OS
TRIBUNAIS DO SISTEMA DE JUSTIÇA INTERNACIONAL
PENAL
José
Manuel Pina Delgado
1. Do tiranicídio aos tribunais militares
O problema da criação sistematizada e racional de uma
justiça internacional penal é relativamente
recente na história da humanidade, apesar
de serem conhecidos vários exemplos de julgamentos
esparsos que antecederam à nossa era. Contudo,
estes não eram feitos por tribunais internacionais,
mas sim resultavam, na maioria das vezes,
de punições que beligerantes vitoriosos
impunham aos derrotados. E, mesmo que ao longo
dos tempos arbitrariedades cometidas em
nome do poder não passassem em alguns casos
impunes, como bem demonstra a recorrente
utilização, a partir da Idade Média, do
direito ao tiranicídio, sorte que os súbditos
reservavam àqueles que os oprimiam, a sua punição, em geral,
quando acontecia, era imediata e não necessitava
da legitimidade de um julgamento para se
efectivar.
O destino a dar aos responsáveis por graves violações
aos direitos humanos tornou-se uma preocupação
mais premente depois da II Guerra Mundial
conhecida que foi, na íntegra, a dimensão
da barbárie programada e perpetrada pelo
regime nazi, e muito embora já depois da
I Guerra Mundial tenha acontecido uma mal
sucedida tentativa de julgar o Kaiser Guilherme
II e alguns militares germânicos por crimes
de guerra.
Por isso, foram criados pelas forças aliadas depois
da II Guerra, na Alemanha e no Japão, respectivamente
o Tribunal Militar Internacional de Nuremberga
(1945) e o Tribunal Militar Internacional
para o Extremo Oriente (1946). Não obstante, as
controvérsias que a sua criação causaram
–diga-se, principalmente entre os
penalistas –, é indubitável que, à parte
visões mais românticas sobre o direito,
especialmente o internacional, esses tribunais
militares de ocupação representaram um avanço
gigantesco em relação às práticas oficias
até então, que eram de executar sumariamente
aqueles que foram vencidos e que haviam
violado o direito de guerra (o Direito de
Haia), sugestão, aliás, feita por dois dos
principais membros da coligação que derrubou
o regime nazi, Winston Churchill e Stalin,
que não entendiam a insistência norte-americana
em criar um tribunal para julgar crimes
tão hediondos, de autores tão óbvios.
Devo enfatizar que tribunais militares de ocupação não
eram ilegais de acordo com o direito internacional
vigente na altura, desde já porque estes
admitiam a possibilidade de prisioneiros
de guerra serem julgados e condenados de
acordo com as leis criminais de potência
de ocupação por crimes de guerra. Além disso, se dúvidas
subsistissem em relação à aceitação dos
tribunais militares de ocupação, elas dissiparam-se
com o endosso geral dos julgamentos de Nuremberg
pela comunidade internacional. Finalmente,
com a aprovação das Convenções de Genebra
sobre direito internacional humanitário
em 1949, naquilo que se pretendia codificar
a prática estatal posterior às Convenções
de Haia de 1899/1907, a possibilidade do
julgamento de criminosos de guerra por tribunais
de ocupação tornou-se clara.
O problema é que, todavia o reconhecimento oficial por
órgãos de instituições internacionais, todos os projectos de
criação de um tribunal internacional permanente
para julgar graves violações cometidas contra
o ser humano e ao direito internacional
foram vítimas do clima de suspeita mútua
entre as potências vencedoras da II Guerra, situação esta que perdurou
até ao início dos anos noventa, particularmente
pelo facto de que a partir dali, o Conselho
de Segurança ter conseguido se desembaraçar
da inércia que lhe era imposta pelas divergências
entre as superpotências. E, de facto, a responsabilidade
pelo estabelecimento do que se pode considerar,
dentro dos limites próprios do direito internacional,
como a justiça internacional penal, não
foi dos Estados directamente, mas do Conselho
de Segurança das Nações Unidas, quando criou
os tribunais ad hoc.
Daquele momento em diante, essa justiça internacional
penal conhecerá uma desenvolvimento
assinalável, particularmente ao que levou
ao estabelecimento do Tribunal Internacional
Penal, e depois a subsequente opção da comunidade
internacional para apoiar, ao invés de tribunais
internacionais, de chamados tribunais penais
internacionalizados, que podem, como será
sucintamente analisado, assumir diversas
formas. Perante tal cenário,
e sabendo dos problemas que existem para
a consolidação do Tribunal Internacional
Penal, da contínua existência
de situações de violações massivas aos direitos
humanos em vários pontos de globo, da crescente
proliferação de instituições penais internacionais
e de outros mecanismos, inclusivamente internos,
de implementação do direito internacional
penal, é essencial, neste momento,
conhecer as várias formas que esses tribunais
assumem e discutir as questões que a sua
existência implica para a ordem jurídica
internacional.
- Tribunais
Ad Hoc
Como havia me referido na introdução
deste trabalho, a instituição que
dinamizou a criação de instituições internacionais
penais, foi o Conselho de Segurança das
Nações Unidas. Depois dos crimes em massa
cometidos nos conflitos que dilaceraram
a Antiga Jugoslávia depois da sua dissolução,
a comunidade internacional,
que se manteve omissa em relação à sorte
de várias das pessoas que foram massacradas,
designadamente no emblemático caso de Srebrenica, acabou por decidir,
em 1993, criar um tribunal internacional
para julgar os crimes cometidos durante
aquele conflito. No Ruanda, aconteceu
o mesmo. Depois do tristemente célebre massacre
de tutsis, que contou com a omissão generalizada
das forças de manutenção de paz das Nações
Unidas, o Conselho de Segurança
também resolveu criar, à semelhança do caso
jugoslavo, um tribunal internacional penal
ad hoc para julgar os crimes mais
graves contra a humanidade cometidos nesse
conflito; o Tribunal Internacional Penal
para o Ruanda foi estabelecido em 1994. São estes os dois tribunais
internacionais ad hoc estabelecidos
pelo Conselho de Segurança.
O problema principal que se punha, e que é, de certa
forma, recorrente, é o de saber se o Conselho
de Segurança tem poderes para criar tribunais
internacionais penais. E para determinar
se realmente o Conselho de Segurança tem
competência para tal, é necessário analisar,
antes de mais, o documento constitutivo
e constitucional das Nações Unidas, a sua
Carta. Esta, de facto, atribui
competência primária ao Conselho de Segurança
na manutenção da paz e segurança internacionais, e que consiste em determinar
a ocorrência de qualquer quebra da paz,
ameaça a paz ou agressão e, caso entenda, determinar
a imposição das medidas não-coercivas ou
coercivas dispostas nos artigos 41 e 42.
O certo é que, fazendo uso desses poderes, quase ilimitados
nas palavras de Alfred Verdross, que lhe foram atribuídos
pela Carta, e aproveitando-se do inédito
clima político internacional que caracterizou
o período imediatamente posterior ao fim
da Guerra Fria, o Conselho de Segurança
acabou por classificar uma série de situações
diferentes como ameaçadoras da paz e segurança
internacionais e autorizar uma série de
medidas distintas para restaurá-las, entre
as quais embargos económicos, congelamento
de bens no estrangeiro, intervenções armadas e a instituição de tribunais
internacionais, neste último caso com a
argumentação de que os responsáveis pelos
massacres disseminados de civis e minorias
étnicas, deveriam ser submetidos a julgamento
para que assim a pacificação nacional dos
Estados em questão fosse facilitada e a paz e segurança internacionais assegurada.
Creio que, sem, de forma alguma, ceder à tese kelseniana, segundo a qual a Carta
atribuiu ao Conselho de Segurança poderes
absolutos para considerar qualquer situação
como sendo de ameaça à paz e segurança internacionais,
mas antes recuperando a ideia de Alfred
von Verdross acima citada, que os poderes
que foram reservados pelos redactores da
Carta ao Conselho de Segurança são quase
ilimitados, se pode considerar que longe
de significar um suporte jurídico para qualquer
arbitrariedade, uma licença absoluta para
fazer o que entender, representa uma margem
de discricionariedade bastante acentuada.
E, sendo assim, para além do relativo sistema
de checks and balances existente
no próprio Conselho, concretizado pelo direito
de veto das potências, a Carta das Nações
Unidas não permite que o Conselho faça o
que bem entender na determinação de ameaças
à paz e às medidas aplicáveis, mas submete
o Conselho de Segurança ao respeito pelos
princípios da Carta, e exige que qualquer
decisão seja motivada, de acordo com os
poderes do próprio. Ora, no caso da criação
dos tribunais ad hoc, não se pode
dizer que o Conselho não o fez. Tanto foi
assim, que, neste caso em particular, à excepção do México, nenhum Estado se posicionou sistematicamente
contra a interpretação que o Conselho de
Segurança deu dos seus próprios poderes.
Destarte, fazendo corresponder justiça internacional
penal e segurança, o Conselho de Segurança
acabou por justificar a criação dos tribunais
ad hoc como sendo absolutamente necessária
à restauração da paz e da segurança internacionais.
Além do mais, pode-se recorrer ao artigo 29 da Carta
que dispõe que o Conselho de Segurança poderá
estabelecer os órgãos que entender necessários
para auxiliá-lo no cumprimento das suas
funções, entre os quais estariam
tribunais internacionais penais. A natureza temporária
desses tribunais e a sua subordinação ao
Conselho de Segurança têm o condão de adequar
as características dos tribunais criados
às exigências do citado dispositivo e fazer
com que, desde que o Conselho de Segurança
entenda que a criação de tribunais internacionais
penais contribuiria para a manutenção ou
restauração da paz em determinado lugar,
isso seja legalmente permitido pela Carta.
De todo o modo, foi a decisão
tanto de um quanto do outro tribunal quando
a preliminar foi impetrada, tendo sido decidido
já no leading case Tadic, o primeiro
decidido em primeira instância em Tribunal,
de que: a) o Conselho de Segurança possui,
amparado na Carta, discricionariedade para
determinar que medidas tomar para restaurar
a paz e segurança internacionais; b) estava-se
perante uma acção real de ameaça à paz e
segurança internacionais, o que significa
que o Conselho de Segurança não estava a
ultrapassar os poderes
que lhe foram atribuídos pela Carta;
c) a própria Carta prevê a possibilidade
de serem criados órgãos auxiliares ao Conselho. Interpretações semelhantes
foram dadas pelo Tribunal Internacional
Penal para a Antiga Jugoslávia no Caso
Milosevic, bem como pelo Tribunal
Internacional Penal para o Ruanda no Caso
Kanyabashi.
Dito isto, deve-se salientar que o facto de terem sido
estabelecidos a partir de uma resolução
adoptada pelo Conselho de Segurança com
base no Capítulo VII da Carta, faz com que
os dois tribunais ad hoc tenham um
estatuto privilegiado vis a vis o
resto dos tribunais internacionais ou internacionalizados,
uma vez que, como a Carta das Nações Unidas
considera automaticamente vinculativas qualquer
resolução adoptada pelo Conselho com amparo
no Capítulo VII, e como estas instituíram
explicitamente a obrigação de se cooperar
com os tribunais ad hoc, todos os
Estados membros da Organização das Nações
Unidas são obrigados a cumpri-las sobre
pena de contra eles serem adoptadas as medidas
previstas na Carta, inclusivamente o uso
da força. Assim é que, por exemplo, qualquer
pedido de cooperação judiciária em matéria
penal, seja ele na modalidade de entrega
de suspeitos ou presos ou de auxílio judiciário,
deve ser cumprido de imediato, independentemente
de qualquer consideração de carácter interno,
constitucional ou legal, ou mesmo internacional. A força
normativa internacional dos tribunais
ad hoc é tão densa que, mesmo estando
a pessoa sobre a qual recai um pedido de
entrega a ser julgado pelos Tribunais de
um Estado, este é obrigado a renunciar à
sua jurisdição e entregá-lo imediatamente. Para mais, na possibilidade
de existir um conflito de jurisdição entre
um tribunal ad hoc e o TPI ou outro
tribunal, a primazia de jurisdição
sempre será do tribunal ad hoc, a
não ser que este a ela renuncie. Ademais, qualquer Estado
deve dar preferência aos pedidos de cooperação
emanados do tribunal ad hoc em detrimento
dos provenientes do TPI ou de outro tribunal.
Tudo isso concorre para fundamentar a constatação
de que se tratam de tribunais que usufruem
de um lugar especial no sistema jurídico
internacional.
- O Tribunal Internacional Penal
Apesar da hostilidade generalizada que os especialistas,
mesmo os que mostram um comprometimento
maior com tal tipo de instituição, têm para
com os tribunais ad hoc, e o
grande exaltação que a maioria dos
membros da comunidade científica internacional
e os membros da sociedade estatal internacional
fazem do projecto de criação do TPI –em
grande parte dos casos justificada –, a
verdade é que este não teria sido possível
sem aqueles. Com efeito, foi graças
à memorável acção que o Conselho de Segurança
desempenhou ao criar os tribunais ad
hoc e o seu razoável desempenho é que
a mui abstracta e eternamente adiada necessidade
de criação de uma instituição internacional
penal permanente conseguiu se materializar. E, curiosamente, veio
à luz, não por meio do Conselho de Segurança,
porque isso era legalmente complicado e
politicamente inviável se atendermos ao
facto de que os consensos necessários seriam
quase impossíveis, mas por meio dos tradicionais
métodos de feitura de tratados internacionais:
longas e dificílimas negociações, querelas
infindáveis, posições quase irreconciliáveis. A questão era delicada,
afinal tratava-se de submeter os próprios
cidadãos, inclusivamente aqueles que garantem
a defesa da nação em situações de particular
perigo, à possibilidade de serem julgados
numa instituição não submetida à jurisdição
do Estado. Ademais, diferentes tradições
do direito entraram em confronto; uns do
Civil Law, outros do Common
Law, os restantes de outras tradições
jurídicas, como a chinesa ou muçulmana,
com os seus distintos princípios em matéria
processual penal; mais grave ainda, já
que se confrontam com os alicerces fundamentais
do Estado, as filosofias penais eram diametralmente
opostas. Aos que exigiam a adopção
de um enfoque humanista e ressocializador,
outros respondiam que não aceitariam qualquer
tipo de tribunal que não aplicasse penas
de morte e fosse iminentemente retributivo.
Com todos esses ingredientes explosivos, foi um verdadeiro
milagre que o Estatuto de Roma tenha sido
aprovado em 1998 e que tenha entrado em
vigor somente quatro anos mais tarde, em
2002. De todo o modo, o futuro
do Tribunal Penal Internacional ainda não
está garantido, pese a rapidez em que foi
implantado. Primeiro, porque subsiste
a oposição activa e militante de vários
países poderosos, geralmente os que mais
facilmente podem estar envolvidos em situações
de conflito armado, as mais propensas a
gerar violações graves aos direitos humanos.
São os melhores exemplos a China, os Estados
Unidos, Israel, Rússia e vários países árabes.
Além disso, segundo: os países que aderiram
à iniciativa são precisamente aqueles que
julgariam sem problemas, utilizando o princípio
da complementaridade, eventuais violações
cometidas por nacionais seus, inclusivamente
militares;
terceiro, a possibilidade, que existe
no Estatuto de Roma, do Conselho de Segurança
submeter para julgamento no TPI casos de
Estados sobre os quais este não tenha jurisdição, torna-se remota a partir
do momento em que membros permanentes do
Conselho de Segurança opõem-se ao Tribunal. Assim, a não ser que
a conjuntura política se altere substancialmente,
o Tribunal deverá funcionar principalmente
em relação a países de pouca expressão,
em situação de transição, de pouca estabilidade
política ou em guerra civil.
De todo o modo, para os propósitos desta reflexão, com
a excepção dos casos que lhe venham a ser
submetidos pelo Conselho de Segurança,
de acordo com o artigo 13º do Estatuto de
Roma, o estatuto do TPI na ordem jurídica
internacional, e entre os seus congéneres,
é menor do que os Tribunais ad hoc.
A sua força é medida de acordo com o que
seu tratado constitutivo prescreve; e o
facto é que ele não lhe concedeu muito.
Primeiro, está claro, somente pode obrigar,
de acordo com a própria Convenção de Viena
sobre Direito dos Tratados entre Estados,
os que a ele se vinculam. Portanto, um pedido de
cooperação judiciária
feito a um Estado não membro, estaria
sujeito às condições especificadas na legislação
interna desse Estado, bem como aos seus
interesses em matéria de política externa.
Segundo, mesmo entre os
Estados-partes, o Estatuto de Roma,
relativiza as obrigações de cooperar em
alguns casos, nomeadamente nos casos em
que eles tenham, de acordo com o artigo
98, assinado acordos de consentimento prévio
com outros Estados ou nos casos em que o
cumprimento do pedido implicar na violação
de alguma norma de direito internacional
relativa a imunidades diplomáticas em relação
a outros Estados.
Portanto, a terceira geração de tribunais internacionais
assume uma força normativa muito menor do
que a segunda geração, que foram os tribunais
ad hoc, e as obrigações que impõe
aos Estados membro e não membros também são muito menos densas.
- Tribunais Penais Internacionalizados
É curioso que depois do TPI, foram criados outros tribunais
para julgar os mais graves crimes contra
a humanidade, os tribunais penais internacionalizados
ou de juízoz criminais internacionalizados,
cuja principal característica é de serem
híbridos, no sentido de simultaneamente
internos e internacionais. Essa natureza
híbrida altera-se conforme a situação, mas
pode se materializar na utilização de bases
jurídicas internas e internacionais, magistrados
nacionais e estrangeiros. O primeiro e mais
importante desses tribunais é o Tribunal
Especial para Serra Leoa, criado por um
Tratado entre as Nações Unidas e a República
de Serra Leoa, que julga tanto crimes
previstos pela legislação penal interna
quanto crimes de natureza jurídico internacional, e que conta entre
os seus magistrados com serra-leoneses,
mas também com juízes de outra nacionalidades. Foram também criados,
ou estão em processo adiantado de criação,
tribunais penais internacionalizados ou
juízos criminais internacionalizados em
Timor Leste, Kosovo, Camboja e Iraque, cada
qual com as suas especificidades.
A opção de se criar esses tribunais, ao invés de tribunais
ad hoc prende-se, além da causa de
base, que é a ausência de vontade política
do Conselho de Segurança em criar e financiar
outros tribunais ad hoc, directamente
com situações nas quais o contexto político
não recomenda a criação de tribunais internacionais
pelo Conselho de Segurança e quando ainda
é possível utilizar o sistema judicial nacional
de alguma forma, sem por em risco a imparcialidade
dos julgamentos e as garantias dos arguidos,
testemunhas e vítimas.
Em geral, todas eles foram estabelecidas
após violações massivas aos direitos humanos
e tiveram a particularidade terem sido precedidos,
com raras excepções, a intervenções humanitárias
unilaterais (Serra Leoa, Kosovo, Iraque)
ou colectivas (Timor Leste), quando a comunidade
internacional achou necessário punir essas
violações. Apesar desta característica
em comum, devem-se discernir duas situações:
uma, em que o mecanismo de criação é convencional,
isto é, resulta de um tratado entre as Nações
Unidas e um Estado – é o que aconteceu no
caso de Serra Leoa e, eventualmente, acontecerá
no Camboja – e, outra, em que os tribunais
ou juízos criminais são estabelecidos directamente
pelas administrações provisórias das Nações
Unidas, em que esta assume todos os poderes
de soberania, inclusive o jurisdicional,
de determinado território. Foi o que aconteceu em
Timor Leste e no Kosovo.
Quanto ao estatuto desses tribunais entre os tribunais
internacionais penais, deve-se também avaliá-los
à luz do seu modo de criação. Os
que são estabelecidos por via convencional,
como o de Serra Leoa ou do Camboja, tem
entre todos os tipos de tribunais que julgam
os mais graves crimes contra a humanidade,
a posição mais frágil, pois, como o tratado
somente vincula, como já foi salientado,
os signatários, o tratamento que ele recebe
dos outros Estados é o mesmo que este daria
a um Estado estrangeiro, portanto sujeitando-o
aos mesmos critérios para a concessão de
algum género de cooperação judiciária em
matéria penal, entre as quais restrições
constitucionais aplicáveis à extradição.
Aliás, neste caso, nem sequer se trata,
como no que toca aos outros tribunais internacionais,
de uma medida de cooperação judiciária penal
vertical, que acontece entre Estado e instituição
internacional, mas de verdadeira cooperação
judiciária horizontal,
similares às que acontecem entre
dois Estados soberanos. Tudo isto, obviamente,
é válido, com a reserva de que, por meio
de uma resolução adoptada sob o Capítulo
VII do Conselho de Segurança, a comunidade
internacional pode adensar exponencialmente
o estatuto desse tipo de tribunal. Destarte,
se por hipótese o Conselho de Segurança
adoptar uma resolução dessa natureza, obrigando
todos os Estados a cooperar com esses tribunais,
o efeito disso seria a equiparação dos pedidos
feitos por esse tribunal a um feito por
um tribunal ad hoc.
Por sua vez, é de indagar se o facto de determinados
tribunais penais internacionalizados serem
estabelecidos por leis
editadas por administrações territoriais
provisórias das Nações Unidas em sociedades
pós-conflito, administrações essas
que são também resultado de resoluções do
Conselho de Segurança, dar-lhes-iam equiparação
aos tribunais ad hoc? Trata-se, sem
dúvida, de uma questão muito complexa e
que somente pode ser solucionada através
da análise, antes de tudo, das resoluções
do Conselho de Segurança que criaram as
administrações provisórias sobre territórios
em conflito. Deve-se verificar se simultaneamente
à criação dessas instituições, o Conselho
de Segurança entendeu que seria necessário
julgar os alegados perpetradores dos graves
crimes contra a humanidade cometidos como
forma de restaurar a paz e segurança
internacionais e se, por meio de
resolução adoptada com base no Capítulo
VII, obrigou explicitamente os Estados a
prestarem, de modo imperativo, a sua cooperação
a essas instituições.
E, parece que o Conselho de Segurança não considerou
essas hipóteses nas Resoluções que criaram
as administrações internacionais no Kosovo
e em Timor Leste. Apesar delas poderem
estabelecer tribunais, uma vez que assumiram
transitoriamente todos os poderes de soberania
daqueles territórios, e administrar, em
consequência, a justiça penal, não lhes
foi concedido, pelo menos inequivocamente,
os poderes de requerer imperativamente a
cooperação judiciária em matéria penal aos
Estados membros das Nações Unidas. No caso
do Kosovo, isso é claro, pois a Resolução
1244, quando faz referência à responsabilidade
individual pelas graves violações aos direitos
humanos, remete a questão à necessidade
de se cooperar com o Tribunal Internacional
Penal para a Antiga Jugoslávia, que continua, como atrás
referenciado, com competência para julgar
esses crimes. Quanto a Timor Leste, apesar
da Resolução 1272, que estabeleceu a administração
transitória da UNAET sobre o território,
não ser clara, pois, à parte reiterar que
aqueles os responsáveis pelas violações
incorreriam em responsabilidade individual, não obriga em nenhuma
parte os Estados a cooperarem judiciariamente
com as instituições que o fizerem. Hoje,
com a dissolução da UNTAET, isso não é mais
um problema que se coloca, mas, de todo
o modo, não me parece que os Estados tivessem
uma obrigação jurídica de cooperar com essas
juízos criminais da UNTAET entretanto,
do mesmo modo, como não o tinham em relação
às do Kosovo.
Considerações
Finais
Em
linhas bastante sintéticas, tentou-se fazer
uma mapeamento
sobre as quatro gerações de tribunais internacionais
penais que foram surgindo. Tribunais que
criados de forma distinta e que, portanto,
gozam de diferentes posições dentro da ordem
jurídica internacional. Uns, os ad hoc,
gozam de primazia de jurisdição e podem
exigir, dentro dos limites estatutários
específicos, dos Estados o cumprimento de
várias medidas tendentes a executar as suas
atribuições. Outros, como os tribunais penais
internacionalizados, são practicamente equiparados
a Estados estrangeiros quando se trata de
com eles cooperar.
O “sistema”
de justiça internacional penal, portanto,
apresenta-se não como um sistema no sentido
estrito, mas como um emaranhado complexo
de várias instituições, que são criadas
com motivações distintas, muito embora tenham
todas por base o fundamento
segundo o qual não é admissível a impunidade
para os crimes mais graves contra a humanidade
e de as pessoas que os cometem devem ser
individualmente responsabilizados. Não obstante,
na ordem jurídica internacional, numa eterna
fase de transição, como Habermas aponta,
nada é sistematizado; a coerência do sistema
encontra-se no caos, na proliferação de
instituições e de normas, na sobreposição
de espaços de normatividade. Os princípios
que alicerçam o sistema são desenhados conscientemente
para minorar os efeitos da desordem relativa
e conseguem fazê-lo de forma bastante eficaz.
É por isso, por exemplo, que faz com que
um indivíduo não possa ser julgado duas
vezes pelos mesmos factos por dois tribunais
internacionais (ne bis in idem),
que os tribunais aproveitam-se do trabalho
e da jurisprudência uns dos outros, e contribuem
assim, ao seu modo, para a criação de princípios
próprios e convergentes para o direito internacional
penal e o processo penal internacional e
de uma dogmática jurídico-penal internacional.