Edição 1 657 -
12/7/2000
Corrupção Mata
Procurador do caso Luiz
Estevão quer mais
poderes e independência para o Ministério Público
no combate ao crime do colarinho-branco
Flamínio Fantini
"Desviar dinheiro público
equivale a matar pessoas, pois os recursos poderiam ajudar a salvar
vidas"
Quando o jovem seminarista Luiz Francisco
Fernandes de Souza resolveu deixar o noviciado dos jesuítas em
Cascavel, no Paraná, carregou com ele o fervor missionário para a
futura atividade de procurador da República em Brasília. Hoje, aos 38
anos de idade, ele personifica uma nova e destemida geração de
promotores do Ministério Público (MP) que despontou no Brasil nos anos
90. Entre os seus feitos, está o de ter ajudado a colocar na cadeia o
ex-deputado Hildebrando Pascoal, pela ligação com o narcotráfico e
formação de grupo de extermínio. O senador cassado Luiz Estevão
também ocupa lugar de destaque na sua agenda. Pouco mais de uma hora
depois da cassação do poderoso empresário, Luiz Francisco pediu na
Justiça a prisão preventiva dele e conseguiu fazer com que passasse a
noite numa cela da Polícia Federal. Quando estudava direito no Centro
de Ensino Unificado de Brasília, liderou movimento contra os valores
das mensalidades. Acabou expulso. O ex-militante do PT, pelas
exigências do cargo, agora acha mais prudente manter distância dos
partidos. Abaixo a entrevista que ele concedeu a VEJA.
Veja – Na quinta-feira, ao depor na
Justiça em Brasília, o ex-senador Luiz Estevão chamou-o de
"deformado", "demente" e "espancador de
mulheres". O senhor respondeu no mesmo tom. Esse bate-boca
certamente não serve à Justiça. O senhor também não se excedeu?
Luiz Francisco – Admito que alguém possa interpretar meu
comportamento como excesso. Mas a atitude dele foi uma tentativa de
intimidação. Ao ouvir o desacato, retruquei chamando-o de
"parasita", pois ele é acusado de crime contra a economia
popular, de apropriar-se da poupança popular. As acusações dele
atingiram um membro do Ministério Público no exercício da função e
visaram enfraquecer a denúncia firmada contra ele por nove procuradores
de Brasília, que levaram à decretação de sua prisão preventiva,
depois revogada. Já pedi instauração de processo criminal contra ele.
Veja – O vaivém de cassar, prender,
soltar e buscar novamente a prisão do senador Luiz Estevão não é uma
confusão evitável?
Luiz Francisco – É compreensível que a sociedade fique um pouco
confusa quando vê que juízes, apresentados a um mesmo problema,
decidem de forma diferente. Um prende e o outro solta. Mas é preciso
entender que o sistema brasileiro possui algumas particularidades e
penaliza mais os pobres. Prender criminosos de colarinho-branco que
surrupiam bilhões do dinheiro público não é fácil. Para essas
pessoas, a prisão preventiva acaba não valendo. Alega-se que Luiz
Estevão não iria tentar a fuga nem intimidar testemunhas. Mas ele
cometeu crimes que chocam a opinião pública e quase chegam à
barbárie de um estupro, por exemplo, o que justifica colocá-lo na
cadeia. Desviar dinheiro público, no caso 169 milhões de reais,
equivale a matar pessoas, pois os recursos podiam ir para programas
sociais e ajudar a salvar vidas. A meu ver o juiz que determinou a
prisão preventiva, Ronaldo Desterro, agiu corretamente. Já o que
concedeu habeas-corpus, Fernando Tourinho Neto, cometeu um erro. Leu
apenas os argumentos de Luiz Estevão, acreditou nele e não se
aprofundou na questão, embora seja um juiz bastante respeitado e
estimado. Quem assegura que Estevão não tentará fugir, quando o cerco
se apertar contra ele?
Veja – Ao abrir inquéritos sem
provas vocês não estão prejulgando as pessoas?
Luiz Francisco – A maior parte dos procuradores diverge do modo
como o procurador-geral da República, doutor Geraldo Brindeiro, dirige
as investigações feitas junto com a subprocuradora Delza Curvello.
Ambos têm uma péssima mania, arquivam dezenas e dezenas de
inquéritos. E, quando não arquivam, as investigações ocorrem a passo
de lesma. Para abrir o inquérito, eles entendem que tem de haver prova,
quando o correto é o contrário: para abri-lo, é preciso ter o
indício. E, então, vai obter-se no inquérito a prova. A doutora Delza
defende em artigos doutrinários que não cabe aos procuradores
investigar.
Veja – Não é má vontade sua para
com eles?
Luiz Francisco – Observe só. O governador Joaquim Roriz tinha uma
dezena de inquéritos contra ele. Tudo foi arquivado. Contra o
ex-governador Orleir Cameli, do Acre, eu mesmo enviei pilhas e pilhas de
relatórios, devia ter 3 metros de documentos na Procuradoria Geral, e
quase nada foi feito. Só com a ameaça de morte feita contra mim e a
reação em peso da Associação Nacional dos Procuradores é que houve
algum efeito prático.
Veja – A independência do
procurador-geral fica comprometida pelo fato de ele ser escolhido pelo
presidente da República?
Luiz Francisco – No Brasil, infelizmente, a impunidade de altas
autoridades está associada ao processo de escolha do procurador-geral
da República. Quem tem como missão fiscalizar e, eventualmente,
processar o presidente, os ministros e os governadores não pode ser
escolhido por nomeação livre pelo Palácio do Planalto. Onde está a
independência dessa pessoa para fazer uma investigação importante? A
solução a meu ver é a adoção da lista tríplice. Por esse
mecanismo, o presidente escolhe um procurador-geral de uma lista de
três nomes proposta a ele pelos próprios procuradores. O Ministério
Público estadual já funciona assim e dá bons resultados. No caso
específico do atual procurador-geral, doutor Geraldo Brindeiro,
acredito que ele não denuncia as altas autoridades como deveria, mas
também não incomoda o trabalho dos procuradores.
Veja – O que o senhor considera o
perfil e o papel ideal de um procurador-geral?
Luiz Francisco – Alguém intrinsecamente ligado à área dos
direitos humanos, alguém que coordenasse e tivesse uma liderança moral
nessa área. Alguém que fosse à luta, que chamasse toda a categoria e
levantasse uma bandeira de combate à corrupção. Que diante de casos
de esquadrão da morte nos Estados, por exemplo, congregasse os membros
do MP e montasse grupos de combate para investigar e ir até a medula.
Ou fazer um encontro nacional para enfrentar com unhas e dentes a
corrupção. O presidente Fernando Henrique Cardoso entraria para a
História como o homem que deixou as instituições melhoradas se
decidisse apoiar a mudança constitucional necessária para que o
próximo procurador-geral saia de uma lista tríplice.
Veja – Freqüentemente vocês são
acusados de radicalismo e de estar perseguindo gente sem indícios
suficientes...
Luiz Francisco – Há leis penais no Brasil. Qualquer procurador
que disser leviandades pode ser processado por perdas e danos morais, é
obrigado a pagar indenizações pesadas. Pode incorrer em crimes de
calúnia, difamação e injúria, mas registre-se que jamais atacamos
pessoas pobres e desamparadas. O que é um procurador? Ele, uma
secretária e duas estagiárias, tendo embates com gente que tem
milhões de dólares. O problema central do país é a corrupção ou é
a língua solta do Ministério Público?
Veja – Não é injusto soltar a
língua nos casos em que as acusações se baseiam em indícios que mais
tarde não se confirmam?
Luiz Francisco – Damos declarações e assumimos com a própria
pele nossas responsabilidades. Se mentirmos, podemos cometer crime de
calúnia, difamação ou injúria. Há procuradores processados
criminalmente ou respondendo a ações de perdas e danos. Eu mesmo
respondo a uma ação do Rafael Greca, ex-ministro do Esporte e Turismo.
Veja – Não haveria uma preferência
dos procuradores por se concentrar em meia dúzia de pessoas famosas e
assim garantir publicidade para o caso? Há quem os acuse de estrelismo.
Luiz Francisco – Ao contrário. A ação do MP é difusa. O Brasil
tem quase 6.000 prefeitos. A metade já
deve estar processada. Quase todos os governadores têm processos.
Veja – A atuação do MP até agora
não atingiu políticos e autoridades de esquerda. Por quê?
Luiz Francisco – Mas que políticos e autoridades de esquerda
estão ocupando grandes cargos?
Veja – O governador petista Olívio
Dutra, do Rio Grande do Sul, por exemplo.
Luiz Francisco – Não estou certo, mas deve ter alguma ação do
Ministério Público contra o governador gaúcho. O ex-governador do
Distrito Federal Cristovam Buarque sofreu processos. Com certeza, há
ações contra prefeitos eleitos por partido de esquerda. A
administração pública federal ainda não esteve na mão do PT. Mas,
se um dia o PT, o PC do B ou o PSB dominarem o governo federal e tiverem
a Presidência da República, garanto que o Ministério Público vai
ficar de olho. Se qualquer integrante de um governo de esquerda afrontar
a lei, será processado. Teria borduna do mesmo jeito, a cor partidária
não importa em nada para nosso trabalho. Não achamos que a corrupção
seja privativa dos políticos de direita. Quem pisar no ordenamento
jurídico ou na Constituição será processado.
Veja – O senhor pertence a algum
partido político?
Luiz Francisco – Um procurador da República não pode manifestar
preferência partidária. Na época em que fiz faculdade, militei no PT,
mas, desde que passei a integrar o Ministério Público, mantive
distância das atividades partidárias.
Veja – O que mais o motiva?
Luiz Francisco – A base do trabalho é a defesa do ordenamento
jurídico. O Estado e as leis existem para defender e promover os
direitos humanos, que traduzem as necessidades básicas do indivíduo.
Quando atuamos num crime, agimos em defesa de um direito elementar à
segurança, de não ter o corpo destruído ou os bens roubados.
Veja – Por que a prioridade agora é
o combate à corrupção?
Luiz Francisco – A corrupção é uma forma extremada de fazer a
alienação do Estado, colocando-o a serviço de interesses de
particulares. É uma questão de direitos humanos porque, em vez de
servir aos carentes, o Estado desvia recursos públicos para o bolso
daqueles que podem pagar e corromper funcionários. Com a corrupção
eleitoral se passa algo semelhante. Ao contrário da Alemanha, no Brasil
não há o financiamento público de candidaturas políticas. As
campanhas são muito mais um embate econômico do que de idéias. A
corrupção eleitoral não passa, no final das contas, da apropriação
de cargos públicos e de recursos públicos por parte de grandes
empresários ou empreiteiras que manipulam as licitações em proveito
próprio.
Veja – É estranho que o senhor se
tenha batido tanto contra as privatizações. Pela lógica, quanto menor
o Estado, menores as chances de ocorrer corrupção, não?
Luiz Francisco – As privatizações foram combatidas com ações
do Ministério Público porque o Programa Nacional de Desestatização
empregou moedas podres, fez avaliações pífias das empresas leiloadas
e foi bancado com financiamentos do BNDES, com juros gratuitos, enquanto
a população paga juros nos planetas. Houve também parcerias douradas
feitas com os fundos de pensão e benefícios fiscais inadequados para
os vencedores.
Veja – Deve-se depreender da
resposta que o senhor acredita que aos procuradores cabe não apenas
defender o ordenamento jurídico vigente, mas também fazer justiça
social. Não é um passo maior que as pernas?
Luiz Francisco – Compreendo a confusão, mas nunca questionamos o
processo de prvatização em si mesmo. Contudo, o leilão dos bens
públicos deve ser feito de acordo com a Constituição e com as leis do
país. Entendo que as privatizações do governo da ex-primeira ministra
Margaret Thatcher são questionáveis, mas pelo menos tiveram valores
corretos. Aqui no Brasil, as estatais saíram por valores pífios. Por
isso, praticamente todas estão sub judice. As iniciativas do
Ministério Público tiveram um aspecto positivo e contribuíram pelo
menos para que as privatizações parassem de usar moedas podres.
Veja – Uma operação como a Mãos
Limpas, da Itália, seria possível no Brasil?
Luiz Francisco – Em muitos países, o Ministério Público pode
tomar medidas como determinar a quebra do sigilo bancário e fiscal. No
Brasil, há uma anomalia, é preciso antes pedir a um juiz. Para
chegarmos a uma Operação Mãos Limpas, seria preciso robustecer a
Polícia Federal, a Receita Federal e o Ministério Público, além de
um fortalecimento da magistratura e de iniciativas como o programa de
proteção de testemunhas. A população também precisa participar
mais, cobrando solução para cada escândalo denunciado.
Veja – No caso do impeachment do
então presidente Fernando Collor, há oito anos, os procuradores foram
criticados por não ter reunido provas para incriminá-lo. O que falhou
na ocasião?
Luiz Francisco – Nossa atuação até que não foi ruim. O STF
mudou a jurisprudência para salvar o Collor. De fato, o Collor hoje
está solto e não está denunciado porque infelizmente o doutor
Brindeiro, que viria a assumir mais tarde, arquivou mais de uma dezena
de inquéritos contra o ex-presidente. |