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Insurreição Comunista de 1935
em Natal e Rio Grande do Norte

 

A Revolta Comunista de 1935 em Natal
Relatos de Insurreição que gerou o primeiro soviete nas Américas
Luiz Gonzaga Cortez

 

 

 

 

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Prefácio
Por Eduardo Maffei

A Ideologia Alemã fora escrita, como viria a ser o Manifesto Comunista por Marx e Engels. Onze anos depois da publicação desta, ainda os manuscritos de colaboração não se haviam transformado em livro. Marx, então, em 1859, diria que “circunstâncias diversas” haviam impedido sua publicação, pelo que ambos abandonaram o projeto editorial, entregando os manuscritos “à crítica roedora dos ratos”, como disse Marx. Felizmente isso não aconteceu porque, em 1932, 73 anos depois, foi publicado em alemão, violando o ineditismo, pelo Instituto de Marxismo Leninismo de Moscou. Se não fora essa circunstância feliz, não poderíamos vir a saber da única caracterização científica do que representa a História. Destacando o papel da mesma escreveram: “Conhecemos apenas uma ciência, a ciência da História. A História pode ser examinada sob dois aspectos: história da natureza e história dos homens. Os dois aspectos, contudo, não são separáveis: enquanto existirem homens, a história da natureza e a história dos homens se condicionarão reciprocamente.

Desde, entretanto, que a sociedade se dividiu em classes, remontando ao princípio dos acontecimentos, criaram-se, de acordo com os interesses dessa divisão, dois tipos de história. Uma, a oficial, ao sabor das classes dominantes que ignora o povo que a faz, deixando-o à sombra dos figurões, da crônica de fatos, eivada de datas e nomes como acontece com a Bíblia e dos faraós. Essa crônica foi que a conferiu a Herodoto o cognome de Pai da História. Aconteceu, entretanto, só com Tulcídedes, história passou a ser tratada como ciência e não como crônica. Em sua História esse sábio grego, cuidando das guerras do Peloponeso, de tão precisa e tal forma abordou a Peste de Atenas, doença avassalante já extinta, que é ao seu livro que os médicos e epidemilogistas recorrem para estudá-la, ignorando Hipócrates que a assistiu e, mesmo considerado o Pai da Medicina, nada de válido deixou sobre ela, não percebendo o que representava. Os cronistas herodoticos, e Hipócrates entre eles, preocuparam-se em assinalar a morte de uma vítima ilustre dessa peste, Péricles, mas não a estudaram.

Há portanto, desde há muito, duas histórias. Uma, a oficial e outra, ciência, que, infelizmente, em virtude do mascaramento oficialista, só pode ser feita, na maioria dos casos, sob prospecção. Reza a sabedoria hindu que a verdade é, como a luz, branca. Que uma vez decomposta pelo prisma adquire as sete cores do arco-íris. E a cada mais tempo que o mundo acontece, a oficial vai mascarando os acontecimentos à sua imagem e semelhança. E há então tantas verdades que não dizem respeito à verdade. No que se refere à intentona, esse mascaramento sedimentou muita mentira. Ainda recentemente, defendendo na UNICAMP, uma tese sobre o PCB e a Internacional Comunista, o historiador herodotico Paulo Sérgio Pinheiro, tomando partido, investiu contra a lógica dos fatos, estabelecendo a sua verdade mascarada oficial, fazendo por ignorar que, em História, é do nosso dever, considerar a verdade, liberta de preconceitos, como uma imposição de honestidade indispensável para a elaboração de uma consciência crítica e positiva. A simples triagem da documentação existente, com opiniões contraditórias, sobre a intentona, demonstra que o levantamento da verdade tulcídidica materialista, impessoal, está por ser feita. Daí a importância deste livro de Luiz Gonzaga Cortez que, por procurar a verdade, vai desgostar muita gente desmascarada que procurou edificar a história com fanfarronice, seja o que de conservadorismo Dinarte Mariz ou de que “companheirismo” Giocondo Dias procurou perpetuar.

No Brasil, onde as classes dominantes têm o mesmo desprezo pelo povo que faz a História que suas congêneres d’além mar, isso se torna mais evidente porque tem o seu núcleo central no que houver de pior em nossa formação, os degredados. O que, por uma subconsciência histórica, explica a extrema ferocidade do “paizinho” Getúlio e seus “filhinhos” contra os vencidos de novembro de 1935. É celebre o fato contado por João Ribeiro em sua História do Brasil, daquele bispo português de Leiria que assim se despedia da escória extraditada para a colônia: “Vá degredado para o Brasil, donde voltará rico e honrado”. Enfim é a história oficial de gente de bem porque possui bens!... Mas essa escória preferiu permanecer, dedicando-se ao roubo de terras aos índios e à sua escravização. Tendo por pano de fundo o desastroso episódio das capitanias hereditárias que deu origem à essa praga nacional, o latifúndio, mas escravista que feudalista.

Toda a história do Brasil é caracterizada por episódio de descompasso e subseqüente acomodação. A Independência foi uma acomodação entre as classes dominantes lusas e nossas, tendo por denominador comum a permanência do latifúndio. E assim, como acontece com a crosta terrestre que, quando se descompassa em sua estrutura, origina terremotos, no Brasil os terremotos sociais foram substituídos por mansos fenômenos de acomodação. Orgulhamo-nos de uma história sem sangue, ignorando que ele não se fez por acomodação. O povo de que as páginas da história oficial não tomava conhecimento, limitando-se à mansidão do “Independência ou Morte”, continuou a luta pelos seus direitos que se opunham ao escravismo e ao latifúndio, eixos dos interesses do poder dominante. As lutas populares que se seguiram à Independência, entre as quais a Balaiada no Maranhão e especialmente a Cabanagem na Amazônia, são provas disso. A Cabanagem, foi, realmente, a mais importante, através da qual, pela primeira vez, no Brasil, o povo atingiu o poder, embora carente de ideologia da qual pudesse se ter aproveitado da relação de forças existente. A tomada do poder pelo povo repetir-se-ia no Brasil, precisamente um século depois em Natal, em 1935. A Cabanagem, entretanto, cumpriu sua função histórica de proporcionar a independência da Amazônia que vinha sendo mascarada por brasileiros de parceria com os também dominantes “caramurua”, portugueses que enchiam seus bolsos aqui, mas tinham o coração e a cabeça naquilo que, para eles , continuava sendo o Reino, Portugal. Com todas as características de uma aventura, a Intentona, entretanto, não cumpriu a missão a que se destinava e que, foi utilizada, pelas classes dominantes para, através de uma campanha de calúnias, impor a ferocidade do terror, daqueles desgraçado últimos anos 30 e primeiros 40. Os cabanos foram, também, uma vez derrotados, massacrados pela gente luso-brasileira com extrema ferocidade, porque lutavam por uma independência real que trouxesse uma modificação em benefício das extensas camadas populares, índios e escravos, inclusive.

Caio Prado Jr. Em Formação do Brasil Contemporâneo, 1943, pgs. 5 e 6, explicando aquele tempo de começo do século XIX, escreveu: “Tínhamos, naquele momento, chegado a um ponto morto. A obra colonizadora dos portugueses, na base em que se assentava e que, em conjunto, formava aquele sistema, esgotara suas possibilidades. Perecer ou modificar, tal era o dilema que se apresentava ao Brasil. “Com o sete de setembro o Brasil não perecera mas também pouco se modificara. Oficialmente se acomodara. E o artífice dessa acomodação, quem coordenou as forças reacionárias que não desejavam uma independência total, foi Feijó que, com sua tirania de liberdade limitada, não pode compreender o quanto de ruim representava essa acomodação para que tivéssemos um Brasil unido, como de acordo com os interesses acomodatícios, moldou, mas com seu povo independente. Padecemos dessas acomodações até hoje. Disso que se diz jeitinho brasileiro...

Duvido que não só a Internacional Comunista como o PCB, quando se enveredaram pelo caminho da, até então renegada e condenada, Frente Única das forças progressistas, conhecessem qualquer coisa sobre as lutas populares brasileiras, especialmente a Cabanagem. Não se estudava Canudos e conselheiro, mas aceitava-se o cangaço, forma degenerada de luta, e Lampião! O que importava era a Revolução de Outubro e os sovietes, considerados antimarxisticamente como modelos e não como simples referência como convinha. O arquivo da Cabanagem acha-se em Belém, praticamente virgem, sem que, até agora alguém se interessasse pelo tesouro representando por esses documentos para o melhor conhecimento do Brasil. E, para escrever um ensaio sobre essa ilíada paraense, tive que lançar não de processo dedutivos e de prospecção sócio-histórica porque a melhor, e praticamente única, obra, redigida e publicada paulatinamente em cinco volumes entre 1865 e 1890, por Domingos Antônio Raiol, que pela Cabanagem se interessou, porque procurava pelo seu pai que fora vereador em Vigia, morto quando os cabanos tomaram a cidade. A obra – reeditada pela Universidade do Pará em três volumes em 1970 – do ponto de vista da classe dominante é séria mas tremendamente contra os cabanos, embora mantendo um mínimo respeito pelos acontecimentos. Raiol pertencera à elite burocrática do Império, havendo atingido e baronato. Paralelizando os dois acontecimentos populares, o livro sob prefácio, de Luiz Gonzaga Cortez transformar-se-á num documento obrigatório para a historiografia tulcídidica brasileira. Entrevistando muitos sobreviventes prestou inestimável serviço à história das nossas lutas populares.

Tudo demonstra que os marxistas (?) do PCB e da IC (Internacional Comunista) que influíram decididamente no movimento que eclodiu em novembro de 1935, não tivessem dado conta do valor da história como ciência segundo Marx e Engels, como da importância de estudá-la e conhecê-la para lhe dar o rumo certo. Marx estudou profundamente o episódio da Comuna de Paris para que fosse aproveitado como experiência. Lenine fez do levante de 1905 tese e estudo experimental, rompendo com Plekanov que fora seu mestre mas não compreendera aquele espontaneismo dos trabalhadores russos. E Trotsky escreveria sobre esse novembro um livro monumental: 1905. Eles transformaram a derrota em tese para estudo. Pergunta-se: os responsáveis pelo nosso novembro de 1935 fizeram qualquer coisa parecida? Como se propunha a modificar a estrutura do sistema econômico russo, Lenine estudou-o a fundo, escrevendo a obra O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia. Caio Prado Jr. e Nelson Werneck Sodré, que melhor estudaram as condições do nosso desenvolvimento, são quase que ignorados pela militância. Depois da derrota de 1905 a intelectualidade russa, frustrada no campo político, tal como aconteceu e acontece entre nós, começou a se enveredar pelos atalhos do idealismo e misticismo. Então Lenine estudou profundamente filosofia. Transformou-se num rato de bibliotecas. Conta-se até que, muitos anos depois, já dirigente da URSS pós outubro de 17, um funcionário de certa biblioteca inglesa perguntava: “Porquê” aquele russo, baixinho e calvo nunca mais apareceu? Morreu?” Escreveu então sua mais extraordinária obra sobre os princípios filosóficos do marxismo, Materialismo e Empírio-Criticismo. Pergunta-se: onde estava e onde está a nossa frente de luta ideológica? E quando a questão de poder se lhe apresentou, homisiado na Finlândia, escreveu algo extraordinário: O Estado e a Revolução. Nossos marxistas, até hoje não tem uma visão marxista do Estado brasileiro. Contentam-se com essa miscelânea dos sociólogos que andam, por aí, nas universidades, impondo suas opiniões, quase sempre idealistas. E quando, dias depois, retornou à Rússia, pela primeira das duas vezes em 1917, como líder revolucionário inconteste, ao desembarcar na estação Finlândia em Retrógrado - hoje Leningrado -, lançou as célebres Teses de Abril. E assim, os bolchevistas, na antevéspera de se tornarem o dínamo do povo russo a caminho do poder já sabiam o que queriam e o que podiam. No Brasil os comunistas não sabiam, em 1935, o que queriam e nem o que podiam.

O movimento de novembro de 1935 não contava com um estudo preliminar sobre as questões de nossa sociedade que foi esteriotipada como feudal-burguesia, um híbrido só possível a primários. E, até hoje, acham-se perdidos. Uns porque sendo o latifúndio a dominante, o confundem com feudalismo, ignorando que ele, que perdera Roma - Plínio, citado por Engels, dissera: “latinfundia perdidere Itálian”- não era feudal; era escravista. Da mesma forma que existe um processo peculiar de produção asiático, o latifúndio moldou um processo peculiar brasileiro. Há quem afirma e quem infirme a existência do feudalismo como etapa do nosso desenvolvimento. Mas caberia - o que não foi feito - aos militantes intelectuais estudar profundamente a influência do latifúndio no emperramento da nossa evolução e conscientizar as massas.

Quando o alemão tão brasileiro como o italiano Garibaldi, Harry Berger, ligou-se ao movimento comunista brasileiro nos anos 30 para emprestar sua colaboração, transmitindo seus conhecimentos teóricos e sua experiência revolucionária internacional, procurou se contactar com o movimento camponês, partindo da premissa que o latifúndio era o peso morto fundamental de que padecia, desde suas origens, o Brasil. Manteve uns tantos contatos com uns poucos camponeses que a irresponsabilidade, não só de Miranda, como de todo PCB que não se opusera às suas fanfarronices, multiplicara por milhares e milhares. Berger era experiente. Verificou que não havia movimento camponês suficiente, condenando qualquer movimento precipitado. Como ele outros, porque verificaram que não havia condições revolucionárias, também se opuseram e foram marginalizados, embora experiente, tais como Christiano Cordeiro, Heitor Ferreira Lima, Eduardo Xavier, o Abóbora e mais que eles porque deixou sua opinião documentada, João Barreto Leite Filho. Mas pela total inexistência de democracia interna não foram ouvidos. Quando o levante foi irresponsavelmente precipitado em cadeia em Natal, Recife e Rio de Janeiro os renitentes aceitaram a, já não mais precipitação, provocação. O mesmo não aconteceu com Roberto Morena, elemento altamente capacitado, que era dirigente em Porto Alegre. Carregou, apesar de haver depois lutado contra o fascismo nas Brigadas Internacionais na Guerra Civil Espanhola, a pecha de covarde porque não se aventurara ao levante. O livro atual de Cortez é de muita importância porque demonstra que não houve, durante os dias de domínio revolucionário no Rio Grande do Norte, nenhuma participação camponesa favorável. Pelo contrário, a que houve foi de oposição. E também, diferentemente do que Giocondo Dias viria a contar, a não ser meia dúzia de cidades do Agreste, em virtude da militância de cafeistas que supunham lutar, ao lado da oligarquia dos Câmaras, e não da ANL as tropas revolucionárias não ocuparam dois terços do estado!

Nelson Werneck Sodré, em seu recente livro, A Intentona Comunista de 1935, editado por Mercado Aberto, estudando, com a fina argúcia que lhe é própria, as condições de então, concluiu: “O fato é que no tormentoso quadro entre 1930 e 1935, não havia, no Brasil, uma situação revolucionária” (pg. 15). O levante de 1935 teve todas as características golpistas e tenentistas. Seus responsáveis acreditavam muito nos quartéis, ignorando o povo. Nem os militantes do PCB tiveram conhecimento antecipado de sua eclosão. Foram surpreendidos. O que, entretanto, não aconteceu com o governo que não só o esperava como auxiliou sua precipitação. Faltava, essa é que é a realidade, capacitação política e conhecimento da realidade brasileira da parte dos dirigentes comunistas. No livro de Cortez vamos encontrar documentos que justificam estas palavras, especialmente no de Santa que alertou que não era “hora de se cometer qualquer loucura”.

No citado livro, à pag 47, Nelson Werneck Sodré escreveu: “E a decisão deveria caber, portanto, às forças que aqui lutavam. As informações que levariam à decisão eram fornecidas pelo PCB, como era norma da IC. À direção do PCB, pois, coube a decisão de partir para a luta armada”. Em fins de 34 e começo de 35 a IC, em virtude dos informes apoteóticos que lhe vinham sendo transmitidos pelo PCB, realizou muitas reuniões para ampla discussão das possibilidades apresentadas pela situação brasileira de, através da frente única, chegar-se à insurreição. O grupo liderado pelos capacitados e experientes Dimitrov e Togliatti que conheciam o fascismo na pele, opôs-se à aventura, mas foi vencido pelo encabeçado por Miranda, moleque internacional e dirigente máximo do PCB e que atingira esse posto por manobras de audácia e aventura políticas, Prestes que desconhecia as tropas que comandaria e pelo temperamental - ele exigiu a aceitação de Prestes pelo PCB, que reagia (e como estavam certos os membros do PCB!) à sua possível influência tenentista pequeno burguesa, dando murro na mesa - Manuilski. Foi uma decisão tomada à base de informações fantásticas.

A Aliança Nacional Libertadora lançada em 30 de março de 1935, agitou profundamente o país, tomando o caráter de conscientização das massas, no mais empolgante movimento que a nação conhecera. Mas fora mais criação de tenentistas inconformados com ainda grande prestígio junto ao povo, sobretudo porque sentiam-se traídos por Getúlio, que do PCB. É verdade que desde os primeiros instantes foram os militantes deste partido os melhores da ANL, jogando todas suas forças no processo de agitação. E à medida que esta se radicalizava pelas palavras de ordem avançadas demais do PCB e, especialmente, de Prestes, a frente única estreitou-se e, depois de sua ilegalização, restrita ao PCB que não analisou essa primeira derrota, insistindo na tese da luta armada. O povo não mexera uma pena de protesto contra o fechamento da ANL mas, ignorando o objetivo, o PCB passou a agir no subjetivo, confundindo aquilo que havia sido extensa agitação com profunda organização, preparando aquilo que, segundo frisei na conferência feita em 05-03-87, no campus da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a convite de sua associação de docentes, a ADURN, como episódio encerrou o ciclo do tenentismo. A intentona foi o último ato do tenentismo. À página 91 do citado livro de Nelson Werneck Sodré, lançado posteriormente, minhas iguais palavras aos potiguares, ecoaram como letras: “Em tudo e por tudo”, escreveu esse historiador, “foi a derradeira manifestação do Tenentismo inconformado com a sua marginalização e superação”.

O que é importante sobre o histórico novembro de 35 é seu estudo cada vez mais profundo como lição. E daí a importância deste livro de Cortez que buliu num formigueiro aparentemente extinto, cutucando o diabo com vara curta. A Comuna de Paris teve a análise de Marx, o 1905 russo teve a análise de Lenine. O nosso novembro ficou órfão de análises. E então aconteceu o que ainda está acontecendo, por falta de análises. Um jogo de empurra da derrota por quem não deveria ignorar que uma derrota bem estudada já é meio caminho andado para a vitória. O PCB em novembro de 1935 não se achava preparado nem para a vitória; o governo contra o qual lutava, sim. Ainda fumegavam as armas quando se desencadeou a campanha de calúnias adrede preparada. Que moças haviam sido violentadas, que os comunistas cometeram excesso contra inocentes. As reportagens de Cortez demonstram como o getulismo se cevou de calúnias. E, enquanto isso, assassinava presos indefesos, amplamente derrotados, nas grotas de Currais Novos. Malvino Reis, no Recife, também fuzilou inermes prisioneiros sem qualquer julgamento. Mas em Natal, Cortez demonstra que ninguém foi morto, enquanto dormia, por camaradas de armas. Como de resto, embora essa calúnia seja assoalhada, à cada terroristica comemoração pelas forças vitoriosas, todos os 27 de novembro, ninguém disse até hoje o nome da vítima, do algoz e onde isso aconteceu. Agildo Barata conta, em seu livro Vida de um Revolucionário, como encostou na parede Adauto Lúcio Cardoso e Carlos de Lacerda nos seus tempos de vereança no Distrito Federal do Rio de Janeiro. Está em ata da Câmara de Vereadores a retratação de Cardoso e Lacerda. Mas, tão pronto livres de quem os desafiasse, esses dois anti-getulistas voltaram a propagar as calúnias.. getulistas! E foram muito bons assoalhadores. Nunca Getúlio teve aliados no campo da calúnia tão eficazes como esses dois! E em Natal, conforme documenta Cortez, até a gente “bem” que assistia uma solenidade junto com o governador, foi escoltada, com segurança e respeito, para suas residências nos bairros chiques.

Conta Renan, se não me engano, nos Os Evangelhos, um dos seus livros sobre as origens do cristianismo, estranhando a uniformidade, quase que decalcada, das diferentes narrativas, que era de se colocar em dúvida que os Evangelhos tivessem sido escritos por quatro pessoas diferentes. E se perguntássemos a diferentes veteranos das campanhas napoleônicas pela seqüência das batalhas empenhadas, haveria um baralhamento de datas. Luiz Gonzaga Cortez, através de suas entrevistas enfeixadas neste livro, com os participantes do movimento em Natal, prestou inestimável serviço para elucidação de fatos importantes. O “valente” Dinarte Mariz covarde e simplesmente fugiu; Giocondo Dias quando viria a afirmar que eles, os revolucionários, haviam tomado conta de dois terços do estado, dava vazão à mitomania. Gastão Costa Nunes que se confessa, até hoje, 81 anos, medularmente anticomunista, “fanático seguidor de Café Filho, queria lutar para derrubar o governo”. Foi, depois de preso, parar na Ilha Grande onde diz ter feito amizade com Luiz Carlos Prestes etc. Prestes nunca esteve preso na Ilha Grande! Mas, embora esses lapsos de depoentes, dos quais se originam as lendas, em mãos de um estudioso do episódio, este livro é de muito valor. Quem viver verá.

Desde o primeiro dia, como se já tivessem a palavra no arsenal de guerra psicológica, o movimento foi qualificado de intentona. E desde então os revolucionários puseram-se na defensiva também com respeito a essa qualificação. Pois bem, os dicionaristas, denominam de intentona qualquer intento louco e o intento de novembro de 1935 foi realmente louco. Marx não renegou os comunardos quando apelidou a Comuna de Paris como “assalto ao céu por bravos loucos”. Para os revolucionários brasileiros a expressão intentona - e é preciso que se dê legitimidade a esse termo - deve ser entendida como os patriotas brasileiros entenderam Tiradentes - que, aliás, foi vilipendiado por Getúlio Vargas quando transformou o 21 de abril em Dia da Polícia - e a Inconfidência. E, inconfidência, significa deslealdade ou infidelidade. O que dá nobreza às palavras são os fatos que com elas tentam menosprezar ou menoscabar. E, então, a menos que se aceite o menoscabo, ou se considere desprezível, porque não intento louco, intentona?

Eduardo Maffei

OBS: Este texto foi escrito em 1987.

Eduardo Maffei foi médico, polígrafo e historiador, autor da tetratologia Maria da Greve e o Etopeu (A Greve, Maria da Greve, Vidas sem Norte, A Morte do Sapateiro) além do depoimento-histórico A Batalha da Praça da Sé. Integrou o Conselho Consultivo da Revista dos Profissionais de História do Rio Grande do Sul, História - ensino e pesquisa.

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