferentes".
No
parágrafo seguinte, uma advertência:
"Não
queremos promover discriminações às avessas, ‘dourando
a pílula’ para escamotear a amargura dos termos que
ofendem, insultam, menosprezam e inferiorizam os semelhantes
que consideramos ‘os outros’".
É
essa advertência que explica por que o verbete de "velho"
diz que é preferível chamar as pessoas em idade avançada
de "idosos", e por que "melhor idade
é uma fórmula ainda mais eufemística do que ‘terceira idade’ para referir-se à pessoas idosas", que "não contribui para ampliar
sua auto-estima nem sua dignidade".
A
cartilha Politicamente Correto & Direitos Humanos", como a crase do Gullar, não foi feita para humilhar
ninguém. Nem para deitar regras. Não tinha como homem-alvo
o João Ubaldo Ribeiro nem seus coleguinhas
da Academia Brasileira de Letras. Quem não sabe que
o João é livre para xingar quem ele quiser?
O
livreto foi muito modestamente redigido, certamente
com alguns exageros, para alertar algumas pessoas que
lidam diariamente com o público de que a dignidade da
pessoa humana é um dos fundamentos da República brasileira.
Não foi escrito para quem já sabe que os limites da
tolerância democrática são os artigos do Código Penal
que capitulam os delitos da injúria, calúnia e difamação.
A
cartilha não inventa nada. Está conforme o Código de
Ética dos Jornalistas e, repito, é muito semelhante
aos manuais de redação da Folha de S.Paulo, do
Globo, do Estado de S.Paulo.
Francamente,
nem eu nem o Perly merecíamos
esses 15 ou 16 minutos e meio de fama. Nem ele nem eu
somos agentes de um Estado totalitário,
pronto para exterminar a liberdade de expressão.
O Perly passou vários anos
na cadeia, por lutar pelas liberdades democráticas!
Eu comecei minha carreira de jornalista no jornal Movimento,
que já nasceu censurado pela ditadura militar. PQP,
Ubaldo!
No
centenário do anno
mirabilis do Einstein, mais uma de suas teses se comprova:
"É muito mais difícil desintegrar um preconceito
do que um átomo". Esta é a principal lição que
até agora eu tirei de toda essa confusão.
(*)
Jornalista, comunista libertário, vice-presidente do
Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal, autor
da famigerada cartilha Politicamente Correto &
Direitos Humanos, agora censurada
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