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Judiciário e Direitos Humanos no Século XXI

Jessé Torres Pereira Junior*

Introdução

As comemorações do cinqüentário da Declaração Universal dos Direitos do Homem constituem oportunidade para avaliar-se o que os Estados Membros da Organização das Nações Unidas lograram alcançar quanto ao cumprimento de seus princípios e postulados, com o fim de, a partir das realidades aferidas, projetarem-se programas, fixando-se objetivos, metas e providências, para o Século XXI.

A Declaração não pode ser entendida apenas como uma abstração. É proposta que envolve um compromisso a ser implementado por todos os Povos que o assumiram perante a História.

Mercê de sua transcendência, universalidade e atemporalidade, a Declaração pode ser examinada sob múltiplas perspectivas disciplinares e interdisciplinares. Se se deseja, porém, uma avaliação com vistas a futuros passos de implementação, a perspectiva deve ser a da operacionalidade.

Deste ângulo, o Preâmbulo da Declaração pode ser dividido em três partes: pressupostos, compromisso e instrumentos de implementação. À avaliação de resultados até aqui obtidos e à formulação de prognóstico para o Século XXI interessa, sobretudo, o exame dos instrumentos de implementação, adotando-se como premissa que os pressupostos e o compromisso mantêm a perenidade que os inspirou.

O Preâmbulo faz do “império da lei” o principal instrumento de proteção dos direitos do homem. Por conseguinte, lança sobre os ombros dos Poderes estatais, aos quais incumbe a produção, a aplicação e a interpretação das leis, a maior parcela de responsabilidade quanto à observância dos princípios e postulados enunciados nos trinta artigos da Declaração.

Ao presente texto cabe esboçar o desempenho do Judiciário, desde a Resolução da III Sessão Ordinária da Assembléia Geral das Nações Unidas, que aprovou a Declaração, em 1948, e para o futuro próximo.

O micro e o macro na atuação do judiciário

A maioria das Constituições nacionais contemporâneas define o Judiciário como Poder, ao lado do Executivo e do Legislativo. Como Poder constituído, ao Judiciário compete, por meio de decisões em que predomina teor técnico-jurídico, decidir sobre conflitos entre titulares de direitos individuais e coletivos, compondo-os de acordo com o quadro normativo vigente. O Judiciário não elabora as leis, mas as interpreta e aplica na solução dos conflitos, com o propósito institucional de pacificá-los. Exerce função mediadora. Daí a importância de verificar-se como tem atuado em face da Declaração Universal dos Direitos do Homem e o que se poderá dele esperar para a centúria prestes a iniciar-se.

Essa verificação tanto pode examinar o Judiciário como macro instituição no quadro geral dos Poderes do Estado, quanto esquadrinhá-lo no microcosmo das orientações que os seus órgãos adotam no dia-a-dia do exercício da jurisdição. Este texto optará pelo segundo caminho, no entendimento de que a observância dos direitos do homem é obra de cada dia, em que se revela a existência, ou a inexistência, de consciência clara acerca desses direitos, para torná-los efetivos quando das decisões dos casos concretos, ou para mantê-los como proposições teóricas, distantes da prática.

O método do estudo de caso permite o ingresso do observador na intimidade das posturas costumeiras não só dos órgãos judiciais, mas, também, dos órgãos dos demais Poderes constituídos, quando participam nos processos judiciais na qualidade de autores, réus ou terceiros intervenientes, mostrando as interfaces das relações de poder, que se estabelecem em confronto com os direitos humanos.

O campo de observação será o da atividade jurisdicional de um Juízo de Fazenda Pública da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, cuja escolha deve-se a três motivos:

(a) o autor do texto é o juiz titular do Juízo, dispondo de todos os dados referentes ao seu funcionamento nos últimos cinco anos, o que confere autenticidade aos números estatísticos e aos episódios que serão relatados;

(b) o Juízo de Fazenda Pública tem por competência conhecer, processar e julgar as ações em que tenha interesse o Estado do Rio de Janeiro e o Município do Rio de Janeiro, bem assim suas respectivas entidades de administração descentralizada (autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista), formando um mosaico completo dos conflitos que surgem entre a administração pública e os cidadãos, e como se comportam os entes públicos e suas entidades vinculadas quando se defrontam com direitos e interesses divergentes dos administrados;

(c) a Capital conta com dez Juízos de Fazenda, cada qual com um acervo médio de 1.500 processos em andamento (cinqüenta e cinco novas ações recebidas por mês), constituindo o movimento de um deles uma amostragem suficiente do universo em que se desenvolvem esses conflitos, em Cidade e Estado cuja população (cerca de 15 milhões de habitantes) vive em condições sócio-econômico-culturais caracterizadas por acentuadas desigualdades, o que reflete a realidade nacional brasileira.

O Juízo de Fazenda Pública não tem competência para processar ações penais. Daí excluir-se deste trabalho a análise, que habitualmente concentra o foco das atenções, sobre o tratamento dispensado pelo Judiciário à criminalidade e aos criminosos, foco cuja prioridade pode atender a critérios publicitários, porém significa redução inadequada da amplitude do objeto dos direitos humanos.

O descompasso entre o compromisso e a implementação

Os direitos do homem à justiça e à paz têm como pressuposto, nos termos do Preâmbulo da Declaração, o fato do gênero humano constituir uma “família”, cujos membros aspiram, legitimamente, a gozar de “liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade”, porquanto todos são iguais “na dignidade e no valor da pessoa humana”. Segue-se o compromisso, assumido pelos Estados Membros, de “promover, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos e liberdades fundamentais do homem e a observância desses direitos e liberdades”.

É objetiva a prova de que as Constituições nacionais que se promulgaram na segunda metade do Século XX, em todos os quadrantes do planeta, acolheram tais pressupostos e compromisso. Basta confrontar-lhes os respectivos textos. A Constituição brasileira de 1988 não só os expressa em seu Preâmbulo e nos artigos 1º a 4º, que definem os princípios fundamentais da ordem jurídica e política que fundou, como dedica dois outros artigos específicos a relacionar os direitos e garantias fundamentais e sociais (5º e 7º), cuja redação não raro copia passagens da Declaração Universal, além de incorporar a integralidade de seus princípios.

O cinqüentenário da Declaração pode ostentar esse resultado e dele orgulhar-se, especialmente porque representa, ao menos em tese, a revisão, em cinco décadas, de séculos de posturas opostas. Muito mais há por fazer para implementar-se o compromisso de “promover o respeito... e a observância desses direitos e liberdades”, no dia-a-dia das realidades concretas. A idéia de que todos somos “membros da família humana” e titularizamos, em igual medida, os direitos inerentes à dignidade dessa condição, ainda que reconhecida no discurso dos Documentos Políticos Fundamentais dos Estados modernos, longe está de fazer-se presente no cotidiano das relações entre o Estado e os cidadãos, e de corresponder ao asseguramento efetivo daqueles direitos e liberdades.

Não se pense que o descompasso entre o compromisso e a implementação encontra-se apenas nas ostensivas violações das guerras e comoções intestinas, de que decorrem a destruição, a morte, a fome e a miséria em países do leste europeu, africanos e asiáticos. Há outras formas de descumprimento dos direitos humanos em toda parte, entranhadas na cultura do autoritarismo estatal; na passividade de segmentos da sociedade; na indiferença de antigas e novas gerações pela sorte de seus concidadãos; na acomodação das vantagens - para os afortunados - de viver-se em uma sociedade de desiguais subjugáveis; no tratamento desrespeitoso de minorias, ainda que sob disfarces que variam entre ardis inteligentes e rombuda desfaçatez.

O “império da lei”, mesmo quando existe, não se tem mostrado suficiente para mudar a cultura, afastar a letargia, despertar consciências, impor o respeito devido aos econômica e politicamente desprovidos. Ao contrário, a própria lei é manejada de modo a maquiar violações e justificar abusos. Isto ocorre no âmbito de todos os Poderes do Estado, incluindo o Judiciário, retardando, quando não impedindo, o respeito aos direitos humanos. O fenômeno é cultural, político e econômico, por isto que a norma jurídica não basta à sua reversão, nem esta é obra que os Poderes estatais possam realizar isoladamente.



* Juiz de Direito de Entrância Especial e Conferencista de Direito Público na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional e do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo.

A desigualdade no acesso ao judiciário

A desigualdade no acesso é o primeiro obstáculo que se ergue às intervenções do Judiciário como promotor do respeito aos direitos humanos. Uma das características funcionais do Judiciário é a chamada “inércia da jurisdição”, do que resulta que os órgãos judiciais somente atuam quando provocados pelos titulares de direitos que se entendam lesados por atos do poder público.

Aos juízes cabe impulsionar o processo por provocação das partes e julgar os pedidos que estas formulam, dentro dos limites do formulado. A sentença não pode decidir sobre o que não foi pedido, nem deixar de examinar o que foi pedido, sob pena de nulidade. O princípio é correto, porquanto afasta a possibilidade do juiz substituir-se à parte na definição do que esta considera como direito seu.

As partes devem saber o que querem e o que não querem antes de ingressar em Juízo com suas demandas. E devem saber embasar seus pleitos de modo juridicamente adequado, indicando provas do quanto alegam. Este é o trabalho dos advogados. Vero é que o bom direito tende a ser reconhecido mesmo quando mal deduzido. Espera-se do juiz que garanta aos autores e réus igualdade de tratamento processual e que se mantenha isento na apreciação das teses e provas que as partes sustentam e produzem - é o direito estabelecido no artigo 10 da Declaração. Mas é inegável que a configuração do direito dependerá, em cada caso ajuizado, em boa dose, do momento certo de sua postulação, pela via apropriada, com argumentos sérios.

As pessoas capazes de contratar profissionais qualificados tendem a apresentar petições com maior pertinência e fundamentação, inclusive porque os bons profissionais, sendo, como são, os primeiros aferidores do mérito da causa, recusam o patrocínio daquelas que lhes parecerem frágeis. Logo, apresentar-se bem em Juízo é também uma questão de escolher, e pagar, o advogado mais qualificado.

No Brasil, lei federal de 1950 garante gratuidade de custas judiciais e de assistência de advogado se a pessoa afirmar que não pode pagá-las sem prejuízo da própria subsistência e de sua família. A Constituição de 1988 obriga o Estado a prestar “assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (art. 5º, LXXIV). Todavia, os órgãos de assistência judiciária gratuita criados e mantidos pelo Estado sofrem de crônica precariedade de meios. Os profissionais que integram seus quadros - os defensores públicos -, embora recrutados mediante concursos públicos exigentes (ao menos no Estado do Rio de Janeiro), não recebem estímulo bastante para o desenvolvimento de suas atribuições, seja em função da baixa remuneração ou da carência de material.

A cada concurso para o provimento de cargos de outras carreiras jurídicas estatais (juiz, promotor, procurador), concorre grande número de defensores públicos, desiludidos da carreira de advogado dos carentes. A Defensoria Pública perde quadros, substituindo-se-os por bacharéis recém-formados e estagiários. Aos necessitados o Estado remete (quando remete) as sobras (se e quando existirem) de seus meios e a inexperiência de quem está a começar na profissão.

Esses jovens - muitos dos quais talentosos e abnegados - são os que patrocinarão os direitos dos hipossuficientes, em causas cujo réu é o próprio Estado, então representado por seus procuradores, de maior experiência e apoio institucional. Evidencia-se que a desigualdade já aí tem início.

Perante os Juízos de Fazenda Pública, é crescente o número de ações sob os cuidados da Defensoria Pública - hoje, 35% das novas demandas ajuizadas a cada mês são por ela patrocinadas; há apenas dois anos, eram 16%. Dir-se-ia que o crescimento estatístico demonstra a largueza de atuação do órgão de assistência judiciária estatal aos carentes. A leitura do fato pode ser outra: na medida em que, para obter o patrocínio da Defensoria Pública, o cidadão há de comprovar que não pode pagar as custas sem prejuízo da subsistência própria e da família, está comprometido o direito que o artigo 25 da Declaração defere a todo homem, “a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe e à sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis...”.

Em 1995, lei federal instituiu os Juizados Especiais, para atendimento a causas cujo valor não ultrapasse quarenta salários mínimos (cerca de quatro mil dólares), e admitindo que, nas causas cuja valor não supere vinte salários mínimos, o queixoso possa apresentar seu pleito sem advogado. O processo perante os Juizados Especiais é isento de custas judiciais. A parte somente pagará custas e honorários se, recorrendo da decisão, resultar vencida. Mas a lei excluiu da competência dos Juizados as causas em que o Estado tenha interesse. Mais uma vez, o poder público, desta feita com arrimo na lei, concede aos carentes a porção menor da atenção de seus órgãos.

O efeito multiplicador da desconsideração aos direitos humanos pelo Estado

O comportamento da administração estatal que ofenda os direitos humanos produz efeito multiplicador impressionante, isto é, uma violação gera outra, que gera outra, que outra gera. Ilustram o fenômeno algumas estratégias permanentes do Estado quando em litígio judicial. O Judiciário dificilmente consegue por cobro a essas estratégias, que, de um lado, manipulam o sistema legal de recursos para protelar o mais possível a satisfação dos direitos lesados, e, de outro, contorcem a lei para dela extrair autoridade supressora de direitos.

Exemplifica-se a manipulação do sistema recursal com a resistência injustificável do Estado ao pagamento de direitos pecuniários. Dois casos são notórios no Judiciário do Estado do Rio de Janeiro e do País, talvez também do Exterior, posto que redundaram em situações noticiadas com destaque pela mídia, que os rotulou de “Escândalo da Previdência” e “Escândalo dos Precatórios”.

O sistema de previdência brasileiro é oficial, quer dizer que os trabalhadores e servidores públicos contribuem, compulsoriamente, para autarquias de seguridade social, que lhes pagarão, e aos seus dependentes, pensões e benefícios na aposentadoria ou em casos de invalidez e morte. O valor das contribuições decorre de regras estabelecidas em lei. Desde fins da década de 1980, o instituto de seguridade social dos trabalhadores passou a usar de artifícios, aprovados por normas administrativas internas, para dar à lei interpretação que impunha gradual redução ao valor dos benefícios devidos aos segurados.

A prática gerou a formação de grupos de aproveitadores, reunindo funcionários da própria autarquia, advogados e até juízes. Os segurados, lesados em seus direitos, passaram a acionar a autarquia, que, em Juízo, atendia, mediante cálculos incorretos a maior, os pleitos de revisão das pensões que, em sede administrativa, haviam sido indeferidos. Milhões de pensionistas foram lesados no direito fundamental previsto nos artigos 22 e 25 da Declaração. Socorreram-se do Judiciário, onde obtiveram a reparação, mas, ao mesmo tempo, o fato ensejou a formação de quadrilhas que multiplicaram as lesões e desviaram milhões de dólares da previdência social.

Apurados os fatos, processados e condenados os responsáveis, o Instituto passou a adiar o pagamento das diferenças devidas, usando de todos os meios recursais admitidos na legislação processual. As dívidas continuaram acumulando-se. É, hoje, um dos fatores que respondem pela dificuldade financeira enfrentada pela previdência pública, grave a ponto de o Governo Federal se haver empenhado em modificar a Constituição para reduzir-lhe os encargos.

No âmbito do Estado do Rio de Janeiro, fato semelhante ocorreu - sem o aspecto criminal - com o instituto de previdência dos servidores, que resiste a rever o valor dos benefícios que deve pagar a seus segurados, apesar de jurisprudência uniformizada, desde o início da década de 1990, haver estabelecido que deve corresponder a 80% do que receberia o servidor se ainda estivesse em atividade. Os lesados continuam tendo de ingressar com ações nos Juízos de Fazenda para postular as diferenças.

O argumento pretensamente jurídico da autarquia estadual é o de que a revisão acarretaria despesas imprevistas no orçamento, o que é proibido na Constituição. A escusa está definitivamente afastada pelo Supremo Tribunal Federal, a que chegam os recursos extraordinários interpostos pela autarquia, pela singela e óbvia razão de que a fonte de custeio dos benefícios da previdência oficial advêm das contribuições que são descontadas, compulsória e mensalmente, dos vencimentos dos servidores, em nada dependendo do orçamento público. Ainda assim, as ações prosseguem, a autarquia é vencida, recorre, é novamente vencida, e retarda o pagamento das diferenças por anos. Essas ações correspondem a 20% do total dos processos em andamento nos Juízos de Fazenda do Rio de Janeiro, agredindo, reflexamente, os artigos 22 e 25 da Declaração.

O meio para o ente público retardar o pagamento de obrigações decorrentes de condenação judicial gerou o “Escândalo dos Precatórios”. Estes são o instrumento por meio do qual o Judiciário requisita ao Executivo a inscrição, no orçamento público do exercício financeiro seguinte, do valor que o Estado deverá pagar ao vencedor de demanda judicial. Os precatórios consignam verbas vinculadas à obrigação de pagar do credor do Estado, por isto não podendo ser desviadas para qualquer outra finalidade. O sistema é também constitucional. Apesar disto, alguns governos estaduais negociaram precatórios judiciais e desviaram os recursos assim obtidos, não se tendo notícia do desfecho das apurações, que comprometeriam Governadores e altos dirigentes estaduais. Os credores, ao que se sabe, permanecem à espera dos pagamentos a que fazem jus.

Perceba-se que na origem de tantas mazelas está o desrespeito, pelas entidades administrativas, ao dever de pagar os benefícios da previdência tal como estabelecidos em lei. Os titulares desses benefícios ou são trabalhadores ou servidores públicos aposentados, acidentados, inválidos, ou são os dependentes daqueles já falecidos. Em qualquer hipótese, são pessoas desprovidas de força política suficiente para a reivindicação de seus direitos. Resta-lhes a tutela jurisdicional. Esta é prestada, com os percalços e atrasos decorrentes de sua estrutura saturada. Mas os administradores estatais não parecem sentir-se obrigados a atender àqueles que são apenas titulares de direitos, se não dispõem de influência política. Esses podem esperar, mesmo que se despreze o “espírito de fraternidade” e o gozo de direitos “sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo,... riqueza, nascimento ou qualquer outra condição” (artigos 1 e 2 da Declaração).

Um dos mais insistentes argumentos de que se tem valido o Supremo Tribunal Federal para propor a instituição, por Emenda Constitucional, da chamada “Súmula Vinculante” (decisão que estabeleceria o entendimento da Corte sobre determinada questão que se repete, com o efeito de obrigar todos os Juízos e Tribunais do País a aplicar o mesmo entendimento, se idêntica a questão) é o de que a Súmula evitaria que os titulares de direitos contra o Estado, reconhecidos em precedentes, tivessem de ajuizar ações, a que novamente opor-se-ia o Estado com fundamentos vencidos, mas com o poder de adiar a satisfação do direito individual por anos, desconsiderando os artigos 7 e 8 da Declaração.

Preconceito e desigualdade

Nos casos referidos no item anterior, seria possível dizer-se que o Estado negaceia a satisfação de suas obrigações perante credores porque teria insuperáveis dificuldades de caixa. Admita-se o argumento, embora seja curioso que as restrições de caixa pareçam mais severas quando os credores são os desprovidos. E que nenhuma relevância parece ter o custo administrativo da protelação juridicamente injustificável, com a apresentação de longas peças de contestação, reunindo “teses” rejeitadas à exaustão; o curso de milhares de processos cujo desfecho sabe-se de antemão; o desperdício do tempo e dos meios, ambos reconhecidamente escassos, dos órgãos jurisdicionais.

Mas o que dizer da postura de procuradores de ente público que, em ação de desapropriação de imóvel privado, em área desvalorizada, destinada à realização de obra pública, narram, na petição inicial, que se trata de bem rústico e desocupado, o que justificaria determinado valor indenizatório, quando, a seguir, comparecem nos autos do processo pessoas que declaram ali residir há quarenta anos?

Suspensa a execução da imissão provisória na posse em favor do expropriante, diante de fato que poderia alterar o valor ofertado, os procuradores visitam o Juízo para encarecer a rápida decisão do incidente porque havia pressa na continuidade da obra (talvez sem correlação com o fato de tratar-se de ano eleitoral). Objetam que os moradores seriam posseiros sem direito algum, já que a lei das desapropriações exige que a ação seja proposta em face daquele que constar como o proprietário no registro imobiliário. E este estava em nome de uma empresa, não dos posseiros.

Mostram pasmo quando se pondera que os posseiros alegavam residir no local havia quarenta anos, sendo necessário esclarecer-se quem estaria mentindo ao Judiciário - se o ente expropriante, que afirmava o imóvel vazio, ou se os posseiros, que se diziam moradores, controvérsia que portava possíveis reflexos sobre o preço da indenização e a expulsão inopinada de moradores.

A surpresa dos ilustres procuradores, amparada em argumento jurídico-processual pertinente, tem um só significado - quem se importaria com velhos posseiros?

O episódio não é isolado. Nem se reverbere a insensibilidade dos procuradores. É mais um sintoma do preconceito enraizado, que emoldura a desigualdade. Ou será o inverso - é a desigualdade crônica que emoldura o preconceito? Desigualdade e preconceito alimentam-se reciprocamente. A norma jurídica não tem resposta para a indagação.

É preciso compreender o fenômeno em sua inteireza sócio-econômico-cultural, confessando-se a perplexidade desafiadora do Século XXI. Como fez jornalista, em coluna diária veiculada pela imprensa: “O Brasil não tem um cotidiano democrático. É perfeitamente possível a um brasileiro rico passar a vida sem contato com os pobres e as dificuldades que angustiam a maioria da população. Pode pagar um atendimento médico igual ao dos países desenvolvidos, freqüentar boas escolas particulares, usar espaços de lazer exclusivos. Alguns voam de helicóptero por cima dos engarrafamentos e muitos contratam segurança privada. ‘Não fala com pobre, não dá mão a preto, não carrega embrulho. Pra que tanta banca doutor, pra que esse orgulho?’ perguntou o Billy Blanco (refrão de samba bastante popular no Rio de Janeiro). Tampouco eu sei a resposta, mas desconfio que o apartheid social que temos contribui em muito para que não se encontrem soluções para os problemas da população” (Márcio Moreira Alves, O GLOBO, edição de 17.08.98, pág. 4).

A deliberada e persistente lentidão com que órgãos públicos prestam informações requisitadas pelo Judiciário, importantes para a instrução de processos; os pagamentos que os entes e suas entidades vinculadas efetuam com sistemático atraso, tanto a seus próprios servidores quanto a fornecedores de bens e serviços, sem as correções determinadas na legislação, obrigando-os a ingressar com ações para cobrar as diferenças, em processos a que os réus permanecem resistentes ao pagamento devido - são outros exemplos corriqueiros de menosprezo aos direitos das pessoas, com reflexos sobre a sua dignidade, especialmente quando a verba devida tem natureza alimentar. É o vezo da submissão ao poder estatal, como se este não conhecesse os limites da ordem jurídica.

Tão acendrado é este desvio da autoridade (centro de equilíbrio necessário e legítimo em toda organização humana) para o autoritarismo (o lado perverso da autoridade), nas sociedades que passaram longos períodos históricos como colônias de outras, que se pode nelas divisar claro antagonismo entre o interesse público e o interesse da administração pública. O primeiro tem na devida conta os direitos humanos; o segundo é capaz de arredá-los para que prevaleçam interesses econômicos privados, com os quais se confundem projetos políticos pessoais.

Conclusão

O bosquejo que se desenhou sugere algumas conclusões:

(a) nada obstante a inscrição nas Cartas Constitucionais dos Estados contemporâneos, os direitos humanos continuam sendo um repto a ser respondido pelos povos que conduzirão a nave Terra durante mais um século de navegação pelo espaço infinito das aspirações de justiça, paz e fraternidade;

(b) tais aspirações, inscritas embora em Documentos Políticos e Jurídicos, não se podem reduzir a abstrações programáticas, dependendo de providências concretas que as tornem efetivas;

(c) essas providências não se esgotam na atuação isolada de Poderes constituídos, como o Judiciário, nem na lei do Estado, sendo falseada a idéia de que “o império da lei”, sempre indispensável para estabelecer padrões mínimos, conduz à erradicação dos preconceitos e das desigualdades que forjam os conflitos humanos;

(d) as Sociedades e os Estados devem conjugar esforços para afastar os preconceitos e reduzir as desigualdades sociais e econômicas, cientes de que novas posturas não decorrem, necessariamente, de normas jurídicas, mas da percepção que cada ser humano desenvolva do mundo e do outro;

(e) o respeito aos direitos humanos passa por essa percepção, que somente processos pedagógicos continuados e amadurecidos são capazes de produzir;

(f) das autoridades estatais em geral esperam-se decisões que confiram prioridades que gravitem em torno da dignidade do homem, independentemente de suas condições pessoais, mas levem em conta essas condições ao estabelecerem políticas compensatórias das desigualdades.

A multiplicação, em quantidade e diversidade, de litígios submetidos à tutela jurisdicional, atestada pelo perfil estatístico do número e da espécie das ações judiciais distribuídas nas últimas décadas, traduz acréscimo do potencial de conflito em que vive a sociedade humana, como provável resultado de diferenças e desigualdades que se agravam. O número dos mandados de segurança impetrados perante os Juízos de Fazenda do Estado do Rio de Janeiro mais do que dobrou nos últimos três anos; cifra significativa da crescente inconformação (o que é saudável, do ponto de vista sócio-cultural, desde que o Judiciário tenha condições de dar respostas efetivas) de titulares de direitos subjetivos individuais, que se acreditam lesados por atos de autoridades públicas que reputam abusivos.

Em face desse quadro, e das resistências que se observam no dia-a-dia das atividades estatais, seriam características desejáveis do Judiciário, no alvorecer do terceiro milênio:

(a) a universalidade da função conciliadora da tutela jurisdicional estatal, em integração com as Comunidades;

(b) a suplementariedade da tutela arbitral privada, para resolver conflitos entre empresas e grupos econômicos;

(c) a racionalidade de gestão dos meios disponíveis, pela entrega da administração judiciária a profissionais especializados, evitando-se que a exercitem os próprios magistrados, em geral sem formação técnica para administrar;

(d) a modicidade dos serviços judiciários, podendo chegar à gratuidade absoluta para todos, como dever do Estado;

(e) a interdisciplinariedade da formação do magistrado.

Seriam medidas estimuladoras da universalidade:

1 - desmembramento e descentralização de órgãos judicantes de primeiro grau (Juízos e Juizados Especiais), por regiões, distritos ou bairros, nas Capitais e no Interior, de modo a que cada qual conte com quadro próprio de pessoal e funcione em instalações cedidas e mantidas pelas Comunidades interessadas;

2 - instituição de plantões de conciliação à noite e nos finais de semana, nos órgãos judiciais descentralizados, com conciliadores voluntários treinados e supervisionados.

Seriam medidas estimuladoras da suplementariedade:

1 - apoio do Judiciário à instalação de serviços de arbitragem privada nas cidades que sejam sede de regiões judiciárias, mediante convênios com entidades não-governamentais;

2 - realização de campanhas de esclarecimento, junto ao empresariado, sobre a arbitragem como alternativa à tutela jurisdicional estatal.

Seriam medidas estimuladoras da racionalidade administrativa:

1 - criação pelos Tribunais de Justiça, ou apoio às que já existam, de escolas de administração, incumbidas de ministrar cursos de reciclagem e treinamento em serviços administrativos e cartorários (v.g., o processamento nas Varas Cíveis; nas Varas de Família; nas Varas da Fazenda Pública; nas Varas de Órfãos; nas Varas Criminais; nos Juizados Especiais), de modo a alcançar, progressivamente, a totalidade dos serventuários e pessoal de apoio em atuação em todos os Juízos e Juizados;

2 - implantação de política gerencial que evite o desvio de função e mantenha os serventuários no exercício das atribuições pertinentes ao cargo e à formação de cada qual;

3 - estabelecimento de intercâmbio técnico entre gestores do Judiciário e órgãos de controle interno e externo da atividade administrativa estatal (v.g., Tribunal de Contas);

4 - elaboração de planos anuais de aplicação dos recursos existentes em orçamento e/ou fundos especiais de reaparelhamento do Judiciário, confiando-os a gestão técnica;

5 - revisão e implantação de reforma, por empresa especializada em O&M, a ser contratada mediante licitação pública, da organização e dos métodos existentes na estrutura administrativa dos órgãos do Judiciário, de modo a obter o máximo de rentabilidade dos meios disponíveis e de seu funcionamento regular, incluindo extinções, fusões, reduções, ampliações ou modificações de órgãos, serviços e cargos.

Seriam medidas estimuladoras da modicidade:

1 - elevação da produtividade dos órgãos e serviços, em decorrência da reformulação de O&M, do treinamento do pessoal cartorário e de apoio, e da concentração de pessoal qualificado na atividade-fim da função judicial;

2 - adoção, após estudo adequado, de rotinas e procedimentos informatizados passíveis de padronização, em todos os órgãos de administração e prestação jurisdicional, de sorte a eliminar rotinas repetitivas ou ociosas e o uso de materiais diversos para atos de idêntico teor ou atividades assemelhadas;

3 - capacitação do pessoal para o desempenho de tarefas múltiplas do respectivo setor de lotação, evitando-se a compartimentação de atribuições;

4 - criação de centro de estudos jurídicos em cada Tribunal de Justiça, para promover debate permanente sobre questões jurídicas controvertidas, almejando uniformizar entendimentos e, em conseqüência, reduzir divergências, contribuir para tornar mais rápido o julgamento dessas questões e desestimular o aforamento desarrazoado de demandas.

Seriam medidas estimuladoras da interdisciplinariedade:

1 - introdução, nos cursos de formação e reciclagem destinados a magistrados, ministrados pelas Escolas de Magistratura existentes ou a serem criadas, de matérias de outras áreas científicas que interessam ao exercício da jurisdição, na sociedade globalizada do Século XXI (filosofia, sociologia, psicologia, política, economia, informática);

2 - estabelecimento de intercâmbio cultural, mediante convênios, com escolas de magistrados de países cujos sistemas jurídicos sejam assemelhados, incluindo bolsas de estudo para cursos de curta e média duração (até um ano);

3 - realização, em convênios com entidades especializadas, de cursos específicos sobre normas jurídicas supranacionais e sua eficácia nas relações jurídicas entre nacionais de países membros de mercados regionais (v.g., Mercosul), preparando pessoal com vistas à possível criação de tribunais regionais, de que já cogitam os Governos desses países.

 

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