Justiça e Violência Policial - Perspectivas para
o Novo Século
Carlos
Nicodemos
Ao
completar seu 500º
aniversário
coincidindo com a chegada do próximo milênio, registramos na
história do Brasil algumas contradições
estruturais do tamanho do seu tempo de vida.
Relevando
as questões econômicas
emergentes, resultado de uma visão de mundo mais
globalizante, algumas destas contradições históricas são mais
antigas do que a própria existência
do Brasil enquanto país, e apontam para uma releitura do
processo de formação do Estado brasileiro e
de suas instituições oficiais
Partindo
desta relação conseqüente entre Estado e Instituição,
entendemos que a Polícia, enquanto um órgão estatal, hoje se
consolida com uma contradição política estrutural, entre aquilo
que representa para o imaginário coletivo social, e aquilo que
realiza enquanto meio de implementação da política de segurança
pública deste mesmo Estado.
Não
cabe mais julgar se a polícia é boa ou não. O que está em
questão é: de que Estado estamos falando? Responder a esta
pergunta é
identificar que o papel que
a polícia cumpre
reflete uma ordem e
um pensamento ideológico de um modelo de Estado, que cabe
aqui considerar.
Partindo
deste processo dedutivo histórico, vamos encontrar outros hiatos
e outras contradições políticas capazes de nos fazer
pensar sobre a atual
condição desta figura política-jurídica, denominada Estado
brasileiro.
Neste
sentido, constatamos que em 1988,
quando foi promulgada a Constituição brasileira , a política
fez emergir uma
carta de princípios norteadores que deveriam configurar o
Estado brasileiro na prática.
Primeiro
deles é que a República brasileira se fundamenta, entre outros
valores, pela cidadania e pela dignidade da pessoa humana.
Como
objetivos
do Estado brasileiro, a Carta Constitucional dispõe que, entre
outros fins, o Brasil construirá uma sociedade livre, justa e
solidária, além de erradicar a pobreza e a marginalização,
reduzindo as desigualdades sociais e regionais.
Ainda
no mesmo diploma nacional, temos que as relações internacionais
do Brasil, reger-se-ão, entre outros Princípios, pela Prevalência
dos Direitos Humanos.
Somados
a estes valores institucionais, a Constituição consagrou
direitos fundamentais
da pessoa humana, como a vida, a liberdade, a reserva legal, a
prestação jurisdicional, entre outros, colocando-os a salvo de
qualquer reforma,
entendendo-os como indisponíveis e
essenciais, até mesmo, em relação à legitimidade do
Estado enquanto ente público controlador destes direitos.
Como
se não bastasse, o legislador constituinte contemplou os Tratados
Internacionais que regulam outros direitos humanos, enquanto
normas imediatamente aplicáveis, desde que o Brasil as ratifique.
É o caso da Declaração Universal dos Direitos Humanos
de 1948 e seus respectivos Pactos de Direitos Civis e Políticos
e de Direitos
Sociais, Econômicos e Culturais de 1966, além dos Tratados
regionais, como a Convenção
Americana de Direitos Humanos
de 1948, e outras Convenções temáticas, relativas aos
denominados grupos vulneráveis e minorias sociais.
Este
conjunto normativo interno e internacional de liberdades públicas
denuncia um hiato entre o Estado que queremos e o Estado de que
dispomos.
A
violência policial enquanto
um fenômeno político-social resulta de um modelo de Estado,
sendo apenas uma entre tantas outras questões controvertidas no
cenário brasileiro.
A
ação do braço armado ( polícia ) do Estado, cujo objetivo finalístico é o de “proteger” a sociedade, acaba por converte-se numa violenta distorção
, onde a população é relegada para um segundo plano, dando seu
lugar à manutenção
de uma ordem ideológica, entendida pelo processo de exclusão
social vivido atualmente.
Esta
violência produzida pelo próprio Estado, através de seus
agentes de segurança pública, modela
uma prática
de crimes não só no campo individual da responsabilidade
daqueles que executam esta contraditória tarefa no dia-a-dia, mas
também daquele
que emite a ordem de “atirar primeiro e
perguntar depois”.
Não
podemos desconsiderar que, como defende Elias Diaz,
esta violência se institui quando falham os mecanismos de
legitimação do Estado, baseado no convencimento de sua
legitimidade.
E
partindo desta falta de controle pela perda do reconhecimento
coletivo, verifica-se a
substituição por duas formas possíveis de violência, a social
e a física.
Diaz
entende que se trata de uma substituição do reconhecimento do
poder estatal sobre a base de uma persuasão racional, através da
violência repressiva.
Entendemos
que a violência
social se traduz nas
desigualdades instituídas pelo sistema político-econômico,
enquanto que a violência física se estabelece através da
repressão desregrada.
A
apuração dos crimes praticados por policiais nas comunidades
carentes, entre eles, lesão corporal, homicídio, ameaça, extorsão,
revela uma conduta social, e porque não dizer institucional, que
deve ser entendida através de uma ótica criminológica e não,
na perspectiva dogmática objetiva do direito penal
utilizada até aqui.
Isto
significa que estes crimes não devem ser entendidos
apenas como condutas que contrariam o Código Penal, e,
portanto, meramente devem
ser apurados e responsabilizados.
Este
movimento punitivo já foi sentenciado como ineficaz pelo próprio
sistema judicial, onde na maioria absoluta das vezes, os processos
que apuram referidos delitos se perdem no tempo, na falta de condição
e de
interesse do Estado em apurá-los.
Até
porque, na linha de pensamento que aqui defendemos, no campo político, seria o Estado apurando sua própria
responsabilidade.
Neste
sentido, Roberto Bergalli
entende que a instância judicial se converte no momento
central de aplicação das normas penais, independente de outros
fatores ou elementos que conduziram à prática de crimes.
E,
partindo desta postura, a violência policial seria apenas foco de
conflitos de
interesses sociais, onde o Estado deve intervir como regulador,
sem qualquer outra responsabilidade. A questão neste momento é
como alterar este quadro de violação de direitos “defendido”
pelo próprio Estado?
Primeiro quanto
aos crimes que são praticados por policiais, é preciso entender
este fenômeno sob
uma nova versão jurídica-política. É preciso estudá-lo
enquanto um objeto criminológico, e não dogmático-penal.
Isto
significa, entender o processo de produção desta violência a
partir de suas causas e conseqüências,
estudando a situação da vítima, o perfil do criminoso, a
natureza do delito e o controle social que o Estado deve e
pode exercer nesta questão
Destacamos
entre estes elementos, que um pouco definem a ciência da
Criminologia, a condição da vítima nos crimes praticados por
policiais.
É
preciso quebrar a mitificação de que a vítima é um ser coitado
e inocente, e que sua condição de sofrimento é simplesmente um
casuísmo social.
É
fundamental potencializar
a vítima enquanto
sujeito de direitos e deveres no sentido de protagonizá-la nos
denominados movimentos de
autodefesa.
Para
isso, é preciso reeducar a intervenção dos órgãos
governamentais e não-governamentais na questão da violência
policial, no sentido de atuar em relação a estes
novos elementos criminológicos.
Ao
governo caberia estabelecer programas de assistência às vítimas,
buscando, como afirmou Garcia-Pablos,
neutralizar o sentimento de desproteção que gravita na consciência
social.
Às
organizações não-governamentais cabe a tarefa de completar suas
denúncias de violações de direitos, com projetos de controle
político do Estado, não se
confundindo com a execução de tarefas, como
proteção à testemunha, por ser esta missão precípua do
governo.
Por
fim, no âmbito processual do problema, entendemos por uma internacionalização de demandas contra o Estado
brasileiro, no âmbito da ONU (Organização
das Nações
Unidas) e da
OEA
(Organização
dos Estados Americanos), utilizando os sistemas de proteção que
estes órgãos dispõem, como no caso do Sistema de Proteção
Interamericano de Direitos Humanos, com seus Mecanismos
Convencionais e Extraconvencionais, comprometendo,
pela esfera mundial, uma nova postura estatal brasileira,
para fazer diminuir a
violação de direitos fundamentais que são desrespeitados na
violência policial, e que encontram-se consagrados e
reconhecidos pelo Brasil em Tratados
Internacionais de Direitos Humanos.
Defendemos
um controle da questão no campo político-jurídico
internacional, como uma via de reordenamento da política estatal
de segurança pública.
Neste
momento, a comunidade internacional, formada por Estados e por
outras Instituições públicas
e privadas, cumpre estratégico papel na questão dos
Direitos Humanos.
Talvez
tenhamos que esperar mais alguns anos
para comemorarmos de fato o aniversário do Brasil, sem
tantas contradições sociais. Contudo, enquanto este futuro não
chega, vale pensar nos caminhos que nos conduzam a um
presente diferente do que vivemos.
Advogado e Professor de Direito Penal e Criminologia.
Especialista em Direitos Humanos pela Universidade Complutense
de Madrid - Espanha.
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