O
Ministério Público
500 anos depois
do descobrimento
Ronaldo Porto Macedo Júnior
O Ministério Público
é certamente uma das instituições brasileiras que tem
apresentado maior grau de plasticidade e mudança no Brasil desde
a descoberta. No âmbito das instituições que formam o Aparelho
Judicial, tal observação parece ser ainda mais verdadeira. Em
que pesem as profundas alterações sofridas pelo Judiciário
brasileiro desde a descoberta até hoje, o Judiciário ainda é o
Judiciário, isto é, uma esfera do poder estatal responsável
pela interpretação e aplicação da lei. O Judiciário ainda é
um "Poder do Estado". A mesma observação pode ser
feita com relação à Polícia. Também aqui, ainda que sejam
imensas as transformações pela quais passou a polícia judiciária
no país nestes cinco séculos, ela ainda continua com a sua
identidade básica, a saber, investigar e prevenir a ocorrência
de crimes em nossa sociedade. Será próprio, contudo, afirmar o
mesmo sobre o Ministério Público?
Uma análise histórica,
ainda que superficial, permite observar que o mesmo não ocorre
com o Ministério Público. Esta instituição nasce como um braço
do Poder Executivo.
Como procuradores
do rei, os promotores de justiça buscavam defender os interesses
da sociedade, então encarnados na figura do Estado, conforme
preceituava a teoria liberal da tripartição dos poderes. Tal traço
do Ministério Público iria caracterizar uma de suas marcas de
nascença, qual seja, representar simultaneamente os interesses do
Estado e do Governo, situação que no Brasil perdurou até a
Constituição Federal de 1988.
Conforme salientei
em outro trabalho, o Ministério Público surge como instituição
juntamente com a formação do Estado Moderno europeu,
representando uma reação contra a excessiva concentração de
poderes na figura do monarca1.
Nesta fase "pré-descobrimento", o Ministério Público
surge orientado basicamente pelos seguintes princípios: I. a
superação da vingança privada (só possível ao poderoso e ao
rico); II. entrega da ação penal a um órgão público tendente
à imparcialidade; III. a distinção entre Juiz e acusador; IV.
tutela dos interesses da coletividade e não só daquele do fisco
do soberano; V. execução rápida e certa das sentenças dos juízes.
Vale insistir que
é somente com a formação dos Estados Modernos e o fim da Idade
Média que inicia-se a separação dos poderes dos Estados que
anteriormente estavam todos concentrados nas mãos do monarca. Na
Idade Média o próprio poder judicante concentrava-se nas mãos
do monarca2.
O Ministério Público,
portanto, surge historicamente com o advento da separação dos
poderes do Estado Moderno. Por tal motivo, a sua proximidade mais
direta é com os "advocats e procureurs du roi"
criados no século XIV na França. Os advogados do rei ("avocats
du Roi") foram criados no século XIV e tinham atribuições
exclusivamente cíveis. Os procuradores do rei ("procureurs
du Roi") surgem com a organização das primeiras
monarquias e, ao lado de suas funções de defesa do fisco, tinham
função de natureza criminal. O Ministério Público francês
nasceu da fusão destas duas instituições, unidas pela idéia básica
de defender os interesses do Soberano que representava os
interesses do próprio Estado3.
O que se sabe sobre
a evolução do Ministério Público é que houve um processo
paulatino de formação e separação da atividade acusatória do
âmbito do Poder Judiciário. Neste sentido, os princípios
liberais da tripartição dos poderes significaram, na maioria dos
países ocidentais, o abandono do processo inquisitorial promovido
pelo Poder Judiciário pela criação de uma instituição autônoma
e especializada, como encarregada de tal tarefa. É de notar que só
recentemente tal processo ocorra em alguns países da América
Latina, como o Chile. Em outros países em que o Ministério Público
continua a fazer parte do Poder Judiciário, isto, contudo, não
invalida a afirmação feita, uma vez que foi criada uma
especialização dentro deste mesmo poder. Este é o caso da Itália,
Portugal, Costa Rica, etc.
No Brasil, o Ministério
Público encontra suas raízes no Direito Lusitano vigente no país
nos períodos colonial, imperial e início da república. As
Ordenações Manuelinas de 1521 já mencionavam o Promotor de
Justiça e suas obrigações perante as Casas da Suplicação e
nos juízos das terras. Nelas estavam presentes as influências
dos direitos francês e canônico. Segundo estas, o Promotor
deveria ser alguém "letrado e bem entendido para saber
espertar e alegar as causas e razões, que para lume e clareza da
justiça e para inteira conservação dela convém."
O Promotor de Justiça
atuava como um fiscal da lei e sua execução. Nas Ordenações
Filipinas de 1603 são definidas as atribuições do Promotor de
Justiça junto às Casas de Suplicação. Mais uma vez são
confirmadas as suas atribuições na fiscalização da lei e da
Justiça e no direito de promover a acusação criminal.
Segundo Abdon de
Mello4,
na época colonial, até 1609, apenas funcionava no Brasil a justiça
de primeira instância e nesta ainda não existia órgão
especializado do Ministério Público. Os processos criminais eram
iniciados pela parte ofendida ou "ex-officio",
pelo próprio Juiz. O recurso era interposto para a Relação de
Lisboa.
Em 1609, com a criação
do Tribunal da Relação da Bahia foi definida pela primeira vez a
figura do Promotor de Justiça que, juntamente com o Procurador
dos Feitos da Coroa e da Fazenda, integrava o Tribunal composto
por dez desembargadores. No novo regimento deste Tribunal a ação
do Ministério Público era assim definida:
"Art. 54 - O
Procurador dos Feitos da Coroa e Fazenda deve ser muito
diligente, e saber particularmente de todas as cousas que
tocarem à Coroa e Fazenda, para requerer nellas tudo o que
fizer a bem de minha justiça; para o que será sempre presente
a todas as audiências que fizer dos feitos da coroa e fazenda,
por minhas Ordenações e extravagantes. Art. 55 - Servirá
outrossim o dito Procurador da Coroa e dos feitos da Fazenda de
Procurador do fisco e de Promotor de Justiça; e usará em todo
o regimento, que por minhas Ordenações é dado ao Promotor de
Justiça da Casa da Suplicação e ao Procurador do fisco5.
Em 1751 foi criada
outra Relação na Cidade do Rio de Janeiro. Esta viria a se
transformar em Casa de Suplicação do Brasil em 1808, cabendo-lhe
julgar recurso da Relação da Baía. Neste novo tribunal o cargo
de Promotor de Justiça e o cargo de Procurador dos Feitos da
Coroa e Fazenda separaram-se e passaram a ser ocupados por dois
titulares. Era o primeiro passo para a separação total das funções
da Procuradoria da República (que defende o Estado e o fisco) e o
Ministério Público, somente tornada definitiva com a Constituição
Federal de 1988. Todavia, somente com o Código de Processo Penal
do Império de 1832 foi dado tratamento sistemático ao Ministério
Público. Tal Código colocava o Promotor de Justiça como órgão
da sociedade, titular da ação penal. Conforme esclarece Costa
Machado:
"Dispunha o
art. 36 (do estatuto criminal de 1832) que podiam ser promotores
aquelas pessoas que pudessem ser jurados; dentre estes,
preferencialmente, os que fossem instruídos em leis. Uma vez
escolhidos, haviam de ser nomeados pelo governo na Corte ou pelo
presidente das províncias. Já o artigo 37 afirmava pertencer
ao promotor as seguintes atribuições: denunciar os crimes públicos,
e policiais, o crime de redução à escravidão de pessoas
livres, cárcere privado, homicídio ou tentativa, ferimentos
com qualificações, roubos, calúnias, injúrias contra pessoas
várias, bem como acusar os delinqüentes perante os jurados;
solicitar a prisão e punição dos criminosos e promover a
execução das sentenças e mandados judiciais (§ 2º); dar
parte às autoridades competentes das negligências e prevaricações
dos empregados na administração da Justiça (§ 3º). No
artigo 38 previa-se a nomeação interina no caso de impedimento
ou falta do promotor (...) Posteriormente, pelo art. 217 do
Regulamento 120, de 31/01/1842 - passaram os promotores a servir
enquanto conviesse ao serviço público, podendo ser demitidos
"ad nutum" pelo Imperador ou pelos presidentes das
províncias. O Decreto nº 4.824, de 22/11/1871, em seu artigo 1º,
por sua vez, criou o cargo de "Adjunto do Promotor"
para substituí-lo em suas faltas ou impedimentos."6
O Aviso de
20/10/1836 criou novas atribuições para os Promotores como
visitar prisões uma vez por mês, dar andamento nos processos e
diligenciar a soltura dos réus. O Aviso de 31/10/1859 instituía
o impedimento à advocacia pelos Promotores nas causas cíveis que
pudessem vir a ser objeto de processo crime.
Conforme aponta
Carlos Alberto de Salles:
"O
regulamento nº 120 de 31 de janeiro de 1842, em seu artigo 217,
seguido pela Lei 03 de dezembro de 1851, que versa sobre a
reforma do processo penal, modifica a sistemática da nomeação
do Promotor Público. Suprime-se o mandato por um triênio,
passando o Promotor a ocupar o cargo por tempo indefinido. As
nomeações, entretanto, passavam a ser feitas por exclusivo
critério do Imperador na Corte e pelo Presidente nas Províncias,
sem a participação das câmaras municipais. A nova regra
indica expressamente, também, que os Promotores poderiam ser
demitidos a qualquer tempo de acordo com a conveniência do
serviço público. Esta norma, mais do que um avanço, como
querem alguns, significou um retrocesso institucional, uma vez
que retirou do Ministério Público a legitimidade que lhe era
emprestada pela proposta da Câmara Municipal, colocando a nomeação
e demissão do Promotor Público sob exclusivo alvitre dos
chefes do Poder Executivo."7
Há relatos que
indicam que neste período a profissão de Promotor de Justiça não
era muito prestigiada, especialmente no tocante à remuneração.
Vicente Alves de Paula Pessoa, observava que "para esse
funcionários, são mesquinhos os ordenados, mesquinhas as
gratificações, e mesquinhos os emolumentos, quando convinha
recompensar a moços esperançosos, hábeis e dedicados ao
trabalho. Tanta mesquinhez e a porta que fixa-se às bellas aspirações,
e à nobres caracteres."8
A Lei do Ventre
Livre (Lei nº 2.040 de 28 de setembro de 1871 deu ao Promotor de
Justiça a função de protetor do fraco e indefeso (que
futuramente viria a ser definido como hipossuficiente) ao
estabelecer que a ele cabia zelar para que os filhos livres de
mulheres escravas fossem devidamente registrados. O Decreto nº
848 de 11 de setembro de 1890 que criava e regulamentava a Justiça
Federal dispôs sobre a estrutura do Ministério Público Federal.
Tal decreto foi elaborado pelo Ministro da Justiça Campos Salles
que, por tal motivo, foi considerado o patrono do Ministério Público.
Em sua exposição de motivos era esclarecido que:
"O Ministério
Público, instituição necessária em toda a organização
democrática e imposta pelas boas normas da justiça, está
representado nas duas esferas da Justiça Federal. Depois do
Procurador Geral da República vêm os Procuradores seccionais,
isto é, um em cada Estado. Compete-lhe em geral velar pela
execução das leis, decretos e regulamentos que devem ser
aplicados pela Justiça Federal e promover a ação pública
onde ela couber. A sua independência foi devidamente
resguardada".
Observa Carlos
Alberto de Salles que, a despeito das palavras da exposição de
motivos, a estrutura funcional do Ministério Público não foi
substancialmente alterada. Manteve-se, por exemplo, a tradição
vinda das Ordenações Filipinas, segundo a qual as funções
do Ministério Público em superior instância eram exercidas por
membro do Poder Judiciário. O Procurador Geral era indicado
pelo Presidente da República. Estava entre as suas funções
"cumprir as ordens do governo da República relativas ao
exercício de suas funções", bem como a de "promover
o bem dos direitos e interesses da União" (art. 24, alínea
"c"). Função esta até recentemente desempenhada pelo
Ministério Público Federal, a despeito da Constituição Federal
de 1988 ter separado a Advocacia Geral da União, a quem cumpre
zelar pelos interesses do Estado do Ministério Público,
encarregado de defender os interesses sociais.
Apesar do que foi
enunciado no Decreto do Ministro Manuel Ferraz de Campos Salles
(Decreto 848/1890), a Constituição Federal de 1891 não fez
nenhuma menção ao Ministério Público. A única referência era
a respeito do Procurador Geral da República que era tratado no título
destinado ao Poder Judiciário.
Com o advento da
República houve um crescente processo de codificação do direito
brasileiro que culminou com a promulgação dos seguintes diplomas
legais: Código Civil (1917), Código de Processo Civil (1939), Código
Penal (1940), Código de Processo Penal (1941) e o Novo Código de
Processo Civil de 1973 que deu novas atribuições ao Ministério
Público.
O Código Civil de
1917 deu ao Ministério Público atribuições até hoje vigentes
como a curadoria de fundações (art. 26), legitimidade para
propor ação de nulidade de casamento (art. 208, § único, II),
defesa dos interesses de menores (art. 394, caput), legitimidade
para propor ação de interdição (art. 447, III) e a de promover
a nomeação de curador de ausente (art. 463), dentre outras. O Código
de Processo Civil de 1939 estabeleceu a obrigatoriedade da
intervenção do Ministério Público em diversas situações,
especialmente na condição de "custos legis".
Nesta fase, o Promotor de Justiça passa a atuar como fiscal da
lei ("custos legis") apresentando seu parecer após
a manifestação das partes. A sua intervenção visava proteger
basicamente os valores e interesses sociais então considerados
indisponíveis ou mais importantes como as relações jurídicas
do direito de família, casamento, registro e filiação, defesa
dos incapazes, defesa da propriedade privada (daí a intervenção
em feitos de usucapião, testamentos e disposições de última
vontade, etc.). A partir deste período, o Promotor vinculava-se
basicamente a defesa dos valores centrais de uma ordem social e
econômica burguesa predominantemente rural e agrária. Deste
modo, inicia-se o fenômeno do "parecerismo" que marcará
toda uma tradição de praxis jurídica do Ministério Público
até os dias de hoje. Anteriormente ao Código de Processo Civil
de 1939 eram vigentes os Códigos de Processo Civil estaduais, os
quais não davam atenção especial ao Ministério Público.
O Código de
Processo Penal de 1941 consolidou a posição do Ministério Público
como titular da ação penal e deu-lhe poder de requisição de
instauração de inquérito policial e outras diligências no
procedimento inquisitorial. A Constituição Federal de 1937 fazia
alusão exclusivamente ao Procurador Geral da República como
chefe do Ministério Público Federal e instituía o
"Quinto" constitucional, mecanismo pelo qual um quinto
dos membros dos Tribunais deveria ser composto por profissionais
oriundos do Ministério Público e Advocacia, alternadamente.
A Constituição
Federal de 1946 tratou do Ministério Público em título
especial, sem vinculação a qualquer dos outros poderes da República
e instituía os Ministérios Públicos Federal e Estadual,
garantindo-lhes a estabilidade na função, o concurso de provas e
títulos, a promoção e a remoção somente por representação
motivada da Procuradoria Geral e lhe definia a estrutura e atribuições.
A Constituição
Federal de 1967 trouxe importantes inovações ao subordinar o
Ministério Público ao Poder Judiciário, criando a regulamentação
"séria" do concurso de provas e títulos, abolidos os
"concursos internos" que davam margem a influências políticas.
Ao vir a integrar o Poder Judiciário, o Ministério Público deu
importante passo na conquista de seu autonomia e independência,
através da assemelhação com os magistrados. Tais
"conquistas" somente seriam consagradas
constitucionalmente na Constituição Federal de 1988. A Constituição
Federal de 1969 (Ou Emenda Constitucional nº 1 de 17 de outubro
de 1969) retirou as mesmas condições de aposentadoria e
vencimentos atribuídos aos juízes (pela supressão do § único
do art. 139) e perda de sua independência, pela subordinação no
capítulo do Poder Executivo.
O Código de
Processo Civil de 1973 deu tratamento sistemático ao Ministério
Público. Ao disciplinar a sua intervenção, basicamente o
Código de Processo Civil conferiu-lhe um papel de órgão
interveniente, "custos legis", estabelecendo que:
"Art. 82.
Compete ao Ministério Público intervir:
I - Nas causas em há
interesses de incapazes;
II - Nas causas
concernentes ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela,
interdição, casamento, declaração de ausência e disposição
de última vontade;
III - em todas as
demais causas em que há interesse público, evidenciado pela
natureza da lide ou qualidade da parte."
Ademais, a Lei de
Mandado de Segurança (Lei 1.533 de 31/12/51, artigo 10), a Lei de
Falências (Decreto-Lei 661/45 de 21/06/45, artigo 210), Lei de Ações
Populares (Lei nº 4.1 de 29/06/65, artigo 6º, § 4º), Lei de
Alimentos (Lei nº 5.478/68 de 25/0/68, artigo 9º), Lei de
Registros Públicos (Lei nº 6.015/73, de 31/12/73, artigos 57,
67, §1º, 76, § 3º, 109, 200, 213, § 3º), Lei de Acidentes do
Trabalho (Lei nº 5.638/70 e posteriormente Leis 6.367/76 e
8.213/91), etc., prevêem a intervenção do Ministério Público,
de maneira expressa ou por interpretação (como no caso de
acidentes do trabalho), basicamente como fiscal da lei, na
função de emitir pareceres.
Até aqui a tendência
brasileira ainda acompanhou os paradigmas dos países de tradição
jurídica continental, i.e., atuar como autor da persecução
penal e como parecerista em algumas questões cíveis. Nos anos
1970 começa a se forjar um novo espírito e perfil institucional
do Ministério Público voltado para a defesa dos direitos
sociais. A propósito, é neste mesmo período que a própria
expressão começa a entrar em voga.
A Emenda nº 7 de
1977 alterou o artigo 96 da Constituição de 1969 e autorizou os
Ministérios Públicos a se organizarem em carreira por leis
estaduais. Como conseqüência foi promulgada a Lei Complementar nº
40 de 14/12/1981 que traçou um novo perfil ao Ministério Público
definindo-se como "instituição permanente e essencial à
função jurisdicional do Estado, e responsável, perante o Judiciário,
pela defesa da ordem jurídica e dos interesses indisponíveis da
sociedade, pela fiel observância da Constituição e das Leis".
Tal definição viria a ser praticamente repetida no artigo 127 da
Constituição Federal de 1988.
A Lei nº 6.938/81
previu a ação de indenização ou reparação de danos causados
ao meio ambiente legitimando o Ministério Público a proposição
de ação de responsabilidade civil e criminal. A seguir, a Lei nº
7.347 de 24 de julho de 1985, conhecida como Lei de Ação Civil Pública,
conferiu legitimidade ao Ministério Público para a propositura
de ações civis públicas em defesa dos interesses difusos e
coletivos, como aqueles relacionados à defesa do meio ambiente,
patrimônio histórico e paisagístico, consumidor, deficiente,
direitos constitucionais do cidadão, etc. Este diploma legal
inaugurou uma nova fase do Direito Brasileiro e deu novo horizonte
para a atuação do Ministério Público na área cível. A partir
de tal lei foi criado um canal para o tratamento judicial das
grandes questões do direito de massas, dos novos conflitos
sociais coletivos de caráter notadamente urbanos. Tal lei
conferiu ao Ministério Público o poder de instaurar e presidir
inquéritos civis sempre que houvesse a informação sobre a ocorrência
de dano a interesse ambiental, paisagístico, do consumidor, etc.
Nesta nova fase, o Promotor de Justiça passa a atuar como
verdadeiro advogado (como órgão agente que propõe a ação,
requer diligências, produz prova, etc.) dos interesses sociais
coletivos ou difusos. Para apreciar a dimensão do Ministério Público
no interior de uma ordem social como a brasileira que conta com
uma sociedade civil ainda desorganizada e desarticulada, basta
lembrar que o Ministério Público é hoje autor de 96% de todas
as ações civis públicas ambientais em trâmite pelos tribunais
do país9.
A despeito da ausência de dados estatísticos precisos, é válido
supor que tal situação de quase monopólio de fato (de vez que o
Ministério Público não tem o monopólio jurídico para a
propositura destas ações) de todas as ações civis em defesa de
interesses sociais coletivos ou difusos.
Em meados da década
de 1980 as diversas associações estaduais e nacional (CONAMP) do
Ministério Público elaboraram, a partir de uma ampla consulta a
todos os Promotores de Justiça do país, uma série de propostas
que redundaram no documento conhecido por "Carta de
Curitiba", que elencava as principais reivindicações da
instituição.10
Finalmente, a Constituição Federal de 1988, acolhendo o
pensamento dominante entre os Promotores de Justiça, delineou um
novo perfil institucional ao Ministério Público, definindo-o
como "Instituição permanente, essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica,
do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis" (art. 127). Definiu a sua unidade,
indivisibilidade e independência funcional. Assegurou-lhe a
autonomia funcional e administrativa. Garantiu-lhe as mesmas
prerrogativas dos membros do Poder Judiciário como a
vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos.
Do ponto de vista de suas atribuições conferiu-lhe um perfil
primordialmente de órgão agente11
estabelecendo a ele, em seu artigo 129 as seguintes funções
institucionais:
"Art. 129. São
funções institucionais do Ministério Público:
I - promover,
privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;
II - zelar pelo
efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância
pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo
as medidas necessárias a sua garantia;
III - promover o
inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do
patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros
interesses difusos e coletivos;
IV - promover a ação
de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção
da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição;
V - defender
judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas;
VI - expedir
notificações nos procedimentos administrativos de sua competência,
requisitando informações e documentos para instruí-los, na
forma da lei complementar respectiva;
VII- exercer o
controle externo da atividade policial, na forma da Lei
complementar mencionada no artigo anterior;
VIII- requisitar
diligências investigatórias e a instauração de inquérito
policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações
processuais;
IX - exercer outras
funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua
finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a
consultoria de entidades públicas".
Este novo perfil
marca a especificidade do Ministério Público brasileiro que, ao
contrário de outros ministérios públicos nacionais,
modernizou-se para adaptar-se às novas exigências praticas e teóricas
do direito contemporâneo, também chamado Direito Social. Este
caracteriza-se por sua estruturação feita a partir de um novo
padrão ou paradigma de racionalidade jurídica. Neste paradigma
de pensamento jurídico a Justiça é pensada como um princípio
de equilíbrio (ou balanceamento) de interesses sociais irredutíveis
a uma medida de Justiça transcendental ou universal. No âmbito
do Direito Social não há lugar para uma medida universal, geral,
de Justiça. A sociedade torna-se o único princípio possível de
totalização da medida do direito a partir de uma lógica de
acordos e acomodações sociais e políticas. O Direito Social é
cada vez mais um direito de interesses de grupos, um direito de
desigualdades, um direito de privilégios de grupos tendo em vista
os restabelecimento do equilíbrio material entre as partes na
busca de uma Justiça Distributiva em oposição a um princípio
de Justiça Corretiva predominante na lógica jurídica liberal12.
Não é por outro motivo que no seu interior criam-se normas de
proteção especial a grupos (que, portanto, rompem com o
paradigma liberal de igualdade formal de todos num mesmo
ordenamento jurídico), como, por exemplo, os consumidores, os
idosos, os deficientes físicos, os incapazes, as crianças e
adolescentes, os acidentados do trabalho, os pensionistas, mutuários,
sem-terra, etc. Ainda que seja discutível a implantação plena
do Estado do Bem-Estar no Brasil, é certo afirmar que as
estruturas jurídicas e o paradigma jurídico dominante no Direito
brasileiro contemporâneo apresenta as características básicas
do Direito Social.
O papel do Ministério
Público está diretamente relacionado às novas características
do Direito Social, na medida em que o fundamento de intervenção
do Promotor de Justiça no âmbito do Aparelho Judicial é o de
defensor direto dos interesses sociais (sejam eles coletivos,
difusos ou individuais homogêneos imbuídos de interesse social)
ou atuar como fiscal do equilíbrio concreto (e não apenas
o equilíbrio formal, também designado como equilíbrio
processual subjacente à idéia do contraditório e do "due
process of Law") pressuposto nas regras de julgamento do
Direito Social. Na medida em que o Promotor de Justiça deve zelar
pelo equilíbrio material13,
o equilíbrio concreto na relação jurídica quando atuar na
forma de "custos legis".
Os mais importantes
diplomas legais recentemente promulgados, como o Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069 de 13/07/90 e o Código de
Consumidor, Lei nº 8.078 de 11/09/90, estabelecem com clareza
esta nova identidade do Promotor de Justiça. No ECA o Promotor de
Justiça age como um guardião dos interesses do hipossuficiente,
o incapaz, em particular a criança e o adolescente carentes —
à quem se destina de maneira mais direta o estatuto — que por
sua própria condição concreta e jurídica não estão em condições
de fazer valer os seus direitos. Vale notar que a Constituição
Federal estabelece ser um dever do Estado zelar pelas crianças e
juventude (C.F. art. 227). Vale notar que o ECA amplia os poderes
do Promotor de Justiça de modo a permitir que os direitos e
interesses deste grupo social sejam privilegiados em relação a
outros interesses sociais. Mais uma vez se vê que o Direito
Social é um Direito de preferências, um direito de privilégios
de grupos.
O Código do
Consumidor, através dos princípios da transparência, do justo
equilíbrio, da vedação das cláusulas contratuais abusivas e da
proibição da onerosidade excessiva (art. 51, § 1º, III, do
CDC) procura estabelecer um equilíbrio concreto nas relações
entre consumidores e comerciantes. O legislador criou normas de
proteção a um grupo determinado, os consumidores, que são
amparados por legislação, de cunho não liberal clássico14,
malgrado coexista a idéia de um mercado capitalista livre. A própria
intervenção do Ministério Público nas relações entre
consumidores é mais um mecanismo de proteção e garantia desta
categoria de titulares de direitos.
É certo que tal
tendência deverá se manifestar igualmente na defesa de outros
grupos sociais considerados mais fracos e, por tal motivo,
considerados pelo Direito Social como merecedores de proteção
especial, como, por exemplo, o grupo dos deficientes físicos,
acidentados, idosos, mutuários, inquilinos, sem-terra,
analfabetos, etc.
Cabe também
salientar que o Ministério Público, especialmente a partir da
Constituição Federal de 1988, ampliou o âmbito de sua atuação
funcional para além dos limites de sua atividade perante o Poder
Judiciário. Ao ampliar os limites e extensão do inquérito
civil, de sua atuação de fiscalização e promoção dos
interesses sociais, o Promotor de Justiça passou a ter importante
papel como instituição mediadora dos conflitos e interesses
sociais. A sua tarefa institucional ampliou-se no plano da
realização de acordos, promoção da efetiva implementação da
justiça social através do seu envolvimento direto (a não apenas
através dos autos do processo) com os problemas sociais.
Novamente o Ministério
Público parecia estar acompanhando o paradigma institucional
dominante, isto é, a defesa dos interesses sociais que afloravam
em todos os sistemas jurídicos ocidentais15.
No entanto, a conclusão não é tão simples. O Ministério Público
brasileiro tem traços peculiares e únicos. Em outros países
outras instituições tomaram estas novas funções de defesa dos
interesses sociais. Nos países escandinavos, por exemplo, a
figura do Ombudsman reuniu as funções de equilibrador de
interesses sociais e veículo para a apresentação de demandas. O
mesmo tem ocorrido recentemente na Argentina, onde o Ministério Público
(Fiscalia) continua com atribuições relativamente tradicionais,
como a persecução penal e atuação como custos legis em ações
de família, registros etc., e as novas funções e tutela de
interesses coletivos e sociais ficam a cargo da Ouvidoria.
Nos Estados Unidos, uma série de novos interesses são
representados por ONGs16
ou outros órgãos do governo, como o Federal Trade Comission, o
Food and Drugs Agency, FCC, etc.
O que marcou esta
criação institucional brasileira, e não a sua evolução, visto
que não há uma caminho natural necessário e evolucionista) foi
a vontade institucional, coordenada por suas lideranças, aliada a
um contexto de oportunidades e novas demandas sociais.
Hoje o Ministério
Público, apesar de seus vínculos esquizofrênicos com o passado
- que o faz agir ora de modo moderno, agente, ora de modo
parecerista, tradicional - ganha nova importância. O sua presença
na mídia é um evidente sintoma disto. Este sucesso de mídia,
contudo, não deve servir de manto para encobrir novos problemas e
desafios17.
Ultimamente o Ministério Público vem demonstrando que corre o
risco de vitimar-se pela burocratização em razão de diversos
aspectos, dentre os quais caberia destacar: 1)- aumento
desenfreado de seus quadros sem que seja imposto um padrão de
gestão de recursos humanos e financeiros mais eficaz; 2)- perda
de sua identidade funcional em razão de sua resistência a
racionalizar sua forma de atuação a abandonar atribuições
tradicionais, já não mais compatíveis com seu novo perfil18;
3)- inexistência de estímulos internos para a eficiência e
efetividade de sua atuação; 4)- corporativismo demagógico
estimulado pela introdução de mecanismo eleitorais internos sem
a necessária democratização interna de suas práticas políticas,
com a desconcentração e transparência no exercício do poder;
5)- dificuldade de suas lideranças em planejar o futuro,
desenvolvendo um projeto institucional conseqüente e esforçando-se
para implementá-lo19.
A lição a tomar
nestes 500 anos de Brasil é a de que uma instituição não tem
seu lugar ou relevância naturais. Assim como crescem, as instituições
perdem importância, relevância ou eficácia. Este Ministério Público
de hoje não tem assegurado um futuro evolutivo, de expansão ou
"aperfeiçoamento". É certo, contudo, que as instituições
têm uma certa inércia que lhes garante certa permanência. Mesmo
num cenário de decadência, é difícil imaginar que o Ministério
Público volte a ser o que era a 500 anos atrás. A sua eventual
decadência poderá ser gerada pelo surgimento de novas instituições
(estatais ou não-governamentais), mais modernas e aptas a atender
as demandas de seu tempo20.
Em outras palavras, e esta a segunda lição e reter, uma instituição
decai não apenas por seu enrijecimento e burocratização, mas
também pelo surgimento de novas instituições que lhes tomam o
lugar, desempenhando novas e antigas funções com maior eficácia
e adequação. A história do Ministério Público nestes 500 anos
é um exemplo disto. Os riscos que hoje corre, também.
_______________
1
Esta parte histórica do texto foi por mim mais desenvolvida em
outro artigo "A evolução institucional do Ministério Público
brasileiro", artigo originalmente publicado no livro Uma
Introdução ao Estudo da Justiça. São Paulo: Série Justiça,
IDESP (Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São
Paulo). São Paulo: Sumaré, 1995. p. 39 ss. e republicado In Ministério
Público: Instituição e Processo, Antônio Augusto Mello de
Camargo Ferraz (org.), IEDC-Atlas, 2ª ed. 1999.
2
Neste sentido ver WIEACKER, Franz. História do direito privado
moderno. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1980.
3
TORNAGHI, Hélio. Comentários ao código de processo
civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, v. 1, p.
277-278.
4 Ministério
público rio grandense (subsídios para a sua história).
Porto Alegre: Imprensa Oficial, 1943, p. 13.
5
Idem. p. 15-16.
6
COSTA MACHADO, Antônio Cláudio, A Intervenção do Ministério
Público no Processo Civil, Saraiva, SP, 1989, p. 17-18.
7
SALLES, Carlos Aberto de, A legitimação do Ministério Público
para defesa de Direitos e Garantias Constitucionais, dissertação
de mestrado inédita apresentada junto ao Departamento de Processo
Civil da Faculdade de Direito da USP, 1992, p. 28. Ver também, do
mesmo autor Entre a razão e a utopia: a formação histórica do
Ministério Público, In Ministério Público II: democracia,
VIGLIAR, José Marcelo Menezes e MACEDO JR, Ronaldo Porto (org.),
Atlas-IEDC, 1999.
8
PAULA PESSOA, Vicente Alves de. Código de processo criminal de
1º instância e processual comparado, Rio de Janeiro: José
Konfino, 1951, p. 63, Apud SALLES, Carlos Alberto de. Op. cit., p.
28.
9
Cf. MILARÉ, Edis. O ministério público e a defesa do meio
ambiente, texto aprovado na reunião de curadores do meio ambiente
do Brasil. 1992, mimeo.
10
Cf. MAZZILLI, Hugo Nigro. O ministério público na constituição
de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 23-38.
11
Sobre este novo perfil de órgão agente ver GUIMARÃES JR., João
Lopes. Ministério Público: proposta para uma nova postura no
processo civil, In Ministério Público: Instituição e
Processo, op. cit. e também publicado In Anais do IX
Congresso Nacional do Ministério Público. Salvador: 1992.
12
Os conceitos de Justiça Distributiva e Justiça
Corretiva são de origem aristotélica. Cf.
ARISTÓTELES. Ética
à Nicômaco. Trad. de Mário da Gama Kury, Brasília: Ed.
UnB, especialmente livro V. Tais conceitos são reatualizados no
âmbito do Direito Social moderno. A esse respeito ver Cf. EWALD,
François. l’État Providence. Paris: Grasset, 1986, p.
433 ss.
13
Sobre o fenômeno da materialização do Direito Social ver o
artigo de WIETHÖLTER, Rudolf. Materialization and
proceduralization in modern law. In: Dilemmas of law in
the welfare state. Berlin: European University Institute,
1985.
14
Sobre tal tema ver de MACEDO JR, Ronaldo Porto. Foucault: o poder
e o direito. In: Tempo Social, Revista de Sociologia da
USP, v. 2, 1º sem. 1990, p. 151-176. Ver também de MARQUES, Cláudia
Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. O novo
regime das relações contratuais. 1ª ed. São Paulo: RT,
1992
15
Cf. BOBBIO, Norberto, Era dos Direitos, Campus, Campinas.
16
estimuladas pelo sistema processual e judicial em vigor – Cf.
ISSSAACHAROFF, Samuel, Group litigation of consumer claims:
lessons from the american experience, in Anais do 1º Congresso
Inter-Americano de Direito do Consumidor, AJURIS, 1998.
17
Cf. de MACEDO JR, Ronaldo Porto, Ministério Público Brasileiro:
um novo ator político, In: Ministério Público II: democracia,
op. cit.
18
Cf. FERRAZ, Antônio Augusto Mello de Camargo e MACEDO JR, Ronaldo
Porto. Importância estratégica do merecimento e o fim da lista
tríplice In Revista da APMP, outubro de 1999.
19
Cf. FERRAZ, Antônio Augusto Mello de Camargo e GUIMARÃES JR, João
Lopes. A necessária elaboração de uma nova doutrina de Ministério
Público, compatível com seu atual perfil constitucional In Ministério
Público: Instituição e Processo, op. cit.
20 Tratei do
assunto in Quarto Poder e Terceiro Setor. O Ministério Público e
as organizações não-governamentais sem fins lucrativos –
estratégias para o futuro, In: Ministério Público II:
democracia, op. cit.
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