Comentário
ao Artigo 22º
O
artigo 22 da Declaração Universal dos Direitos Humanos
estabelece princípios de grande relevância:
-
toda
pessoa tem direito à seguridade social; o que legitima
esse direito de cada pessoa é o fato da condição de
membro da sociedade;
-
a seguridade
social é destinada a promover a satisfação dos direitos econômicos,
sociais e culturais;
-
esses
direitos econômicos, sociais e culturais são definidos como indispensáveis
à dignidade humana e ao desenvolvimento da personalidade de toda
pessoa;
-
cada
Estado deve prover esses direitos, de acordo com sua organização
e nos limites de seus recursos; a cooperação internacional é devida
para que se assegurem a todas as pessoas os direitos proclamados
no artigo.
O
ALCANCE E O SUBSTRATO DO ARTIGO 22
Este
artigo consagra a solidariedade social como elo que deve cimentar
as relações humanas. Protege as pessoas contra uma organização
econômico-social que se funde no egoísmo e no individualismo.
Destaca de tal forma a importância da seguridade social que empenha
todos os povos no dever de assegurá-la por meio da cooperação
internacional.
DUAS
POSSIBILIDADES DE EXEGESE DO ARTIGO 22
As
duas possibilidades são: a simplesmente literal e a que transpõe
a literalidade para abarcar as dimensões histórica, sistemática,
teleológica, axiológica, fenomenologica, sociológica e política
do enunciado.
Podemos
ler de duas formas o artigo 22, como podemos ler de duas formas
qualquer outro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos:
-
ater-nos ao texto expresso, ao significado gramatical dos vocábulos,
numa exegese meramente literal;
-
ir fundo na compreensão do artigo, buscar toda a amplitude de
sua significação, entender todas as suas consequências, numa exegese
racional, filológica, histórico - evolutiva, orgânica, teleológica,
axiológica, fenomenológica, sociológica e política.
Esta
segunda alternativa de trabalho exige do jurista, a meu ver, dois
saltos qualitativos:
-
de uma hermenêutica fundada na lógica formal para uma hermenéutica
fundada na lógica substancial;
-
de uma exegese fria, individualista, descomprometida, para uma
exegese militante, finalista, progressista, que jogue um papel
relevante como instrumento de transformação social.
Tentaremos,
neste artigo, dar pistas ao leitor, de modo que, com o complemento
de outras leituras, possa optar pela segunda alternativa de interpretação.
OS
VALORES ÉTICOS DE QUE ESTÁ IMPREGNADO O ARTIGO 22
Para
iniciar o caminho exegético a que nos propomos, creio que devemos
começar por identificar os valores éticos presentes no artigo
22 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Numa
síntese dos “valores éticos” presentes no artigo, parece-me que
podemos arrolar, fundamentalmente, 05 seguintes:
a
dignidade da pessoa humana;
a
dignificação do trabalho;
a
solidariedade universal e a fraternidade;
a
justiça;
a
igualdade;
a
liberdade.
A
I)IGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A
dignidade da pessoa humana é o valor ético que a
inspiração radical ao artigo 22 da Declaração
Universal dos Direitos Humanos.
Toda
pessoa é membro da sociedade, em razão da dignidade
que é inerente a ela. Seria incompatível com o
reconhecimento dessa dignidade admitir que pessoas
vivessem isoladas, sem vínculo de comunhão.
A
dignidade da pessoa humana impõe, como conseqüência,
o livre desenvolvimento da personalidade.
Os
direitos econômicos, sociais e culturais devem ser providos, como
o próprio artigo diz, em razão da dignidade da pessoa humana.
Negaria a crença na dignidade da pessoa humana relegar as pessoas
à própria sorte, cuidando cada um de si. Afronta a dignidade humana
defender um modelo de Estado e de sociedade que se abstém de prover
os direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à salvaguarda
do substrato humano dos seres.
A
dignificação do trabalho é outro “valor ético” fortemente enraizado
no artigo 22 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A
seguridade social é afirmada e postulada como decorrência da grandeza
do trabalho. Pelo trabalho os seres humanos contribuem para a
construção da morada humana. A contrapartida dessa contribuição
dos indivíduos, na obra coletiva, é a responsabilidade do corpo
social no provimento da seguridade social.
O
sistema de seguridade social, sob a responsabilidade do Estado
e da sociedade, não é, pois, favor ou esmola, que viesse a socorrer
os que não podem, de seu próprio bolso, satisfazer as necessidades
de ordem econômica, social e cultural. Muito pelo contrário, o
provimento da seguridade social é imperativo. Usufruir dessa seguridade
é direito humano fundamental.
A
SOLIDARIEDADE UNIVERSAL E A FRATERNIDADE
A
solidariedade universal é princípio ético expressamente contemplado
no artigo 22, visto que a cooperação internacional” é afirmada
como meio para alcançar a seguridade social, em favor de todos
os seres humanos. Atrás dessa cooperação internacional explícita
está o valor implícito que lhe dá significação e força, qual seja,
a fraternidade humana.
A
JUSTIÇA
A
justiça é outro valor presente nas significações últimas
do artigo 22. Segundo o ensino clássico, a justiça
explicita-se de três maneiras fundamentais:
-
como justiça comutativa;
-
como justiça distributiva;
-
como justiça geral, social ou legal.
A
justiça comutativa exige que cada pessoa dê a outra o
que lhe é devido. A justiça distributiva manda que a
sociedade dê a cada particular o bem que lhe é devido.
A justiça geral, social ou legal determina que as
partes da sociedade dêem à comunidade o bem que lhe é
devido.
Para
os propósitos desta nossa reflexão, gostaríamos de
desdobrar a justiça em dois aspectos apenas: a justiça
sob o aspecto particular e a justiça sob o aspecto
social.
A
justiça sob o aspecto particular é a justiça comutativa.
A
justiça sob o aspecto social é tanto a justiça distributiva como
a justiça geral ou legal.
Dentro
dessa colocação, a “justiça social” é a realização do valor “justiça”,
no âmbito das relações sociais. É a justiça que se efetiva quando
a sociedade proporciona a cada particular o bem que lhe é devido
e cada particular também dá à sociedade o bem que lhe é devido.
E a justiça no seu sentido macro, em oposição às explicitações
da justiça no plano das relações interindividuais.
A
“seguridade
social” decorre do dever de provimento da justiça distributiva
e da justiça social.
A
IGUALDADE
Também
o valor “igualdade” inspira o artigo 22 da Declaração Universal
dos Direitos Humanos. Não se estabelece que a seguridade social
seja reconhecida em favor de algumas pessoas. Diversamente de
uma colocação restritiva, o que se tem é a proclamação do direito
universal à seguridade social.
Todos
os seres humanos necessitam de segurança. Todos os
seres humanos têm o direito de ser protegidos do medo e
sobretudo do medo do abandono, do medo de passar
necessidade e privações nos momentos mais difíceis da
vida.
O
artigo 22 reconhece essa igualdade de todos 05 seres humanos,
essa identidade espiritual das pessoas quando não tolera qualquer
discriminação no que tange à prestação da seguridade social.
A
LIBERDADE
O
valor “liberdade” também está sustentado pelo artigo 22 da Declaração
quando este artigo estabelece um nexo entre a “fruição dos direitos
econômicos, sociais e culturais” e o “livre desenvolvimento da
personalidade humana”.
A
liberdade não é uma quimera, não é uma simples
palavra, mas uma realidade efetiva que se radica no
contexto de uma ordem econômica, social e cultural
igualitária.
RADICAÇÃO
HISTÓRICA DOS VALORES ÉTICOS APONTADOS
Todos
esses valores éticos, que dão base ao artigo 22 da
Declaração Universal, têm toda uma tradição na
ancestral história humana.
Devido
aos propósitos deste ensaio, que é o de integrar urna coletânea
de comentários sobre os trinta artigos da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, nós nos referiremos apenas ao exame histórico
do valor ético básico que justifica o artigo 22 da Declaração,
qual seja, a “dignidade da pessoa humana
No
Velho Testamento, o ponto alto da Criação é a
humanidade — homem e mulher —, ambos criados à
imagem e semelhança de Deus.
O
pesquisador inglês J. B. Danquah debruçou-se sobre a primitiva
cultura Akan, de Gana, na África, e recolheu um provérbio que
mostra justamente a idéia da dignidade humana, com realce dos
mais fracos, afirmando que: “Tamanho ou força não devem servir
para oprimir a milenar civilização chinesa, por intermédio do
confucionismo, mandava amar o que o povo ama e detestar o que
ele detesta. Primeiro vem o povo. É o que mais importa. Depois
é que vem o Estado.
Em
diversas sociedades da África negra, o apreço das respectivas
culturas pela dignidade humana revela-se na organização social,
na qual a velhice era considerada e respeitada. Ver, a propósito,
Marc Abélês e Pierre Bonte.
Na
cultura grega clássica, Sófocles afirmava que há
muitas maravilhas neste mundo. A maior de todas, porém,
é o homem.
Na
Alemanha, no final do século XVIII, F. von Schiller
afirmava que tudo pode ser sacrificado ao bem do Estado,
exceto aquelas coisas a que o Estado serve como meio.
No
Japão moderno, em meio à conflagração da Segunda Guerra Mundial,
Kiyoshi Kiyosawa escrevia que a preocupação da educação no futuro
seria a de criar uma atitude de oposição à idéia de Estado como
ser supremo e absoluto, a cujas razões — razões de Estado — nem
todos deveríamos nos submeter.
Entre
os astecas, civilização que floresceu no México, o reconhecimento
da dignidade humana integrava os valores da educação, segundo
nos revela um grupo de pesquisadores da Unesco dirigido por Jeanne
Hersch.
Respeitar
os outros, consagrar-se ao que era bom e justo, evitar o mal,
a depravação e a cupidez, fugir da injustiça e de sua força —
tais eram os preceitos da educação asteca, segundo uma tradição
do século XV.
Em
Cuba, José Marti dizia, na segunda metade do século passado, que
o Estado ou se fundava no amor apaixonado da dignidade humana,
ou não valia uma só gota de sangue de seus heróis, nem uma única
lágrima de suas mulheres.
O
ARTIGO 22 DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
E
A CONSTITUIÇÃO I)A REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
Os
“direitos sociais” integram, na Constituição da
República Federativa do Brasil, o Título II, que trata
dos “direitos e garantias fundamentais”.
Assim,
já pela colocação dos “direitos sociais no elenco dos “direitos
e garantias fundamentais”, a Constituição dá aos “direitos sociais
a relevância que merecem.
Os
“direitos sociais” estão definidos e enumerados no
Capítulo II do Título II da Constituição.
O
primeiro artigo do capítulo dos Direitos Sociais começa dizendo
que são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer,
a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e
à infância e a assistência aos desamparados.
Em
seguida, a Constituição passa a enumerar os direitos dos trabalhadores
urbanos e rurais, prevenindo que essa enumeração não exclui outros
direitos que visem à melhoria de sua condição social.
Outros
artigos e princípios, no conjunto da Constituição,
proporcionam sustentação à “seguridade social”, como definida
pelo artigo 22 da Declaração Universal dos Direitos Humanos: a
dignidade humana e os valores sociais do trabalho, colocados como
fundamento da República (artigo 1º); a construção de uma sociedade
livre, justa e solidária, a promoção do bem de todos e a erradicação
da marginalização, estabelecidos como objetivos da República (artigo
3º).
Como
se vê, a Constituição brasileira sufragou, plenamente, o conteúdo
do artigo 22 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A
NEGAÇÃO DO ARTIGO 22 PELO PROJETO DE GLOBALIZAÇÃO
NEOLIBERAL
O
projeto de globalização da economia tem colocado, como premissa,
a necessidade que os países têm de produzir para exportar.
Dentro
desse modelo, subordina-se o trabalho, no hemisfério dos países
pobres, ao domínio da economia internacional. Prega-se, abertamente,
a abdicação de direitos trabalhistas para preservação do emprego.
A tese é apresentada
como dogma, como fundamento da ordem econômica, tendo em seu socorro
todo o poder da grande imprensa nacional e internacional.
Correntes
jurisprudências têm acolhido os argumentos que pretendem transigir
com a renúncia de conquistas históricas dos trabalhadores. Tudo
em homenagem a projetos econômicos que não têm qualquer compromisso
com a preservação da dignidade da pessoa humana e os destinos
do Brasil.
CONCLUSÃO
Em
face da deterioração de princípios, que apontamos no item anterior,
pareceu-nos caber, como tentamos fazer; uma reflexão que aprofundasse
o entendimento do artigo 22 da Declaração Universal dos Direitos
Humanos.
Primeiramente,
buscamos realizar um mergulho no sentido último dos
princípios agasalhados.
Depois
percorremos as fontes éticas inspiradoras e
justificadoras do conteúdo essencial do artigo que nos
coube examinar.
João
Baptista Herkenhoff — Escritor; Livre-Docente da
Universidade Federal do Espírito Santo e membro da
Comissão Brasileira de Justiça e Paz.
A lei é a mesma para todo
mundo, deve ser aplicada da mesma maneira para todos, sem distinção.
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