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A Organização Judiciária  na Região
Administrativa Especial de Macau: 
o Estatuto do Ministério Público
*

Antônio Ganhão**

1. A Organização Judiciária na RAEM

1.1.    A organização judiciária do território de Macau do período posterior ao Estatuto Orgânico de 1976 desenvolveu-se - e ir-se-á desenvolver até, pelo menos, ao ano de 2049 (vd. ponto (12)  do nº 2 da Declaração Conjunta do Governo da República Portuguesa e do Governo da República Popular da China sobre a Questão de Macau) - por 3 fases que poderiamos designar de “fase da dependência”, “fase da semi-autonomia ou da semi-dependência” e “fase da autonomia ou da independência”.

1.2.    A primeira fase - a “da dependência” - estende-se por um longo período que vai desde 1976 até aos inícios de 1993 e caracteriza-se, essencialmente, pelos seguintes traços:

O território de Macau dispõe apenas do poder de julgamento em 1ª instância, sendo que os recursos eventualmente interpostos de decisões assim tomadas são dirigidos aos tribunais de 2ª instância da República Portuguesa (o Tribunal da Relação de Lisboa, a cujo distrito judicial se considera pertencer a “comarca”de Macau) e/ou aos respectivos tribunais supremos (o Supremo Tribunal de Justiça, quando fosse caso de funcionar como 3º grau de jurisdição, o Supremo Tribunal Administrativo, competente para apreciar recursos das decisões em matéria de contencioso administrativo, fiscal e aduaneiro tomadas pelo Tribunal Administrativo de Macau, ou o Tribunal de Contas, competente para apreciar recursos das decisões em matéria de fiscalização prévia tomadas pelo Tribunal Administrativo de Macau - vd., neste último caso, o anterior artº 66º do EOM). Ainda assim, nem todas as causas são julgadas em Macau, mesmo em 1ª instância. Destacam-se:

O julgamento directo pelo Supremo Tribunal Administrativo dos recursos contenciosos dos actos administrativos praticados pelo Governador e Secretários-Adjuntos (primitivo artº 18º e posterior artº 19º, nº 5, do EOM).

O julgamento pelos tribunais da comarca de Lisboa das acções cíveis e criminais em que sejam réus o Governador ou os Secretários-Adjuntos (primitivo artº 19º e posterior artº 20º, nº 3, do EOM).

As fiscalizações preventiva (alínea e) do nº 1 do artº 11º e nº 3 do artº 40º do EOM, na redacção da Lei nº 13/90, de 10 de Maio), abstracta (alínea e) do nº 1 do artº 11º, nº 2 do artº15º e alínea a) do nº 1 do artº 30º do EOM, todos na redacção daquela Lei) e concreta (dedutível do disposto no nº 1 do artº 41º do EOM, ainda na redacção daquela Lei) da constitucionalidade e da legalidade de qualquer lei, que competem ao Tribunal Constitucional.

Os tribunais de 1ª instância com sede na “comarca” de Macau ( o Tribunal Judicial, o Tribunal de Instrução Criminal e o Tribunal Administrativo) fazem parte integrante das respectivas ordens judiciárias portuguesas, como claramente o denotam a redacção originária do artº 2º do EOM - omitindo qualquer referência à autonomia judiciária do território de Macau -, o nº 1 do artº 3º do mesmo Estatuto - pressupondo, à época, que no Território existiam tribunais com a qualidade de “órgãos de soberania da República” - e, principalmente, a parte final do inicial artº 51º do EOM (“A administração da justiça...continua a regular-se pela legislação emanada dos órgãos de soberania da República”). De facto, tal legislação integra na regulamentação da organização judiciária da República todos os tribunais com sede em Macau.

Consequentemente, os magistrados judiciais dos tribunais de Macau são nomeados pelos órgãos competentes da República Portuguesa (redacção originária do nº 2 do artº 51º do EOM) e regem-se pelo mesmo Estatuto aplicável aos juízes dos tribunais portugueses (no qual surgem bastas vezes referências a Macau).

Na situação jurídico-funcional do Ministério Público de Macau têm reflexo os pressupostos acima mencionados, ainda que, neste particular âmbito, sempre se tenham observado algumas especificidades. Assim:

O Ministério Público é constituido, de início, por um procurador da República e por um delegado (redacção originária do nº 1 do artº 52º do EOM) nomeados pelos órgãos competentes da República Portuguesa (redacção originária do nº 2 do artº 51º do EOM).

Os representantes do Ministério Público dependem directamente do procurador-geral da República Portuguesa (redacção originária do nº 2 do artº 52º do EOM).

Leis avulsas emanadas dos órgãos de soberania da República foram alterando o quadro do Ministério Público de Macau (criaram, inclusivamente, 1 lugar de procurador-geral-adjunto, categoria superior à de procurador da República) sem que, contudo, tivessem posto em causa os princípios da competência para a nomeação e da dependência.

O estatuto do Ministério Público é basicamente idêntico ao da República (redacção originária do nº 2 do artº 53º do EOM).

Contudo, com, pelo menos, uma excepção: os representantes do Ministério Público devem obedecer às orientações que, em concreto ou em abstracto, lhes sejam transmitidas por escrito pelo Governador para defesa da política criminal ou dos direitos e interesses de Macau que aquele venha a definir.

1.3. Fora, entretanto, negociada, assinada, aprovada para ratificação, ratificada e publicada no Diário da República de 14 de Dezembro de 1987 e no Boletim Oficial de Macau de 7 de Junho de 1988 a acima referida Declaração Conjunta que, para o que ora nos interessa, consagra irreversivelmente o seguinte:

 A partir de 20 de Dezembro de 1999, o território de Macau passará a constituir a Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China.

A RAEM terá um poder judicial independente, pleno e exclusivo.

Os juízes dos tribunais da RAEM serão nomeados pelo Chefe do Executivo sob proposta de uma comissão independente.

Os juízes dos tribunais da RAEM só poderão ser demitidos, e apenas em dois casos previstos na lei, pelo Chefe do Executivo sob proposta de uma comissão constituída, conforme os casos, por juízes locais ou por deputados à Assembleia Legislativa.

A “Procuradoria da RAEM desempenhará com independência as funções jurisdicionais que lhe forem atribuídas pela lei e será livre de qualquer interferência”.

O procurador da RAEM será indigitado pelo Chefe do Executivo para ser nomeado pelo Governo Popular Central.

Assumido que foi o compromisso internacional constante da Declaração Conjunta, preocupa-se a República Portuguesa em criar condições jurídico-políticas para que a transição do exercício da soberania sobre Macau se processe de forma a que nenhuma convulsão prejudicial à estabilidade sócio-económica do Território se opere.

Para o efeito, começa por tornar claramente constitucional o compromisso ali assumido; através da Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho, a Constituição da República Portuguesa passa a inserir um preceito do seguinte teor ( nº 5 do artº 292º): “ O território de Macau dispõe de organização judiciária própria, dotada de autonomia e adaptada às suas especificidades, nos termos da lei, que deverá salvaguardar o princípio da independência dos juízes”. Estava, desta forma, aberto o caminho para que o legislador ordinário interviesse no Estatuto Orgânico de Macau e, nessa sede, retirasse as consequências de tal preceito constitucional. E na verdade, a Lei nº 13/90, de 10 de Maio, adopta, entre outras, as seguintes medidas:

Retira do EOM todas as referências a um concreto sistema de organização dos tribunais de Macau, remetendo tal definição para lei ordinária.

Enuncia os grandes princípios gerais relativos aos tribunais (atribuições de defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, de repressão da violação da legalidade e de resolução dos conflitos de interesses públicos e privados - novo artº 52º do EOM;

salvaguarda da sua independência - novo nº 1 do artº 53º do EOM), aos magistrados judiciais (inamovibilidade, não sujeição a quaisquer ordens e instruções e irresponsabilidade - novos nºs 2, 3 e 4 do artº 53º do EOM) e ao Ministério Público (estatuto próprio e autonomia - novo nº 5 do artº 53º do EOM).

Não quer, contudo, o legislador da Lei nº 13/90 conferir, desde logo, plena aplicação ao princípio da Declaração Conjunta e da Constituição Portuguesa segundo o qual Macau disporia de organização judiciária própria e autónoma.

Provam-no três particulares aspectos (a que o legislador ordinário posterior viria aditar um quarto):

Sendo certo que já então se ia tornando claro que a interpretação que a Parte Chinesa fazia da expressão “... as leis vigentes manter-se-ão basicamente inalteradas...” (ponto (4) do nº 2 da Declaração Conjunta) ia no sentido de que a vigência das leis se deveria aferir pelo facto de terem sido produzidas pelos órgãos de governo próprio do Território, o nº 2 do artº 51º do EOM passou a dispor que as bases da organização judiciária do Território seriam definidas pela Assembleia da República Portuguesa, circunstância que, de imediato, conferia um carácter acentuadamente precário à correspondente lei.

Em segundo lugar, manteve-se no EOM a previsão de foro próprio para as acções cíveis e criminais intentadas contra o Governador e os Secretários-Adjuntos bem como a competência do Tribunal Constitucional para os processos de fiscalização preventiva e abstracta da constitucionalidade e da legalidade, o que significava uma opção pela não atribuição de plena autonomia e exclusividade da jurisdição dos tribunais de Macau.

Finalmente, foi introduzido um preceito no EOM segundo o qual “Compete ao Presidente da República, ouvidos o Conselho de Estado e o Governo da República, determinar o momento a partir do qual os tribunais de Macau serão investidos na plenitude e exclusividade de jurisdição” o que confirma a ideia já anteriormente explanada de que se pretendia postergar para período posterior a aplicação plena do princípio da autonomia dos tribunais de Macau.

Dando execução aos novos preceitos estatutários, é publicada em 29 de Agosto de 1991 a Lei de Bases da Organização Judiciária de Macau, aprovada pela Lei nº 112/91, a que se seguem, agora em execução do artº 38º de tal Lei - mas sempre subordinados aos princípios orientadores por ela definidos - os Decretos-Leis nºs 17/92/M e 18/92/M, de 2 de Março, e 55/92/M, de 8 de Agosto.

Tal conjunto de diplomas, ainda que não tenham operado o corte do cordão umbilical com a organização judiciária da República Portuguesa - condicionados que estão, como vimos, aos aspectos que mencionámos consignados no EOM e àquele que eles próprios vêm a introduzir ou a manter -, permitem um salto significativo no caminho da autonomia ou da independência do sistema judiciário do Território. Por tal razão designámos esta fase - que vai desde o início do funcionamento do novo sistema ( nos princípios de 1993) até, previsivelmente, 1998 - “da semi-autonomia ou da semi-dependência”.

São basicamente os seguintes os respectivos traços caracterizadores:

A organização judiciária do território de Macau deixa de ser parte integrante do sistema judiciário da República Portuguesa, passando a reger-se por leis próprias (artº 1º da LBOJM; eliminação da anterior redacção do artº 51º do EOM).

Os tribunais de Macau organizam-se, basicamente, em duas instâncias a que correspondem dois graus de jurisdição:

Na 1ª instância funcionam os tribunais de jurisdição comum - o Tribunal de Competência Genérica e o Tribunal de Instrução Criminal - e o tribunal de jurisdição administrativa, fiscal e aduaneira - o Tribunal Administrativo (artº 18º do DL nº 17/92/M).

·      Na 2ª instância funciona o Tribunal Superior de Justiça (artº 6º - nº 2 da LBOJM) que, assim, substitui as anteriores funções - enquanto tribunais de 2ª instância - da Relação de Lisboa e do Supremo Tribunal Administrativo.

Deixa de existir a apreciação das causas em 3º grau de jurisdição, então a cargo do Supremo Tribunal de Justiça.

Lateralmente a esta organização é criado o Tribunal de Contas, responsável pela jurisdição financeira, que funciona como tribunal de 1ª instância - singularmente - e de 2ª instância - colectivamente (artº 10º da LBOJM).

Os magistrados judiciais passam a ser nomeados e demitidos pelo Governador sob proposta do Conselho Judiciário (quando se trate de tribunais de 1ª instância) ou do Conselho Superior de Justiça (quando se trate do Tribunal Superior de Justiça ou do Tribunal de Contas) (artºs 28º e 31º da LBOJM).

No que se refere ao estatuto do Ministério Público:

São expressamente referidas as características da autonomia, da independência e da sua actuação livre de qualquer interferência (artºs 23º da LBOJM e 8º do DL nº 55/92/M).

São mantidas as três categorias pré-existentes embora passe a estabelecer-se que, em princípio, o procurador-geral-adjunto representa o Ministério Público no Tribunal Superior de Justiça e no Tribunal de Contas, enquanto os procuradores e os delegados do procurador o representam nos tribunais de 1ª instância, devendo aqueles assumir as funções de coordenação destes e a representação nas causas mais complexas (artºs 40º do DL nº 17/92/M e 13º, 16º e 17º do DL nº 55/92/M).

Os magistrados do Ministério Público passam a ser nomeados e demitidos pelo Governador sob proposta do Conselho Superior de Justiça (para o procurador-geral-adjunto) ou do Conselho Judiciário (para os restantes) (artºs 28º e 31º da LBOJM).

Mantém-se a característica de uma magistratura hierarquizada ainda que o pendor injuntivo da hierarquia se tenha atenuado (artº 9º do DL nº 55/92/M); não obstante a designação do representante máximo do Ministério Público - procurador-geral-adjunto - a sua dependência relativamente ao procurador-geral da República Portuguesa cessou (artº 15º do DL nº 55/92/M).

O conjunto de direitos e deveres da magistratura do Ministério Público passou a constar de legislação própria não se identificando necessariamente com a correspondente em vigor na República.

A regra da obediência a intruções provenientes da hierarquia e do Governador sofreu uma considerável atenuação em termos que à frente teremos oportunidade de melhor desenvolver (artºs 10º e 11º do DL nº 55/92/M).

Apesar de todo este significativo avanço na via da autonomia, o sistema judiciário de Macau não é ainda independente do da República nem goza da plenitude e exclusividade da jurisdição.

Vimos já anteriormente em que é que o próprio EOM contribui para tal situação. As leis de execução, porém, introduzem - sem que a tal estivessem obrigadas - um quarto aspecto indiciador da “semi-dependência” e desenvolvem um dos previstos no EOM.

É, desde logo, a manutenção da competência do Supremo Tribunal Administrativo para apreciação dos recursos contenciosos dos actos do Governador e dos Secretários-Adjuntos (artº 16º da LBOJM) e da do Tribunal Constitucional para processos de fiscalização concreta da constitucionalidade e da legalidade ( artº 11º da LBOJM); é ainda a manutenção da competência do Tribunal de Contas da República para - agora com a veste do que será o único caso de 3º grau de jurisdição na ordem judiciária vigente em Macau (artº 46º do DL nº 18/92/M) - apreciar recursos de acórdãos do colectivo do Tribunal de Contas de Macau (artº 10º, nº 6, da LBOJM). A isto entende o legislador ordinário acrescentar algumas hipóteses académicas de manutenção de competências no Supremo Tribunal de Justiça ( artº 14º, nº 2, da LBOJM) e no Supremo Tribunal Administrativo (artº 15º, nºs 2 e 4, da LBOJM) e um outro caso, já não académico, de competência do Supremo Tribunal de Justiça para conhecer dos recursos das deliberações do Conselho Superior de Justiça (artº 30º, nº 2, da LBOJM).

Reconhecendo que o objectivo a atingir deveria ser o da “fase da autonomia ou da independência” não deixa o legislador de prever, porém, que as competências mantidas pelas leis de execução - que não aquelas previstas no EOM, as quais, em virtude da força jurídica do instrumento que as contém, não são susceptíveis de virem a integrar, por força de lei ordinária, a jurisdição dos tribunais de Macau - no Tribunal Constitucional, no Supremo Tribunal de Justiça, no Supremo Tribunal Administrativo e no Tribunal de Contas da República passariam a caber ao Tribunal Superior de Justiça a partir do momento da declaração da plenitude e exclusividade da jurisdição dos tribunais de Macau (artº. 34º da LBOJM); da mesma forma, aliás, que o Conselho Superior de Justiça, a partir do mesmo momento, se extinguiria pela absorção das suas competências pelo Conselho Judiciário (artº. 35º da LBOJM).

1.4.Ironicamente, sensivelmente pela altura do início de funcionamento do sistema judiciário de Macau da “fase da semi-autonomia ou da semi-dependência” era aprovada pela Assembleia Popular Nacional da República Popular da China e promulgada pelo Presidente da República Popular da China - em 31/03/93 - a “Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China” para entrar em vigor em 20 de Dezembro de 1999.

No desenvolvimento dos princípios relativos à organização judiciária constantes da Declaração Conjunta, a Lei Básica, para além de repetir as ali mencionadas, adita as seguintes regras:

A RAEM disporá de três instâncias (mas não necessariamente de três graus de jurisdição): os tribunais de primeira instância, oTribunal de Segunda Instância e o Tribunal de Última Instância (artº. 84º).

Os tribunais de primeira instância compreendem o Tribunal de Instrução Criminal, o Tribunal Administrativo e um tribunal de competência genérica ou tribunais de competência especializada (artºs. 85º e 86º).

Não existirá um Tribunal de Contas.

Os presidentes dos tribunais das diferentes instâncias são nomeados e demitidos pelo Chefe do Executivo de entre os respectivos juízes (artºs. 88º e 50º, nº9).

Apenas se encontram previstas duas categorias de magistrados do Ministério Público: o procurador e delegados do procurador (artº. 90º).

O procurador será demitido pelo Governo Popular Central sob proposta do Chefe do Executivo (artºs. 15º e 50º, nº10).

Os restantes magistrados do Ministério Público serão nomeados e demitidos pelo Chefe do Executivo mediante indigitação ou proposta do procurador (artºs. 90º e 50º - nº 9).

Pela mesma altura, torna-se iniludível a interpretação da Parte Chinesa segundo a qual a RAEM só poderá reconhecer como previamente vigentes em Macau os diplomas que tenham sido produzidos pelos seus órgãos de governo próprio.

Por outras palavras: no exacto momento em que o território de Macau se prepara para edificar um novo sistema judiciário torna-se claro que tal sistema - quer em virtude da proveniência das bases que o orientam quer por força de algumas das suas soluções substantivas - não dispõe de condições objectivas para perdurar para além de 19/12/99.

Não obstante - e sem se perder de vista a necessidade da sua ulterior reformulação - entende-se ser de prosseguir a sua consolidação na medida em que constituí um avanço - no sentido correcto - para o objectivo da plena autonomia.

A “fase da autonomia ou da independência” - que se julga poder iniciar nos princípios de 1999 e prosseguir até, pelo menos, ao ano de 2049 - começa a ser preparada no decurso do ano de 1996 quando a Assembleia da República, através da Lei nº 23-A/96, de 29 de Julho, aprova alterações significativas ao EOM, segundo as quais:

·O território de Macau passa a gozar de autonomia judiciária (nova redacção do artº. 2º que, por tal via, permite interpretação diferente do dispositivo do nº 1 do artº. 3º, que permanece intocável; na verdade, esta norma deverá agora ser interpretada no sentido de que os tribunais, enquanto órgãos de soberania da República, não se encontram representados no território de Macau, o que, atento o princípio da autonomia judiciária, bem se compreende).

·A regulamentação da organização judiciária de Macau deixa de ser da competência da Assembleia da República Portuguesa ( o anterior nº 2 do artº. 51º é eliminado) e passa a caber na competência concorrencial da Assembleia Legislativa e do Governador (artº. 31º - nº 3 - j).

 Pode, assim, ser emitido diploma legislativo pelos órgãos de governo próprio do Território consagrando a plena independência e autonomia do sistema judiciário de Macau.

A amplitude de regulamentação do legislador na matéria não é, porém, ilimitada. De facto, três ordens de factores o condicionam:

Antes de mais, a constatação de que se mantiveram no EOM a competência dos tribunais da comarca de Lisboa para o conhecimento de acções cíveis e criminais instauradas contra o Governador e os Secretários-Adjuntos e a do Tribunal Constitucional para a apreciação preventiva e abstracta da constitucionalidade e da legalidade; tais competências não poderão, por isso, ser integradas na jurisdição dos tribunais de Macau antes de 20 de Dezembro de 1999, data em que o EOM caducará; e mesmo a partir de tal data, se bem que - na falta de previsão expressa noutro sentido - ao tribunal de 1ª instância de Macau com competência residual passe a caber o julgamento daquelas acções contra o Chefe do Executivo e respectivos Secretários, a fiscalização preventiva deixará de ter lugar (por falta de previsão na Lei Básica) e a abstracta será efectuada, nos termos do 3º parágrafo do artº 17º da Lei Básica, pelo Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional (só a concreta competirá, nos termos restritivamente previstos no artº 143º da Lei Básica, aos tribunais de Macau).

Por outro lado, haverá que dar conteúdo útil ao preceito do EOM, mantido embora com diferente numeração, segundo o qual competirá ao Presidente da República Portuguesa declarar a plenitude e exclusividade de jurisdição dos tribunais de Macau; o que, em rigor, implica que - mesmo que o legislador venha a prever na lei um sistema judiciário dotado de plena autonomia e independência - tenha que estatuir normas transitórias - necessariamente coartadoras daquela autonomia - para vigorarem até ao momento da acima referida declaração de plenitude e exclusividade (que, note-se, no limite, pode coincidir com a data de transição da soberania).

Finalmente, se o legislador quiser - e, de facto, quer - que o sistema judiciário que venha a ser desenhado disponha de condições para se perpetuar para além de 19 de Dezembro de 1999 deve conformá-lo aos princípios que deixámos enunciados constantes da Declaração Conjunta e da Lei Básica; a não ser assim, não pode a RAEM deixar de o alterar na estrita medida do necessário para evitar contradições entre a lei que o defina e as normas hierarquicamente superiores previstas naqueles documentos. Por aplicação desta condicionante, haverá que regular, entre outros, os seguintes aspectos do sistema judiciário de Macau da “fase da semi-autonomia ou da semi-dependência”:

Transformação de um sistema de duas instâncias em um outro que contenha três instâncias (adoptando dois ou três graus de jurisdição, como regra).

Atribuição ao sistema judiciário de Macau das competências hoje ainda a cargo do Supremo Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Administrativo e Tribunal Constitucional, este no domínio da fiscalização concreta da constitucionalidade e da legalidade.

Extinção do Tribunal de Contas e subsequente eliminação da competência do Tribunal de Contas da República.

Redefinição dos métodos de selecção dos juízes e da composição da comissão que irá propor a sua nomeação ao Governador (com a necessária unificação, apenas com membros de Macau, dos actuais dois Conselhos de gestão e disciplina).

Redefinição do sistema disciplinar dos juízes, designadamente quanto aos factos susceptíveis de serem qualificados como infracção disciplinar, à forma de apuramento de tais factos, à entidade a quem deve caber tal apuramento e a proposta de aplicação de sanção disciplinar ( que desejavelmente será o Conselho de gestão e disciplina), à intervenção da comissão de julgamento composta por juízes ou por deputados à Assembleia Legislativa no caso de tal sanção ser a de demissão e, finalmente, à intervenção do Governador.

Redefinição das competências, processo de nomeação (desejavelmente por proposta do Conselho de gestão e disciplina efectuada ao Governador), duração do mandato e exoneração dos presidentes dos tribunais das várias instâncias.

Redefinição global do estatuto do Ministério Público.

Por ser exactamente neste campo que a Declaração Conjunta e a Lei Básica apresentam maiores omissões de regulamentação a ele dedicaremos o número seguinte.

2. O Estatuto do Ministério Público na RAEM

 2.1.Em todos os documentos legais hoje vigentes e nos preparados para vigorar no futuro é inequívoca a afirmação de que o Ministério Público dispõe de estatuto próprio, goza de autonomia, age com independência e liberto de qualquer interferência. É assim no nº 5 do artº. 53º do EOM, no artº. 23º da LBOJM, no nº 1 do artº. 8º do DL nº 55/92/M, no ponto IV do Anexo I à Declaração Conjunta e no artº. 90º, 1º parágrafo, da Lei Básica. Parece-nos, por isso, indiscutível que assim também virá a ser na futura lei de organização judiciária de Macau.

Contudo, não obstante todas as afirmações de princípio que na matéria se possam produzir - e apesar da boa-fé que anima os seus autores -, tais princípios permanecerão letra vã se não forem acompanhados por mecanismos que, efectivamente e na prática, garantam que os magistrados do Ministério Público constituam um corpo próprio, com autonomia dos restantes poderes políticos, agindo com total independência sem que haja possibilidade de interferências exteriores aos próprios no decurso da respectiva actividade.

É que, apesar de a característica da independência ser normalmente atributo dos tribunais e dos respectivos juízes, o cada vez mais amplo campo de intervenção processual do Ministério Público (principalmente no âmbito penal e laboral) vem apelando para que a referida autonomia e independência colorem em maior grau tal magistratura tendo em vista evitar aquilo a que já se chamou uma “gestão política do processo” afastada, por isso, da justiça material do caso.

De entre tais mecanismos destacaremos quatro, com alguma incidência na interpretação da regulamentação constante da Lei Básica.

2.2.Antes de mais, a questão das categorias por que se deve “desdobrar” a magistratura do Ministério Público.

Confrontada a Lei Básica, no seu artº. 90º, deparamo-nos com, apenas, duas categorias: o procurador e os delegados do procurador. Não obstante isso, não cremos que tivesse sido espírito do seu legislador limitar tal magistratura a tão-somente tais duas categorias: em contraponto, não se poderá afirmar iniludivelmente que a letra do preceito, por não prever outras, impõe apenas duas categorias; o que, salvo melhor interpretação, aquele espírito e letra impõem é que as duas referidas categorias existam... independentemente de a lei ordinária poder criar outras !

Mas deverão existir outras categorias ?

Vejamos.

O sistema judiciário vigente em Macau pelo menos desde 1976 prevê, para o exercício de funções junto dos tribunais de 1ª instância, duas categorias de magistrados do Ministério Público: os delegados do procurador (da República) e os procuradores (da República). Posteriormente, com a criação de um tribunal de 2ª instância - o Tribunal Superior de Justiça -, a categoria entretanto já criada mesmo ao nível da 1ª instância, a de procurador-geral-adjunto, foi afecta, como vimos, à representação do Ministério Público junto desse tribunal. Logicamente se impõe, quando se criar o Tribunal de Última Instância, o nascimento da categoria que culminará a pirâmide do Ministério Público e que o representará junto de tal tribunal: a de procurador-geral (note-se que estamos a utilizar, na designação das categorias, a terminologia judiciária vigente; contudo, deve reconhecer-se que tal terminologia não tem virtualidades para perdurar para além de 19 de Dezembro de 1999 por não ser coincidente com a prevista na Lei Básica).

Por outro lado, tem-se mostrado teórica e praticamente muito importante a diferenciação de duas categorias junto dos tribunais de 1ª instância. Enquanto os magistrados da categoria inferior, mais inexperientes, acompanham os processos mais simples, os da categoria superior - com tempo de serviço superior e mérito profissional adequado - coordenam o exercício das funções daqueles e intervêm nos processos mais complexos, designadamente nos que devam ser julgados em colectivo.

Aliás, as categorias apontadas incorporam a matriz judiciária portuguesa desde há longos anos, a qual se vem, desde sempre, reflectindo na organização judiciária do Território (de alguma forma, a actual designação de “procurador-geral-adjunto” conclama a criação de outra categoria superior da qual aquela seja “adjunta”). Por que razão se haveria agora, no momento em que se prepara a transição de soberania, e sem que a Lei Básica o imponha, de abandonar tal matriz ?

Adite-se ainda que tal elenco de categorias está bem melhor preparado para defender a autonomia e a independência do Ministério Público do que outro com número inferior. Na verdade, qualquer tentativa de interferência exterior à magistratura no desenvolvimento dos processos a seu cargo tornar-se-á bem mais difícil se as instruções que a consubstanciem tiverem que ser sucessivamente transmitidas por diversos graus hierárquicos - como o terão, se não existirem apenas duas categorias -, dando, por isso, à interferência a publicidade que ela não pretende; do mesmo modo que ficará bem mais obstaculizada se, pretendendo actuar directamente junto do magistrado que acompanha o processo, existirem diversas pirâmides hierárquicas encarregadas de fiscalizar as funções dos sucessivos inferiores.

Tudo razões para se propugnar o “desdobramento” da magistratura do Ministério Público em quatro categorias.

2.3.Se tomado à letra, e não fosse objecto de qualquer regulamentação, o sistema previsto na Lei Básica para a nomeação dos magistrados do Ministério Público originaria, inevitavelmente, as maiores arbitrariedades.

De facto, na matéria, a referida Lei limita-se a prever que o procurador será nomeado pelo Governo Popular Central sob indigitação do Chefe do Executivo e que os restantes magistrados do Ministério Público serão nomeados pelo Chefe do Executivo sob indigitação do procurador.

Se tais dispositivos quisessem - e sabemos que não querem ! - permitir que o Chefe do Executivo indigitasse quem lhe aprouvesse, independentemente de quaisquer requisitos, para procurador, e que este agisse da mesma forma relativamente aos restantes magistrados do Ministério Público, ficaria gravemente afectada, como bem se compreende, a autonomia do Ministério Público, a independência no exercício das suas funções e a garantia de não interferência.

Há, por isso, em nossa opinião, que salvaguardar, na futura lei de organização judiciária:

A necessidade de formação adequada prévia (licenciatura em Direito e aprovação em curso e estágio de formação para o efeito) para ingresso na categoria inferior da magistratura.

A necessidade de reunião de requisitos de experiência e mérito profisisonal para acesso - ou ingresso directo - a categorias superiores.

A definição de critérios o mais objectivos possível tendentes a tornar mais vinculada a opção pela nomeação de certos candidatos em detrimento de outros. A atribuição a um órgão colegial (que poderia ser o Conselho de gestão e disciplina que previmos para os juízes) das tarefas de recrutamento e selecção de candidatos e subsequente proposta de nomeação, conforme os casos, ao Governador ou ao procurador (note-se, por curiosidade, que a lei de organização judiciária, a fazer, não pode prever - por dever vigorar ainda durante a Administração Portuguesa - que o procurador seja nomeado pelo Governo Popular Central da República Popular da China).

Nem o Governador nem o procurador podem, “de motu proprio”, tomar a iniciativa de nomear ou propor a nomeação de qualquer magistrado do Ministério Público ainda que, no respeito pela Lei Básica, possam rejeitar as propostas de nomeação que lhes sejam feitas.

2.4.Problemática idêntica ocorre com a questão da demissão dos magistrados do Ministério Público. Também aqui a Lei Básica é perigosamente lacónica ao afirmar que o procurador será demitido pelo Governo Popular Central sob proposta do Chefe do Executivo e que os restantes magistrados do Ministério Público serão demitidos pelo Chefe do Executivo sob proposta do procurador. Aparentemente, bastaria uma pequena falta de confiança (política) por parte do proponente para que, independentemente de quaisquer garantias de defesa do proposto, este fosse inexoravelmente afastado das suas funções. Como se salvaguardaria, com este regime, a característica da autonomia do Ministério Público relativamente ao poder político ?  E a da actuação com independência e livre de qualquer interferência por parte de cada magistrado ? Está bem de ver que não pode ter sido isto que o legislador da Lei Básica pretendeu. Assim sendo, há que criar o mecanismo necessário e suficiente para o impedir, o que passa, em nossa opinião, pela consagração na futura lei de organização judiciária das seguintes regras:

·      Tipificação dos comportamentos dos magistrados do Ministério Público qualificáveis como infracção disciplinar e susceptíveis de conduzir à aplicação da sanção de demissão (comportamentos que nada impede que coincidam com os tipificados para os juízes: incapacidade para o exercício das funções e conduta incompatível com o desempenho do cargo).

Obrigatoriedade de apuramento dos factos em causa através de adequado processo (disciplinar) que confira ao arguido suficientes garantias de defesa contra as acusações que lhe sejam feitas.

Instrução do processo e consequente proposta de aplicação de sanção (de demissão ou outra) a cargo de um órgão colegial independente (que igualmente nada impede que seja o Conselho de gestão e disciplina previsto para os juízes); se a sanção a aplicar for a de demissão, a proposta será endereçada, conforme os casos, ao Governador ou ao procurador (note-se igualmente que também nesta sede se não pode prever que o procurador seja demitido pelo Governo Popular Central da República Popular da China).

Impedimento de o Governador ou o procurador, de “motu proprio”, tomarem a iniciativa de demitir ou propor a demissão de qualquer magistrado do Ministério Público embora, no respeito pela Lei Básica, possam rejeitar as propostas de demissão que lhes sejam feitas.

2.5.Finalmente o quarto e último mecanismo que, embora não directamente abordado na Lei Básica, se afigura essencial à garantia das tão referidas características do Ministério Público.

Trata-se da definição dos limites da subordinação hierárquica e da obediência a instruções por parte daqueles magistrados, matéria que hoje se encontra regulada nos artºs. 8º - nº2, 9º, 10º e 11º do DL nº 55/92/M, relativamente à qual, desde já, se adianta a opinião de que é altamente desejável que, na sua essência, se mantenha intocada na futura lei de organização judiciária.

A questão, na verdade, coloca-se nos seguintes termos: em qualquer caso, os magistrados do Ministério Público encontram-se vinculados, exclusivamente, a critérios de legalidade e de objectividade. Sendo esses os únicos critérios que os vinculam, pautarão por eles toda a sua actividade. É sabido, porém, que a magistratura do Ministério Público se encontra internamente hierarquizada, por um lado, e que representa o território de Macau, por outro. Dois factores que, certamente, propiciarão a emissão de instruções ora por parte dos respectivos superiores hierárquicos ora por parte do órgão executivo de governo próprio do Território, o Governador.

Em que grau tais poderes de emissão de instruções encontram no lado passivo de quem as recebe um dever de obediência ?  Sem temor, poder-se-á responder que no grau mais absoluto possível... desde que as referidas instruções não ofendam os critérios vinculativos de legalidade e de objectividade !

Vejamos a questão mais em pormenor.

E comecemos pela vertente da subordinação hierárquica.

O artº. 10º do DL nº 55/92/M procura estabelecer esse por vezes difícil equilíbrio entre hierarquia e vinculação aos referidos critérios, prevendo um dever de recusa de cumprimento de instruções ilegais e uma faculdade de recusa com fundamento em grave violação da consciência jurídica do magistrado. Comentando preceito constante da Lei Orgânica do Ministério Público vigente em Portugal, que serviu de fonte inspiradora àquele, escreve José Manuel Meirim em “Recusa do cumprimento de directivas, ordens e instruções com fundamento em grave violação da consciência jurídica”: “...uma nota sobre a especial relação hierárquica presente no estatuto dos magistrados do Ministério Público, certos de que aquela não segue, passo a passo, os traços característicos da hierarquia administrativa. Prova segura do que afirmamos é exactamente o que encontramos no domínio do exercício dos poderes directivos. Enquanto para os funcionários e agentes do Estado o exercício desse poder, e correlativo respeito do dever de obediência por parte do funcionário de grau inferior, permanece válido mesmo se concretizado de forma ilegal (com a única excepção do cumprimento de ordens ou instruções que impliquem a prática de qualquer crime ... artº. 271º, nº 3, da Constituição), no caso da relação hierárquica existente no Ministério Público, assiste-se pelo contrário, e desde logo, à imposição de um dever de recusa do cumprimento de ...instruções ilegais... . Esse dever, por si só, constitui um limite ao exercício dos poderes directivos. Mas não se fica por aqui a especialidade. Sintoma ainda mais flagrante da especialidade desta relação hierárquica, representa a possibilidade de , em larga medida, o magistrado colocado em grau inferior recusar o cumprimento de ... instruções com fundamento em grave violação da sua consciência jurídica.  ... afirmou-se radicar aqui um sinal da verdadeira dignificação da magistratura do Ministério Público (... o sistema apresenta ... as vantagens de defender a objectividade dos agentes do Ministério Público e a sua liberdade de avaliação, sem todavia perigar a realização dos fins que os superiores hierárquicos legitimamente se proponham ... cfr. o nº 3 da norma)”.

Temendo, porém, que o arrimo à vinculação aos critérios de legalidade e de objectividade pudessem subverter de todo a subordinação hierárquica - a qual, em Portugal, tem assento constitucional - o legislador revela grande prudência na regulamentação do dever e da faculdade de recusa. Comentando dois aspectos dessa regulamentação (os previstos nos nºs. 2 e 5 do preceito em causa), escreve o autor acima citado quanto à representação pessoal: “Trata-se...de uma precipitação do dever de lealdade, em que o magistrado hierarquicamente subordinado apresenta pessoalmente, isto é, diante dos olhos do superior hierárquico, as razões da sua recusa. ... A representação pessoal surge, assim,...como mais um sinal de dignificação da relação hierárquica dos magistrados do Ministério Público, estabelecendo-se um quadro onde prevalece o respeito por opiniões diferentes”. Questionando-se sobre a razoabilidade e proporcionalidade da previsão estabelecida em norma idêntica à do nº5 do artº. 10º, prossegue o autor: “Numa primeira leitura poder-se-ia configurar uma ‘ameaça’ ao exercício da faculdade de recusa, intolerável nos quadros constitucionais da liberdade de expressão. Ou seja, a eventualidade de surgir um juizo de injustificação do uso da faculdade de recusa, conducente a uma falta disciplinar, como que limita o livre exercício daquela faculdade, inibindo os magistrados, como que provocando uma autocensura”. Mas conclui: “Em nosso entender não procede este raciocínio”. E, a final, resume assim as razões da improcedência: “...a hierarquia do Ministério Público representa um meio constitucional não desprezível, no sentido da presunção da legalidade democrática, valor tão caro ao Estado de direito democrático. A quebra dessa relação hierárquica, em que se traduz a recusa de...instrução...só pode ser recebida com agrado por esta valoração, desde que a sua justificação não se encontre desprovida de fundamento. É este o ponto de equilíbrio alcançado, ao nível legislativo, que permite a salvaguarda do essencial das referências constitucionais em conflito”. Há que reconhecer que, neste último aspecto, a argumentação expendida para justificar o  conteúdo  daquele nº 5 sofrerá um duro golpe na RAEM, uma vez que o valor da liberdade de expressão se encontra expressamente previsto no artº. 27º da Lei Básica enquanto o da subordinação hierárquica dos magistrados do Ministério Público só com muito boa vontade, e em qualquer caso de forma claramente indirecta, se verá aflorado no artº. 90º.

Na vertente das instruções emitidas pelo Governador, há que notar, desde logo, a ausência da possibilidade de emissão de instruções de carácter genérico. Bem pelo contrário, as previsões das alíneas a) a c) do artº. 11º dirigem-se todas a causas concretamente instauradas, só podendo, por isso, as referidas instruções assumir um carácter específico. Por outro lado, mesmo a emissão de instruções de carácter específico encontra-se condicionada às causas em que, de certa forma, se discutam direitos ou interesses “disponíveis”, “particulares”, do “domínio privado” do Território: será esse o caso das acções cíveis e dos processos-crime dependentes de participação ou acusação particular por parte do Território. Ainda assim será de questionar: se o Ministério Público entender que tais instruções conflituam com os critérios de legalidade e de objectividade a que se encontra vinculado dever-lhes-á obediência ?

Entendemos que não, em virtude da supremacia desses critérios.

E não se diga que, assim, ficarão o Território ou a RAEM judiciariamente desprotegidos: em última análise sempre poderão recorrer aos serviços de um mandatário judicial como qualquer vulgar residente.


* Texto base da comunicação apresentada pelo autor no Seminário sobre as Questões Jurídicas do Período de Transição de Macau - 1997, organizado pela Universidade de Ciência Política e Direito da China em colaboração com o Gabinete para a Tradução Jurídica, a 10 e 11 de Novembro de 1997, em Pequim.

** Chefe de Gabinete do Secretário-Adjunto para a Justiça de Macau.

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