HABITANTE
DO SÉCULO VINTE E UM
OU A ASSILAH DO NOSSO FUTURO
Ao Amigo Benaïssa
O
sangue escorre-me por entre os dedos
Porém
Não
matei não matei não matei
Poderia
adormecer
Ao
som tornado monótono
Do
meu protesto
A minha inocência é imaculada
Não
me convenço contudo
Sequer a mim mesma
Terei
morto por omissão
Terei
morto por indiferença
Terei
morto por conivência
Sinto
Que
é preciso
Ir
aos campos de batalha
E
arrancar das mãos dos homens
As espingardas
Ir
aos campos de batalha
E
arrancar das mãos da morte
Os homens
Ir
aos campos de batalha
E
devolver as crianças os seus brinquedos
Ir
aos campos de batalha
E
devolver o sorriso às mulheres solitárias
Como
resgatar
Essa
culpa que me pesa
Esse
crime que não cometi
Não
haverá contudo inocentes
Quando
a morte é opulenta
E
a vida é fome é guerra é violência
Não
poderá haver um inocente
Quando
a morte infesta os ares
E
não deixa espaço aos vivos
Não
pode haver um inocente
Quando
a morte grita fome e pede socorro
E
os homens que restaram
São
cadáveres ambulantes
À
espera de sepultura
Não
pode haver um inocente
Quando
a maior esperança
For
o abrigo de uma cova partilhada
Mas
eu gostaria
Oh, como gostaria!
De
me sentar à soleira da porta
A
ver o sol a pôr-se
No
sereno entardecer
As
crianças a brincar
E
o inverno a chegar
No
calmo envelhecer dos dias
Mas
eu gostaria
Oh, como gostaria!
De
acariciar levemente
Os
cabelos do meu amado
E
segredar-lhe ao ouvido
Coisas
do amanhã dos homens
Que
amanhã?
Que
homens?
Quisera
profetizar
Com
palavras mágicas e sedutoras
O
fim dos horrores
Para
resgatar esta culpa que me pesa
Este
crime que não cometi
Contudo
(Oh! impotência)
Falta-me
o dom
De
tanta a morte não tem rosto
Só
um número
Indigente
e gritante
Quarenta
milhões é o número da fome
Quarenta
milhões é o número da morte
Quarenta milhões de pessoas
Seres humanos como tu e eu
A morrerem de fome neste continente de condenados
Ah,
mas a fome tem nome
Fome
é guerra
Fome
é corrupção
É
má governação
A
fome é sida
Fome
é estupidez
Fome
é tirania
E
indiferença
Como
deixámos crescer este monstro
Com
as sete cabeças do nosso horror
Não
pode haver um inocente
Em
solo africano
Enquanto
um a um
-
Misericordiosamente-
As
sete cabeças não caírem
A
guerra
A
tirania
A
corrupção
A
má governação
A
sida
A
estupidez
A
indiferença
Não
caírem
Um
a um
-Misericordiosamente-
Não
caírem
Então
-Meu
Deus -
Então,
Só
então
Limpar-nos-êmos
-Todos-
Deste
pecado original
Este
pecado que nos suja
Esta
abjecção que nos contamina
Mesmo inocentes
Mesmo incorruptos
Mesmo generosamente solidários
Mesmo egoístamente solitários
Mas
quanto
-Meu
Deus-
Quando?
É
este o ano
O
dia, o século
E
o milénio
Perdidos
já foram os outros
Todos
os minutos e segundos
Dos
outros séculos
Dos
outros milénios
Vergonha
ó África
Vergonha
sobre ti e tuas gentes
Pela
fome e pela guerra
Vergonha
pela corrupção e estupidez
Este
é o ano
O
dia, o século
E
o milénio
Assilah
foi pobreza e abandono
Hoje
é arte e poesia
Numa
esperança que nasce
Tarrafal
foi morte e traição
Hoje
é encontro e alegria
Numa
esperança que cresce
Benguela
floriu e murchou
Hoje
é semente germinal
De
uma paz sobre todas desejada
É
a esperança que tem que nascer
É
a esperança que tem que renascer
Vera
Duarte
24 Dez. 2001
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