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Insurreição Comunista de 1935
em Natal e Rio Grande do Norte

 

A Revolta Comunista de 1935 em Natal
Relatos de Insurreição que gerou o primeiro soviete nas Américas
Luiz Gonzaga Cortez

 

 

 

 

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14. O fim da revolução pareceu carnaval

Por sugestão do advogado Bianor Medeiros, o hoteleiro José Pacheco, 68 anos, proprietário do Hotel Tirol, testemunha dos acontecimentos de novembro de 1935, na região Seridó do Estado, prestou depoimento a “O POTI” sobre a participação do então padre Walfredo Gurgel, que mais tarde viria a ser governador do Rio Grande do Norte, com o apoio decisivo de Aluízio Alves, na chamada Batalha de Itararé, o famoso tiroteio da Serra do Doutor, no município de Campo Redondo-RN.

Pacheco também participou do tiroteio ocorrido na cidade de Panelas, hoje Bom Jesus, a 60 quilômetros de Natal, um dia antes da refrega na Serra do Doutor. Ele confirma o que Seráfico Batista, ex-prefeito de Santana do Seridó, disse a O POTI sobre a fuga em massa dos combatentes sertanejos, após o tiroteio com os revolucionários de 35, em Panelas.

Dinarte Mariz e Enoque Garcia, cada um com uma metralhadora de mão, chegaram em Santa Cruz e passaram a fazer discursos, conclamando o povo a pegar em armas para defender a sociedade contra o comunismo. Enoque era quem falava mais, pois Dinarte ainda não era político, mas foi grande aliciador de sertanejos para os combates de Panelas e Serra do Doutor. Os caminhões deles, do Dr. Flávio Mafra e Theodorico Bezerra foram usados para transportar os sertanejos. Descemos para Panelas e, no meio do trajeto encontramos uma Limousine, que os revoltosos tomaram do doutor Osvaldo Medeiros, com uma bandeira do Brasil cobrindo o capuz e dirigida pelo Sargento Wanderley, do Exército. “Vim me entregar”, disse Wanderley, que entregou as suas armas e as que eram conduzidas por dois soldados, que lhes faziam companhia. Eu peguei um mosquetão e um bornal cheio de balas, me enchendo de entusiasmo para a luta. Quando começou o tiroteio em Panelas, eu estava detrás da igreja da cidade, sem disparar um tiro sequer, quando eu vi o carro fugindo. Ai resolvi fugir também, mas um comando de Dinarte Mariz parou a Limousine e mandou que a gente fugisse num caminhão, que estava cheio de carne de charque, rapadura, queijo e carne de sol, os alimentos das nossas tropas. Essa comida farta foi providenciada por Dinarte, que não participou dos tiroteios, mas foi peça importante porque atuou como um verdadeiro general. Descarregamos o caminhão, a cinco quilômetros de Panelas, e fugimos para Santa Cruz,, onde fomos dormir. Lá, estavam dizendo “tá todo mundo fugindo de Panelas”, disse José Pacheco, acrescentando, ainda, que cerca de 30 camisas-verdes, liderados por Walfredo Gurgel, participaram dos preparativos e da luta na Serra do Doutor, cujo número de mortes não soube precisar.

Na próxima reportagem, daremos prosseguimento ao depoimento de José Pacheco e ao relato sobre a briga de Giocondo Dias e Paulo Teixeira, em Lages/RN, após o fracasso do levante de 35. Bianor Medeiros, que foi integralista, afirma “qual a criança que ouvindo falar em Deus, Pátria e família não se entusiasmava? A criança não via política (não sabia sequer o que seria) e sim via as figuras de envergadura e altura de Seabra Fagundes, Otto Guerra, Felipe Neri, Ewerton Cortez, Câmara Cascudo, Walfredo Gurgel, Mário Negócio, José Augusto Rodrigues, Manuel Genésio, Carlos Gondim, Luiz Veiga, os Lúcio e Bilé, do Acari, todos sem exceção, eram bons oradores e comunicadores de massa. (Retificação: em 1935, Clóvis T. Sarinho não era integralista. Sua entrada na Ação Integralista Brasileira/RN ocorreu em 1937).


“É COMUNISMO, MENINO!”

O escritor Otacílio Cardoso prestou depoimento sobre a revolução de 35 em Natal. Na íntegra, eis o seu relato que propiciou a manchete desta reportagem sobre o comunismo no RN.

“Quando da chamada intentona comunista de novembro de 1935 andava aqui o degas nos seus fagueiros 16 anos. Dezesseis anos daquele tempo, no que tange conhecimentos e esperteza, correspondem a uns 12 de hoje - e olhe lá!

Residia eu então na casa pastoral da Igreja Presbiteriana - uma pequena construção imprensada entre a Igreja e a prefeitura. Morava em companhia de duas irmãs mais velhas, das quais uma sobrevive. E foi esta justamente, que se encontrava em casa, naquela memorável noite. A outra logo depois da ceia, se deslocara até a casa de minha tia Ana, na Praça André de Albuquerque, 578 (onde é hoje uma lanchonete) a fim de saber como ia passando o nosso tio Gedeão, acometido por um derrame alguns dias antes.

Naquele tempo eu tinha uma paixão avassaladora pelo romance policial, devorava um atrás do outro, volumes de Conan Coyle, Agata Christie, Edgar Wallace, S.S. Van Dine... Justamente naquele dia (não havia ainda aqui a semana inglesa), eu adquirira no sebo do João Nicodemos, uma novela de Edgar Wallace, e tão logo terminei o café, “agarrei” a ler. Ao acender um “Yolanda” verifiquei, com desagrado, que apenas dois outros me restavam no maço. Iria um pouco mais renovar o estoque no Bar Teutônia, um café que existia então defronte da Prefeitura, bem pertinho, portanto. Mas a leitura era de tal modo absorvente, que eu ia passando de um capítulo a outro, e deixando o cigarro pra depois.

Seriam aproximadamente 7h - talvez um pouco mais - quando minha irmã chamou-me a atenção para um alarido qualquer ao lado do quartel do 21 BC, que era ali onde é hoje o Colégio Churchill. Só então emergi do “fog” londrino. Tão absorvido estava na trama do romance que não ouvira absolutamente nada...

Vou dar uma olhada - disse minha irmã dirigindo-se para o oitão da Igreja. Havia, nos fundos, uma saída para a Praça João Tibúrcio.

Aí começou o tiroteio. Minha irmã tornou às pressas e por pouco não corta a garganta num arame de estender roupa. Primeira vítima da rebordosa apenas um arranhão que a tintura de iodo logo sarou.

O tiroteio era cerrado, as balas por vezes ricocheteavam nos postes, sibilavam... Que diabo disto seria aquilo? Eu não sabia nem imaginava o que pudesse ser. Depois da posse do Dr. Rafael Fernandes, menos de um mês antes, tudo parecia tão calmo...

Fechada a casa, ficamos, minha irmã e eu, a ouvir os disparos. Um tanto apreensivos, evidentemente. E ouvimo-los pela noite a dentro, pois a verdade é que, não só ruído dos disparos como a tensão nervosa não permitiam que nos entregássemos ao sono. Dei logo conta dos dois cigarros - e me arrependi pra burro. Sabe lá o que seria para um fumante passar uma noite sem pescar uma simples traíra, a escutar tiros e mais tiros, sem ter um cigarro para abrandar a tensão?

Ao amanhecer do domingo o tiroteio já não tinha a mesma intensidade, era, ao contrário, esparsos, pelo menos aqueles disparados nas proximidades. Mas lá pros lados da Praça André, a coisa continuava.

Ansioso por saber o que se passava, enchi-me de coragem, abri a porta e fui até o portão. Nessa ocasião vi, subindo a pé a rua Junqueira Aires, uma pessoa minha conhecida: era o dentista João Abdon, cujo gabinete dentário ficava no mesmo prédio da “A Razão”, jornal do qual fora eu tipógrafo até recentemente.

Que é que está havendo doutor?

Sem querer preguei-lhe um susto, decerto ignorava que eu morasse ali.

É comunismo, menino. E o melhor que você faz é ir para dentro!

Transmiti a irmã a informação. E passamos a cogitar sobre o que deveríamos fazer, pois, na época, “comíamos de marmita”, como se diz, e a casa, além de uns poucos pães e de algumas frutas não dispunha de mais nada no que tange a alimentos. A solução era irmos para a casa do tio Gedeão. Mas... e as balas? Não havia, contudo, outra saída, tínhamos que ir para a casa dos tios.

Ao tentarmos fazê-lo, porém deparamos com um obstáculo. Dois jovens soldados (ou pelo menos com a farda do exército), cada qual com um fuzil, estavam postados - um na esquina da Prefeitura, outro na do Atheneu (O Atheneu era onde ficam atualmente os fundos da Secretaria de Finanças do Município). Achavam os rapazes que não era aconselhável sairmos, e muito menos naquela direção.

Ali é que o fumo tá forte... disse um deles.

Minha irmã argumentou, expondo-lhes a nossa situação. Mostraram-se compreensivos. Procuraram até orientar-nos no trajeto.

Vão indo aí por essa rua da farmácia, “se cosendo” na parede...

A ‘Farmácia Maia’ antiga “Torres” era na esquina onde existe hoje a “Paraguassu Festas”.

Aproveitei para perguntar:

O que é que estar havendo mesmo?

Sei não... Estamos apenas cumprindo ordens.

Saímos, seguindo os conselhos do jovem. É sempre bom seguir os conselhos dados por quem tem um pau-de-fogo na mão.

A fuzilaria continuava. Às vezes abrandava um pouco, para recrudescer em seguida. Pelo menos, de munição, parecia haver bom estoque.

Felizmente fomos encontrar tudo em ordem na casa dos tios. Meus três primos, rapazes, estavam em casa quando começara a inana, e lá permaneceram, está visto. Conheci nesta ocasião um rapaz que se tornaria posteriormente meu amigo - Lídio Madureira -, que fora surpreendido pelo tiroteio quando, vindo do Baldo, se dirigia para casa na Gonçalves Dias. Mostrava-se excessivamente nervoso, preocupado com a mãe, dona Nhazinha. Aliás, todos se mostravam naturalmente preocupados e perplexos, e também apreensivos com o que corria lá fora, que ninguém - nós, pelos menos - sabia ao certo o que diabo fosse. (O Dr. Abdon falara em comunismo, mas o número de comunista em Natal daria para fazer uma revolução? Mesmo com a nossa inexperiência achávamos impossível isso). O meu tio, numa preguiçosa, olhava para um e para outro sem conseguir articular uma palavra, coitado. Uma preocupação, pelo menos fora afastada: havia em casa o bastante para as refeições do dia. “Aquilo” não ia durar muito, não era possível. Logo mais cessaria e tudo entraria nos eixos. Era o que pensávamos.

Umas 3 casas depois da 578 ficava a de seu Chico Teófilo, que alguns chamavam a “casa dos 3 anões” (tinha ele 3 filhos anões: Ester, Oscar e Lulu). A casa ficava na esquina da rua João da Mata, onde é hoje uma farmácia. Na calçada, um tanto elevado na extremidade fora postada uma metralhadora. (Ouvi dizer que se tratava duma “metralhadora pesada”, não sei; graças a Deus nunca tive necessidade de entender dessas coisas). A tal metralhadora, apontada para o quartel da Polícia funcionava com eficiência, de quando em quando ouvíamo-lhe o ta-ra-ta-ta duma rajada. (Contam que, a certa altura a um recrudescimento do tiroteio, o Oscar aconselhara ao irmão: - Mano, te abaixa! Ao que Lulu, do alto dos seus setenta e pouco centímetros, retrucara: - Besteira, Oscar. Eu já sou baixo por natureza...!

O certo é que as horas iam se escoando – horas de apreensões para quem não tinha a menor idéia do que significava aquele entrevero. Chegou a hora do almoço, e por pouca que tivesse sido a comida, teria dado de sobra. Quem, naquela situação, teria disposição para encher o bandulho? Nós, homens, vingavamo-nos no cigarro. (Meus primos costumavam comprar cigarros em pacotes – cigarros “ Lulu n.º 2”, produção local da Fábrica Vigilante).

Aí por volta das duas horas da tarde, talvez um pouco antes, o fogo cessou. E cessou mesmo por completo. Um dos primos, chegando à janela, soube por um soldado que viera pedir um pouco d´água, que a Polícia acabava de render-se.

Uma meia hora depois assisti à passagem, pela nossa porta, provavelmente em direção ao quartel do 21, dos integrantes da PM, que haviam resistido até há pouco. Nunca esqueci o espetáculo. Impressionante. Parecia cena de um filme. Um reduzido grupo de homens cabisbaixo, suados, abatidos dentro das fardas sujas, os rostos macilentos mostrando sinais evidentes de cansaço ( Identifiquei, entre eles, alguns componentes da banda de música, que eu conhecera dois anos atrás, quando residira nas proximidades do quartel ). Deveriam estar mesmo exaustos, pois haviam passado a noite inteira e toda a manhã manobrando os seus fuzis, sustentando fogo ininterrupto. E agora ali iam, escoltados, naturalmente cheios de apreensão quanto ao que lhes poderia estar reservado. E deveriam estar, além do mais, famintos. No intimo fiz votos para que nada de mal lhes acontecesse. E creio que não passaram por maiores vexames, apenas ficaram detidos por 2 ou 3 dias.

Cessado o fogo, as ruas foram voltando devagarinho a ter a presença de pessoas, não tantas como de costume, está visto. Bom, tem gente que é exagerada em tudo, até no medo.

Em companhia de dois dos primos, saí para uma voltinha e naturalmente a procura de notícias. Pouca gente nas ruas, evidentemente, mas o bastante para que o jornal “Bocório” fosse dando suas edições extras... Que o movimento estava triunfante, apenas em Santa Catarina e Paraná os inimigos do povo ainda estrebuchavam... Que o Cavaleiro da Esperança assumira o poder... (As “manchetes” eram desse tipo ). A certa altura escutamos um alarido, era um grupo de rapazes a pular, gritando que haviam tomado Panelas... (alguns deles, por gaiatice, traziam na extremidade de uma vara, uma panela de barro...) parecia mais uma troça carnavalesca. No dia em que o brasileiro levar alguma coisa a sério o mundo se acaba.

Na segunda-feira, pela manhã, fui a imprensa oficial, onde a poucos dias começara a trabalhar. Ali encontrei a maior parte dos colegas, mas nenhum sabia mais do que o outro. Ninguém queria se comprometer dando com a língua nos dentes.

Dizem que tiraram um jornal... – disse, já não me lembro quem. (Tirar queria dizer fazer, imprimir).
Pouco depois recebemos ordem para ir embora, até que a situação se normalizasse. Claro que ninguém esperou que a ordem fosse repetida.

A propósito do jornal, “A Liberdade”, foi o mesmo composto e impresso nas oficinas de “A República”, e não na “A Ordem”, como já chegou a ser dito.

(Meses depois, descobri em cima de um armário, na Seção de Avulsos onde trabalhava, uns trezentos ou mais exemplares da “Liberdade”. Procurei obter um, mas o chefe negou. Um dia, aproveitando a ausência do chefe, surrupiei um exemplar. Depois me arrependi. Mas me arrependi foi de não ter surrupiado uns dez...).

Agora já não tenho certeza se foi nesse dia ou no imediato, terça, que fomos ao Hospital Juvino Barreto visitar um conhecido nosso – Joaquim Barbosa – soldado da Polícia, que fora ferido no assédio ao quartel. O ferimento, felizmente, não era grave, o Joaquim ficou apenas com um braço ligeiramente defeituoso e foi reformado como cabo. Mais tarde foi trabalhar na B. Naval, de onde já deve ter-se aposentado.

Quando deixávamos o Hospital, vinham trazendo numa padiola um rapaz, vítima de peixeirada lá pras bandas da Redinha. Conhecia-o de vista era filho do alfaiate Joca Lira. Integralista ardoroso, imprudentemente entrara a discutir com um adepto da revolução, que o ferira mortalmente. Outro que morreu entre o sábado e o domingo, atingido propositadamente por arma de fogo, foi o agente da Costeira, Otacílio Werneck. Morava numa casa nas proximidades da igreja do Bom Jesus. Chegara ao portão, para saber o que estava ocorrendo, quando o alvejaram. Conheci esse meu xará – como ao outro – apenas de vista. De civis mortos, só me recordo destes.

Parece-me que foi também na segunda-feira que os bondes da Força e Luz passaram a cobrar pela metade o preço das passagens, ou seja, um tostão (100 réis). É que houve, na calçada do quartel do 21, distribuição de gêneros ( feijão, charque e farinha ) aos pobres.

Quanto aos exemplares de “Liberdade” de que já falei, não sei que destino lhes deram, creio que foram destruídos.

...E eis aí, meu caro Cortez, o meu modesto depoimento. Espremendo não dá quase nada – mas eu lhe avisei que tinha muito pouco para contar.

Uns sete anos depois, em Aracaju fui apresentado a um cidadão.

- Ah, o senhor é da terra do comunismo, hein?

Tentei esclarecer que Natal não era propriamente terra do comunismo, que houvera uma revolução de caráter comunista, é certo, mas engrossada pelos adversários do governo recém-empossado – e coisa e tal.

Não venha me dizer que aquilo ali não é um ninho de comunistas. Se chegaram até a fazer passeata de freiras nuas... foi ou não foi?

Desmenti a balela. O homem insistia:

Mas se eu li nos jornais!

Resolvi sair pela tangente da ironia misturada com a galhofa:

Bem parece que cogitaram disso, mas o número de freiras lá era muito reduzido, e como não fosse possível mandar buscar as de Aracaju, desistiram da idéia.

O olhar que o sujeito botou pra mim era como se dissesse:

Vá ver que você é um “deles”...

A revolução praticamente terminou na quarta-feira, à semelhança do carnaval. Foi quando apareceu, sobrevoando a cidade, um avião se não me engano da Marinha. ( O M. da Aeronáutica seria criado 5 anos mais tarde). Aí houve a debandada, o salve-se quem puder.

Depois, foi a repressão. E aí surgiram as delações, as denúncias abjetas, asquerosas. Alguns, moralmente, se engrandeceram. Outros, ao contrário, se apequenaram no afã deletério e torpe de destruir desafetos ou simples adversários políticos. Mas isso já são outros quinhentos.

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