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O Ministério Público
 
500 anos
depois do descobrimento

Ronaldo Porto Macedo Júnior

 

O Ministério Público é certamente uma das instituições brasileiras que tem apresentado maior grau de plasticidade e mudança no Brasil desde a descoberta. No âmbito das instituições que formam o Aparelho Judicial, tal observação parece ser ainda mais verdadeira. Em que pesem as profundas alterações sofridas pelo Judiciário brasileiro desde a descoberta até hoje, o Judiciário ainda é o Judiciário, isto é, uma esfera do poder estatal responsável pela interpretação e aplicação da lei. O Judiciário ainda é um "Poder do Estado". A mesma observação pode ser feita com relação à Polícia. Também aqui, ainda que sejam imensas as transformações pela quais passou a polícia judiciária no país nestes cinco séculos, ela ainda continua com a sua identidade básica, a saber, investigar e prevenir a ocorrência de crimes em nossa sociedade. Será próprio, contudo, afirmar o mesmo sobre o Ministério Público?

Uma análise histórica, ainda que superficial, permite observar que o mesmo não ocorre com o Ministério Público. Esta instituição nasce como um braço do Poder Executivo.

Como procuradores do rei, os promotores de justiça buscavam defender os interesses da sociedade, então encarnados na figura do Estado, conforme preceituava a teoria liberal da tripartição dos poderes. Tal traço do Ministério Público iria caracterizar uma de suas marcas de nascença, qual seja, representar simultaneamente os interesses do Estado e do Governo, situação que no Brasil perdurou até a Constituição Federal de 1988.

Conforme salientei em outro trabalho, o Ministério Público surge como instituição juntamente com a formação do Estado Moderno europeu, representando uma reação contra a excessiva concentração de poderes na figura do monarca1. Nesta fase "pré-descobrimento", o Ministério Público surge orientado basicamente pelos seguintes princípios: I. a superação da vingança privada (só possível ao poderoso e ao rico); II. entrega da ação penal a um órgão público tendente à imparcialidade; III. a distinção entre Juiz e acusador; IV. tutela dos interesses da coletividade e não só daquele do fisco do soberano; V. execução rápida e certa das sentenças dos juízes.

Vale insistir que é somente com a formação dos Estados Modernos e o fim da Idade Média que inicia-se a separação dos poderes dos Estados que anteriormente estavam todos concentrados nas mãos do monarca. Na Idade Média o próprio poder judicante concentrava-se nas mãos do monarca2.

O Ministério Público, portanto, surge historicamente com o advento da separação dos poderes do Estado Moderno. Por tal motivo, a sua proximidade mais direta é com os "advocats e procureurs du roi" criados no século XIV na França. Os advogados do rei ("avocats du Roi") foram criados no século XIV e tinham atribuições exclusivamente cíveis. Os procuradores do rei ("procureurs du Roi") surgem com a organização das primeiras monarquias e, ao lado de suas funções de defesa do fisco, tinham função de natureza criminal. O Ministério Público francês nasceu da fusão destas duas instituições, unidas pela idéia básica de defender os interesses do Soberano que representava os interesses do próprio Estado3.

O que se sabe sobre a evolução do Ministério Público é que houve um processo paulatino de formação e separação da atividade acusatória do âmbito do Poder Judiciário. Neste sentido, os princípios liberais da tripartição dos poderes significaram, na maioria dos países ocidentais, o abandono do processo inquisitorial promovido pelo Poder Judiciário pela criação de uma instituição autônoma e especializada, como encarregada de tal tarefa. É de notar que só recentemente tal processo ocorra em alguns países da América Latina, como o Chile. Em outros países em que o Ministério Público continua a fazer parte do Poder Judiciário, isto, contudo, não invalida a afirmação feita, uma vez que foi criada uma especialização dentro deste mesmo poder. Este é o caso da Itália, Portugal, Costa Rica, etc.

No Brasil, o Ministério Público encontra suas raízes no Direito Lusitano vigente no país nos períodos colonial, imperial e início da república. As Ordenações Manuelinas de 1521 já mencionavam o Promotor de Justiça e suas obrigações perante as Casas da Suplicação e nos juízos das terras. Nelas estavam presentes as influências dos direitos francês e canônico. Segundo estas, o Promotor deveria ser alguém "letrado e bem entendido para saber espertar e alegar as causas e razões, que para lume e clareza da justiça e para inteira conservação dela convém."

O Promotor de Justiça atuava como um fiscal da lei e sua execução. Nas Ordenações Filipinas de 1603 são definidas as atribuições do Promotor de Justiça junto às Casas de Suplicação. Mais uma vez são confirmadas as suas atribuições na fiscalização da lei e da Justiça e no direito de promover a acusação criminal.

Segundo Abdon de Mello4, na época colonial, até 1609, apenas funcionava no Brasil a justiça de primeira instância e nesta ainda não existia órgão especializado do Ministério Público. Os processos criminais eram iniciados pela parte ofendida ou "ex-officio", pelo próprio Juiz. O recurso era interposto para a Relação de Lisboa.

Em 1609, com a criação do Tribunal da Relação da Bahia foi definida pela primeira vez a figura do Promotor de Justiça que, juntamente com o Procurador dos Feitos da Coroa e da Fazenda, integrava o Tribunal composto por dez desembargadores. No novo regimento deste Tribunal a ação do Ministério Público era assim definida:

"Art. 54 - O Procurador dos Feitos da Coroa e Fazenda deve ser muito diligente, e saber particularmente de todas as cousas que tocarem à Coroa e Fazenda, para requerer nellas tudo o que fizer a bem de minha justiça; para o que será sempre presente a todas as audiências que fizer dos feitos da coroa e fazenda, por minhas Ordenações e extravagantes. Art. 55 - Servirá outrossim o dito Procurador da Coroa e dos feitos da Fazenda de Procurador do fisco e de Promotor de Justiça; e usará em todo o regimento, que por minhas Ordenações é dado ao Promotor de Justiça da Casa da Suplicação e ao Procurador do fisco5.

Em 1751 foi criada outra Relação na Cidade do Rio de Janeiro. Esta viria a se transformar em Casa de Suplicação do Brasil em 1808, cabendo-lhe julgar recurso da Relação da Baía. Neste novo tribunal o cargo de Promotor de Justiça e o cargo de Procurador dos Feitos da Coroa e Fazenda separaram-se e passaram a ser ocupados por dois titulares. Era o primeiro passo para a separação total das funções da Procuradoria da República (que defende o Estado e o fisco) e o Ministério Público, somente tornada definitiva com a Constituição Federal de 1988. Todavia, somente com o Código de Processo Penal do Império de 1832 foi dado tratamento sistemático ao Ministério Público. Tal Código colocava o Promotor de Justiça como órgão da sociedade, titular da ação penal. Conforme esclarece Costa Machado:

"Dispunha o art. 36 (do estatuto criminal de 1832) que podiam ser promotores aquelas pessoas que pudessem ser jurados; dentre estes, preferencialmente, os que fossem instruídos em leis. Uma vez escolhidos, haviam de ser nomeados pelo governo na Corte ou pelo presidente das províncias. Já o artigo 37 afirmava pertencer ao promotor as seguintes atribuições: denunciar os crimes públicos, e policiais, o crime de redução à escravidão de pessoas livres, cárcere privado, homicídio ou tentativa, ferimentos com qualificações, roubos, calúnias, injúrias contra pessoas várias, bem como acusar os delinqüentes perante os jurados; solicitar a prisão e punição dos criminosos e promover a execução das sentenças e mandados judiciais (§ 2º); dar parte às autoridades competentes das negligências e prevaricações dos empregados na administração da Justiça (§ 3º). No artigo 38 previa-se a nomeação interina no caso de impedimento ou falta do promotor (...) Posteriormente, pelo art. 217 do Regulamento 120, de 31/01/1842 - passaram os promotores a servir enquanto conviesse ao serviço público, podendo ser demitidos "ad nutum" pelo Imperador ou pelos presidentes das províncias. O Decreto nº 4.824, de 22/11/1871, em seu artigo 1º, por sua vez, criou o cargo de "Adjunto do Promotor" para substituí-lo em suas faltas ou impedimentos."6

O Aviso de 20/10/1836 criou novas atribuições para os Promotores como visitar prisões uma vez por mês, dar andamento nos processos e diligenciar a soltura dos réus. O Aviso de 31/10/1859 instituía o impedimento à advocacia pelos Promotores nas causas cíveis que pudessem vir a ser objeto de processo crime.

Conforme aponta Carlos Alberto de Salles:

"O regulamento nº 120 de 31 de janeiro de 1842, em seu artigo 217, seguido pela Lei 03 de dezembro de 1851, que versa sobre a reforma do processo penal, modifica a sistemática da nomeação do Promotor Público. Suprime-se o mandato por um triênio, passando o Promotor a ocupar o cargo por tempo indefinido. As nomeações, entretanto, passavam a ser feitas por exclusivo critério do Imperador na Corte e pelo Presidente nas Províncias, sem a participação das câmaras municipais. A nova regra indica expressamente, também, que os Promotores poderiam ser demitidos a qualquer tempo de acordo com a conveniência do serviço público. Esta norma, mais do que um avanço, como querem alguns, significou um retrocesso institucional, uma vez que retirou do Ministério Público a legitimidade que lhe era emprestada pela proposta da Câmara Municipal, colocando a nomeação e demissão do Promotor Público sob exclusivo alvitre dos chefes do Poder Executivo."7 

Há relatos que indicam que neste período a profissão de Promotor de Justiça não era muito prestigiada, especialmente no tocante à remuneração. Vicente Alves de Paula Pessoa, observava que "para esse funcionários, são mesquinhos os ordenados, mesquinhas as gratificações, e mesquinhos os emolumentos, quando convinha recompensar a moços esperançosos, hábeis e dedicados ao trabalho. Tanta mesquinhez e a porta que fixa-se às bellas aspirações, e à nobres caracteres."8

A Lei do Ventre Livre (Lei nº 2.040 de 28 de setembro de 1871 deu ao Promotor de Justiça a função de protetor do fraco e indefeso (que futuramente viria a ser definido como hipossuficiente) ao estabelecer que a ele cabia zelar para que os filhos livres de mulheres escravas fossem devidamente registrados. O Decreto nº 848 de 11 de setembro de 1890 que criava e regulamentava a Justiça Federal dispôs sobre a estrutura do Ministério Público Federal. Tal decreto foi elaborado pelo Ministro da Justiça Campos Salles que, por tal motivo, foi considerado o patrono do Ministério Público. Em sua exposição de motivos era esclarecido que:

"O Ministério Público, instituição necessária em toda a organização democrática e imposta pelas boas normas da justiça, está representado nas duas esferas da Justiça Federal. Depois do Procurador Geral da República vêm os Procuradores seccionais, isto é, um em cada Estado. Compete-lhe em geral velar pela execução das leis, decretos e regulamentos que devem ser aplicados pela Justiça Federal e promover a ação pública onde ela couber. A sua independência foi devidamente resguardada". 

Observa Carlos Alberto de Salles que, a despeito das palavras da exposição de motivos, a estrutura funcional do Ministério Público não foi substancialmente alterada. Manteve-se, por exemplo, a tradição vinda das Ordenações Filipinas, segundo a qual as funções do Ministério Público em superior instância eram exercidas por membro do Poder Judiciário. O Procurador Geral era indicado pelo Presidente da República. Estava entre as suas funções "cumprir as ordens do governo da República relativas ao exercício de suas funções", bem como a de "promover o bem dos direitos e interesses da União" (art. 24, alínea "c"). Função esta até recentemente desempenhada pelo Ministério Público Federal, a despeito da Constituição Federal de 1988 ter separado a Advocacia Geral da União, a quem cumpre zelar pelos interesses do Estado do Ministério Público, encarregado de defender os interesses sociais.

Apesar do que foi enunciado no Decreto do Ministro Manuel Ferraz de Campos Salles (Decreto 848/1890), a Constituição Federal de 1891 não fez nenhuma menção ao Ministério Público. A única referência era a respeito do Procurador Geral da República que era tratado no título destinado ao Poder Judiciário.

Com o advento da República houve um crescente processo de codificação do direito brasileiro que culminou com a promulgação dos seguintes diplomas legais: Código Civil (1917), Código de Processo Civil (1939), Código Penal (1940), Código de Processo Penal (1941) e o Novo Código de Processo Civil de 1973 que deu novas atribuições ao Ministério Público.

O Código Civil de 1917 deu ao Ministério Público atribuições até hoje vigentes como a curadoria de fundações (art. 26), legitimidade para propor ação de nulidade de casamento (art. 208, § único, II), defesa dos interesses de menores (art. 394, caput), legitimidade para propor ação de interdição (art. 447, III) e a de promover a nomeação de curador de ausente (art. 463), dentre outras. O Código de Processo Civil de 1939 estabeleceu a obrigatoriedade da intervenção do Ministério Público em diversas situações, especialmente na condição de "custos legis". Nesta fase, o Promotor de Justiça passa a atuar como fiscal da lei ("custos legis") apresentando seu parecer após a manifestação das partes. A sua intervenção visava proteger basicamente os valores e interesses sociais então considerados indisponíveis ou mais importantes como as relações jurídicas do direito de família, casamento, registro e filiação, defesa dos incapazes, defesa da propriedade privada (daí a intervenção em feitos de usucapião, testamentos e disposições de última vontade, etc.). A partir deste período, o Promotor vinculava-se basicamente a defesa dos valores centrais de uma ordem social e econômica burguesa predominantemente rural e agrária. Deste modo, inicia-se o fenômeno do "parecerismo" que marcará toda uma tradição de praxis jurídica do Ministério Público até os dias de hoje. Anteriormente ao Código de Processo Civil de 1939 eram vigentes os Códigos de Processo Civil estaduais, os quais não davam atenção especial ao Ministério Público.

O Código de Processo Penal de 1941 consolidou a posição do Ministério Público como titular da ação penal e deu-lhe poder de requisição de instauração de inquérito policial e outras diligências no procedimento inquisitorial. A Constituição Federal de 1937 fazia alusão exclusivamente ao Procurador Geral da República como chefe do Ministério Público Federal e instituía o "Quinto" constitucional, mecanismo pelo qual um quinto dos membros dos Tribunais deveria ser composto por profissionais oriundos do Ministério Público e Advocacia, alternadamente.

A Constituição Federal de 1946 tratou do Ministério Público em título especial, sem vinculação a qualquer dos outros poderes da República e instituía os Ministérios Públicos Federal e Estadual, garantindo-lhes a estabilidade na função, o concurso de provas e títulos, a promoção e a remoção somente por representação motivada da Procuradoria Geral e lhe definia a estrutura e atribuições.

A Constituição Federal de 1967 trouxe importantes inovações ao subordinar o Ministério Público ao Poder Judiciário, criando a regulamentação "séria" do concurso de provas e títulos, abolidos os "concursos internos" que davam margem a influências políticas. Ao vir a integrar o Poder Judiciário, o Ministério Público deu importante passo na conquista de seu autonomia e independência, através da assemelhação com os magistrados. Tais "conquistas" somente seriam consagradas constitucionalmente na Constituição Federal de 1988. A Constituição Federal de 1969 (Ou Emenda Constitucional nº 1 de 17 de outubro de 1969) retirou as mesmas condições de aposentadoria e vencimentos atribuídos aos juízes (pela supressão do § único do art. 139) e perda de sua independência, pela subordinação no capítulo do Poder Executivo.

O Código de Processo Civil de 1973 deu tratamento sistemático ao Ministério Público. Ao disciplinar a sua intervenção, basicamente o Código de Processo Civil conferiu-lhe um papel de órgão interveniente, "custos legis", estabelecendo que:

"Art. 82. Compete ao Ministério Público intervir:

I - Nas causas em há interesses de incapazes;

II - Nas causas concernentes ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposição de última vontade;

III - em todas as demais causas em que há interesse público, evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte."

 

Ademais, a Lei de Mandado de Segurança (Lei 1.533 de 31/12/51, artigo 10), a Lei de Falências (Decreto-Lei 661/45 de 21/06/45, artigo 210), Lei de Ações Populares (Lei nº 4.1 de 29/06/65, artigo 6º, § 4º), Lei de Alimentos (Lei nº 5.478/68 de 25/0/68, artigo 9º), Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73, de 31/12/73, artigos 57, 67, §1º, 76, § 3º, 109, 200, 213, § 3º), Lei de Acidentes do Trabalho (Lei nº 5.638/70 e posteriormente Leis 6.367/76 e 8.213/91), etc., prevêem a intervenção do Ministério Público, de maneira expressa ou por interpretação (como no caso de acidentes do trabalho), basicamente como fiscal da lei, na função de emitir pareceres.

Até aqui a tendência brasileira ainda acompanhou os paradigmas dos países de tradição jurídica continental, i.e., atuar como autor da persecução penal e como parecerista em algumas questões cíveis. Nos anos 1970 começa a se forjar um novo espírito e perfil institucional do Ministério Público voltado para a defesa dos direitos sociais. A propósito, é neste mesmo período que a própria expressão começa a entrar em voga.

A Emenda nº 7 de 1977 alterou o artigo 96 da Constituição de 1969 e autorizou os Ministérios Públicos a se organizarem em carreira por leis estaduais. Como conseqüência foi promulgada a Lei Complementar nº 40 de 14/12/1981 que traçou um novo perfil ao Ministério Público definindo-se como "instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, e responsável, perante o Judiciário, pela defesa da ordem jurídica e dos interesses indisponíveis da sociedade, pela fiel observância da Constituição e das Leis". Tal definição viria a ser praticamente repetida no artigo 127 da Constituição Federal de 1988.

A Lei nº 6.938/81 previu a ação de indenização ou reparação de danos causados ao meio ambiente legitimando o Ministério Público a proposição de ação de responsabilidade civil e criminal. A seguir, a Lei nº 7.347 de 24 de julho de 1985, conhecida como Lei de Ação Civil Pública, conferiu legitimidade ao Ministério Público para a propositura de ações civis públicas em defesa dos interesses difusos e coletivos, como aqueles relacionados à defesa do meio ambiente, patrimônio histórico e paisagístico, consumidor, deficiente, direitos constitucionais do cidadão, etc. Este diploma legal inaugurou uma nova fase do Direito Brasileiro e deu novo horizonte para a atuação do Ministério Público na área cível. A partir de tal lei foi criado um canal para o tratamento judicial das grandes questões do direito de massas, dos novos conflitos sociais coletivos de caráter notadamente urbanos. Tal lei conferiu ao Ministério Público o poder de instaurar e presidir inquéritos civis sempre que houvesse a informação sobre a ocorrência de dano a interesse ambiental, paisagístico, do consumidor, etc. Nesta nova fase, o Promotor de Justiça passa a atuar como verdadeiro advogado (como órgão agente que propõe a ação, requer diligências, produz prova, etc.) dos interesses sociais coletivos ou difusos. Para apreciar a dimensão do Ministério Público no interior de uma ordem social como a brasileira que conta com uma sociedade civil ainda desorganizada e desarticulada, basta lembrar que o Ministério Público é hoje autor de 96% de todas as ações civis públicas ambientais em trâmite pelos tribunais do país9. A despeito da ausência de dados estatísticos precisos, é válido supor que tal situação de quase monopólio de fato (de vez que o Ministério Público não tem o monopólio jurídico para a propositura destas ações) de todas as ações civis em defesa de interesses sociais coletivos ou difusos.

Em meados da década de 1980 as diversas associações estaduais e nacional (CONAMP) do Ministério Público elaboraram, a partir de uma ampla consulta a todos os Promotores de Justiça do país, uma série de propostas que redundaram no documento conhecido por "Carta de Curitiba", que elencava as principais reivindicações da instituição.10 Finalmente, a Constituição Federal de 1988, acolhendo o pensamento dominante entre os Promotores de Justiça, delineou um novo perfil institucional ao Ministério Público, definindo-o como "Instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis" (art. 127). Definiu a sua unidade, indivisibilidade e independência funcional. Assegurou-lhe a autonomia funcional e administrativa. Garantiu-lhe as mesmas prerrogativas dos membros do Poder Judiciário como a vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos. Do ponto de vista de suas atribuições conferiu-lhe um perfil primordialmente de órgão agente11 estabelecendo a ele, em seu artigo 129 as seguintes funções institucionais:

"Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;

II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;

III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

IV - promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição;

V - defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas;

VI - expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva;

VII- exercer o controle externo da atividade policial, na forma da Lei complementar mencionada no artigo anterior;

VIII- requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;

IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria de entidades públicas".

 

Este novo perfil marca a especificidade do Ministério Público brasileiro que, ao contrário de outros ministérios públicos nacionais, modernizou-se para adaptar-se às novas exigências praticas e teóricas do direito contemporâneo, também chamado Direito Social. Este caracteriza-se por sua estruturação feita a partir de um novo padrão ou paradigma de racionalidade jurídica. Neste paradigma de pensamento jurídico a Justiça é pensada como um princípio de equilíbrio (ou balanceamento) de interesses sociais irredutíveis a uma medida de Justiça transcendental ou universal. No âmbito do Direito Social não há lugar para uma medida universal, geral, de Justiça. A sociedade torna-se o único princípio possível de totalização da medida do direito a partir de uma lógica de acordos e acomodações sociais e políticas. O Direito Social é cada vez mais um direito de interesses de grupos, um direito de desigualdades, um direito de privilégios de grupos tendo em vista os restabelecimento do equilíbrio material entre as partes na busca de uma Justiça Distributiva em oposição a um princípio de Justiça Corretiva predominante na lógica jurídica liberal12. Não é por outro motivo que no seu interior criam-se normas de proteção especial a grupos (que, portanto, rompem com o paradigma liberal de igualdade formal de todos num mesmo ordenamento jurídico), como, por exemplo, os consumidores, os idosos, os deficientes físicos, os incapazes, as crianças e adolescentes, os acidentados do trabalho, os pensionistas, mutuários, sem-terra, etc. Ainda que seja discutível a implantação plena do Estado do Bem-Estar no Brasil, é certo afirmar que as estruturas jurídicas e o paradigma jurídico dominante no Direito brasileiro contemporâneo apresenta as características básicas do Direito Social.

O papel do Ministério Público está diretamente relacionado às novas características do Direito Social, na medida em que o fundamento de intervenção do Promotor de Justiça no âmbito do Aparelho Judicial é o de defensor direto dos interesses sociais (sejam eles coletivos, difusos ou individuais homogêneos imbuídos de interesse social) ou atuar como fiscal do equilíbrio concreto (e não apenas o equilíbrio formal, também designado como equilíbrio processual subjacente à idéia do contraditório e do "due process of Law") pressuposto nas regras de julgamento do Direito Social. Na medida em que o Promotor de Justiça deve zelar pelo equilíbrio material13, o equilíbrio concreto na relação jurídica quando atuar na forma de "custos legis".

Os mais importantes diplomas legais recentemente promulgados, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069 de 13/07/90 e o Código de Consumidor, Lei nº 8.078 de 11/09/90, estabelecem com clareza esta nova identidade do Promotor de Justiça. No ECA o Promotor de Justiça age como um guardião dos interesses do hipossuficiente, o incapaz, em particular a criança e o adolescente carentes — à quem se destina de maneira mais direta o estatuto — que por sua própria condição concreta e jurídica não estão em condições de fazer valer os seus direitos. Vale notar que a Constituição Federal estabelece ser um dever do Estado zelar pelas crianças e juventude (C.F. art. 227). Vale notar que o ECA amplia os poderes do Promotor de Justiça de modo a permitir que os direitos e interesses deste grupo social sejam privilegiados em relação a outros interesses sociais. Mais uma vez se vê que o Direito Social é um Direito de preferências, um direito de privilégios de grupos.

O Código do Consumidor, através dos princípios da transparência, do justo equilíbrio, da vedação das cláusulas contratuais abusivas e da proibição da onerosidade excessiva (art. 51, § 1º, III, do CDC) procura estabelecer um equilíbrio concreto nas relações entre consumidores e comerciantes. O legislador criou normas de proteção a um grupo determinado, os consumidores, que são amparados por legislação, de cunho não liberal clássico14, malgrado coexista a idéia de um mercado capitalista livre. A própria intervenção do Ministério Público nas relações entre consumidores é mais um mecanismo de proteção e garantia desta categoria de titulares de direitos.

É certo que tal tendência deverá se manifestar igualmente na defesa de outros grupos sociais considerados mais fracos e, por tal motivo, considerados pelo Direito Social como merecedores de proteção especial, como, por exemplo, o grupo dos deficientes físicos, acidentados, idosos, mutuários, inquilinos, sem-terra, analfabetos, etc.

Cabe também salientar que o Ministério Público, especialmente a partir da Constituição Federal de 1988, ampliou o âmbito de sua atuação funcional para além dos limites de sua atividade perante o Poder Judiciário. Ao ampliar os limites e extensão do inquérito civil, de sua atuação de fiscalização e promoção dos interesses sociais, o Promotor de Justiça passou a ter importante papel como instituição mediadora dos conflitos e interesses sociais. A sua tarefa institucional ampliou-se no plano da realização de acordos, promoção da efetiva implementação da justiça social através do seu envolvimento direto (a não apenas através dos autos do processo) com os problemas sociais.

Novamente o Ministério Público parecia estar acompanhando o paradigma institucional dominante, isto é, a defesa dos interesses sociais que afloravam em todos os sistemas jurídicos ocidentais15. No entanto, a conclusão não é tão simples. O Ministério Público brasileiro tem traços peculiares e únicos. Em outros países outras instituições tomaram estas novas funções de defesa dos interesses sociais. Nos países escandinavos, por exemplo, a figura do Ombudsman reuniu as funções de equilibrador de interesses sociais e veículo para a apresentação de demandas. O mesmo tem ocorrido recentemente na Argentina, onde o Ministério Público (Fiscalia) continua com atribuições relativamente tradicionais, como a persecução penal e atuação como custos legis em ações de família, registros etc., e as novas funções e tutela de interesses coletivos e sociais ficam a cargo da Ouvidoria. Nos Estados Unidos, uma série de novos interesses são representados por ONGs16 ou outros órgãos do governo, como o Federal Trade Comission, o Food and Drugs Agency, FCC, etc.

O que marcou esta criação institucional brasileira, e não a sua evolução, visto que não há uma caminho natural necessário e evolucionista) foi a vontade institucional, coordenada por suas lideranças, aliada a um contexto de oportunidades e novas demandas sociais.

Hoje o Ministério Público, apesar de seus vínculos esquizofrênicos com o passado - que o faz agir ora de modo moderno, agente, ora de modo parecerista, tradicional - ganha nova importância. O sua presença na mídia é um evidente sintoma disto. Este sucesso de mídia, contudo, não deve servir de manto para encobrir novos problemas e desafios17. Ultimamente o Ministério Público vem demonstrando que corre o risco de vitimar-se pela burocratização em razão de diversos aspectos, dentre os quais caberia destacar: 1)- aumento desenfreado de seus quadros sem que seja imposto um padrão de gestão de recursos humanos e financeiros mais eficaz; 2)- perda de sua identidade funcional em razão de sua resistência a racionalizar sua forma de atuação a abandonar atribuições tradicionais, já não mais compatíveis com seu novo perfil18; 3)- inexistência de estímulos internos para a eficiência e efetividade de sua atuação; 4)- corporativismo demagógico estimulado pela introdução de mecanismo eleitorais internos sem a necessária democratização interna de suas práticas políticas, com a desconcentração e transparência no exercício do poder; 5)- dificuldade de suas lideranças em planejar o futuro, desenvolvendo um projeto institucional conseqüente e esforçando-se para implementá-lo19.

A lição a tomar nestes 500 anos de Brasil é a de que uma instituição não tem seu lugar ou relevância naturais. Assim como crescem, as instituições perdem importância, relevância ou eficácia. Este Ministério Público de hoje não tem assegurado um futuro evolutivo, de expansão ou "aperfeiçoamento". É certo, contudo, que as instituições têm uma certa inércia que lhes garante certa permanência. Mesmo num cenário de decadência, é difícil imaginar que o Ministério Público volte a ser o que era a 500 anos atrás. A sua eventual decadência poderá ser gerada pelo surgimento de novas instituições (estatais ou não-governamentais), mais modernas e aptas a atender as demandas de seu tempo20. Em outras palavras, e esta a segunda lição e reter, uma instituição decai não apenas por seu enrijecimento e burocratização, mas também pelo surgimento de novas instituições que lhes tomam o lugar, desempenhando novas e antigas funções com maior eficácia e adequação. A história do Ministério Público nestes 500 anos é um exemplo disto. Os riscos que hoje corre, também.

_______________

1 Esta parte histórica do texto foi por mim mais desenvolvida em outro artigo "A evolução institucional do Ministério Público brasileiro", artigo originalmente publicado no livro Uma Introdução ao Estudo da Justiça. São Paulo: Série Justiça, IDESP (Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo). São Paulo: Sumaré, 1995. p. 39 ss. e republicado In Ministério Público: Instituição e Processo, Antônio Augusto Mello de Camargo Ferraz (org.), IEDC-Atlas, 2ª ed. 1999.

2 Neste sentido ver WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1980.

3 TORNAGHI, Hélio. Comentários ao código de processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, v. 1, p. 277-278.

4 Ministério público rio grandense (subsídios para a sua história). Porto Alegre: Imprensa Oficial, 1943, p. 13.

5 Idem. p. 15-16.

6 COSTA MACHADO, Antônio Cláudio, A Intervenção do Ministério Público no Processo Civil, Saraiva, SP, 1989, p. 17-18.

7 SALLES, Carlos Aberto de, A legitimação do Ministério Público para defesa de Direitos e Garantias Constitucionais, dissertação de mestrado inédita apresentada junto ao Departamento de Processo Civil da Faculdade de Direito da USP, 1992, p. 28. Ver também, do mesmo autor Entre a razão e a utopia: a formação histórica do Ministério Público, In Ministério Público II: democracia, VIGLIAR, José Marcelo Menezes e MACEDO JR, Ronaldo Porto (org.), Atlas-IEDC, 1999.

8 PAULA PESSOA, Vicente Alves de. Código de processo criminal de 1º instância e processual comparado, Rio de Janeiro: José Konfino, 1951, p. 63, Apud SALLES, Carlos Alberto de. Op. cit., p. 28.

9 Cf. MILARÉ, Edis. O ministério público e a defesa do meio ambiente, texto aprovado na reunião de curadores do meio ambiente do Brasil. 1992, mimeo.

10 Cf. MAZZILLI, Hugo Nigro. O ministério público na constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 23-38.

11 Sobre este novo perfil de órgão agente ver GUIMARÃES JR., João Lopes. Ministério Público: proposta para uma nova postura no processo civil, In Ministério Público: Instituição e Processo, op. cit. e também publicado In Anais do IX Congresso Nacional do Ministério Público. Salvador: 1992.

12 Os conceitos de Justiça Distributiva e Justiça Corretiva são de origem aristotélica. Cf.

ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco. Trad. de Mário da Gama Kury, Brasília: Ed. UnB, especialmente livro V. Tais conceitos são reatualizados no âmbito do Direito Social moderno. A esse respeito ver Cf. EWALD, François. l’État Providence. Paris: Grasset, 1986, p. 433 ss.

13 Sobre o fenômeno da materialização do Direito Social ver o artigo de WIETHÖLTER, Rudolf. Materialization and proceduralization in modern law. In: Dilemmas of law in the welfare state. Berlin: European University Institute, 1985.

14 Sobre tal tema ver de MACEDO JR, Ronaldo Porto. Foucault: o poder e o direito. In: Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, v. 2, 1º sem. 1990, p. 151-176. Ver também de MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. O novo regime das relações contratuais. 1ª ed. São Paulo: RT, 1992

15 Cf. BOBBIO, Norberto, Era dos Direitos, Campus, Campinas.

16 estimuladas pelo sistema processual e judicial em vigor – Cf. ISSSAACHAROFF, Samuel, Group litigation of consumer claims: lessons from the american experience, in Anais do 1º Congresso Inter-Americano de Direito do Consumidor, AJURIS, 1998.

17 Cf. de MACEDO JR, Ronaldo Porto, Ministério Público Brasileiro: um novo ator político, In: Ministério Público II: democracia, op. cit.

18 Cf. FERRAZ, Antônio Augusto Mello de Camargo e MACEDO JR, Ronaldo Porto. Importância estratégica do merecimento e o fim da lista tríplice In Revista da APMP, outubro de 1999.

19 Cf. FERRAZ, Antônio Augusto Mello de Camargo e GUIMARÃES JR, João Lopes. A necessária elaboração de uma nova doutrina de Ministério Público, compatível com seu atual perfil constitucional In Ministério Público: Instituição e Processo, op. cit.

20 Tratei do assunto in Quarto Poder e Terceiro Setor. O Ministério Público e as organizações não-governamentais sem fins lucrativos – estratégias para o futuro, In: Ministério Público II: democracia, op. cit.

 

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