Comentário
ao Artigo 9º
Ninguém
será arbitrariamente preso, detido ou exilado.
LIBERDADE,
CONVIVÊNCIA E PROTEÇÃO DA PESSOA
A
pessoa que não tiver a proteção de seus direitos efetivamente
assegurada está correndo o risco de perder sua vida, sua dignidade,
sua integridade física e psíquica e todos os bens e direitos inerentes
à sua condição humana. Isso pode ocorrer, com maior possibilidade,
com a pessoa arbitrariamente presa ou detida, subtraída à proteção
e á vigilância das autoridades públicas, da sociedade, de seus
familiares e amigos. Essa pessoa poderá sofrer toda sorte de violência
e degradação, tornando-se vítima indefesa nas mãos de indivíduos
violentos e boçais, desprovidos de consciência ética.
Em
situação de risco estará também aquele que sofrer exílio arbitrário,
pois estará igualmente fora da proteção das leis e das autoridades
de seu país, sem qualquer garantia de que sua vida e sua dignidade
humana serão respeitadas, uma vez que sendo arbitrariamente exilado
não haverá a certeza de contar com a proteção das leis e das autoridades
do local do exílio. E faltará também a proteção que resulta do
simples fato da Convivência normal com pessoas livres.
Considerando
tais situações e 05 riscos concretos que elas implicam, a Declaração
Universal dos Direitos Humanos contém uma grave advertência em
seu artigo 9º, cuja redação, sucinta e objetiva, é a seguinte:
“Ninguém poderá ser detido, preso ou exilado arbitrariamente”.
Não se nega que a pessoa que praticou ou está praticando atos
anti-sociais, prejudicando ou pondo em risco o direito á vida
e à integridade física, psíquica e moral de outras pessoas poderá
ser presa, para proteção da sociedade. Entretanto, o que não se
pode admitir é que uma pessoa perca sua liberdade como vítima
de ação arbitrária, sem obediência às leis, sem respeito aos direitos
e à dignidade humana, sem direito de defesa e sem qualquer proteção.
A restrição à liberdade de locomoção e a subtração de uma pessoa
à convivência humana só poderá ocorrer fl05 casos expressamente
previstos em lei, devendo ser rigorosamente observadas todas as
formalidades que a lei determina, não se podendo, nesse caso,
ampliar o alcance da lei mediante interpretação elástica ou aplicação
por extensão ou analogia.
RESTRIÇÕES ARBITRÁRIAS À LIBERDADE FÍSICA
Por
mais cuidadoso que seja o tratamento legal da questão do aprisionamento
de pessoas e por mais rigorosas que sejam as autoridades responsáveis
pelos presídios de todas as espécies, o fato é que uma pessoa
presa, isolada da sociedade, está fragilizada a um ponto extremo,
ficando muito próxima da situação de escravidão. O isolamento
da pessoa num local de aprisionamento coloca-a à mercê de seus
carcereiros, tornando-se fácil a ocorrência de violências físicas
e verbais, além da anulação da intimidade e da exposição da pessoa
a condições e a práticas degradantes.
A
rigor, pode-se dizer que, quando uma pessoa é encarcerada, todos
os seus direitos são afetados, mesmo quando a prisão é regular,
os presídios são de bom nível e há mais respeito pela pessoa do
encarcerado. As ofensas aos direitos do preso são muito mais graves
nos sistemas prisionais em que as celas são superlotadas, a saúde
do preso não merece qualquer cuidado, não lhe são dadas as possibilidades
mínimas de aprimorar sua educação, sendo esta impedida ou extremamente
dificultada, não há oportunidades de trabalho, não existem espaços
adequados para arejamento, exercícios físicos, recreação e lazer
e, pior que tudo, a preservação dos laços afetivos com familiares
e amigos é extremamente dificultada.
Tudo
isso é ainda mais agravado quando a restrição à liberdade de locomoção
é imposta arbitrariamente, pois nesse caso o desrespeito à pessoa
do preso ou detido e de seus direitos já está implícito no ato
de prisão ou detenção, além do que, nesse caso, existe também
o pressuposto de que não serão respeitadas as normas legais sobre
as condições do encarceramento. Com efeito, quem pratica a violência
inicial, efetuando a prisão ou detenção de modo ilegal, certamente
não irá preocupar-se com o respeito à lei no tratamento que daí
por diante será dispensado à vítima dessa arbitrariedade.
Por
todos esses motivos, há séculos já se tem manifestado a preocupação
com as restrições à liberdade física da pessoa e com as consequências
que daí decorrem. Foi exatamente por isso, visando coibir violências
e abusos de várias espécies que vinham ocorrendo na sequência
de detenções arbitrárias, que o Parlamento Britânico aprovou,
em 26 de maio de 1679, o HabeasCorpus Amendrnent Act, que, entre
outras coisas, determinava que fosse assegurado a toda pessoa
detida sem condenação, ou a quem falasse por ela, o direito de
pedir a qualquer juiz, em qualquer tempo, que ordenasse a imediata
apresentação do detido às autoridades competentes, com as razões
da detenção. Desse modo, através do habeas corpus, muitas vidas
foram salvas e muitas violências foram impedidas.
Nos
tempos modernos, o habeas corpus foi incorporado ao sistema jurídico
de proteção da pessoa humana e de seus direitos fundamentais,
sendo, hoje como há séculos, um dos mais importantes instrumentos
de defesa da liberdade. E sua finalidade é precisamente impedir
a continuação de uma detenção ou prisão arbitrária e, por extensão
operada por meio de normas constitucionais e dispositivos legais,
coibir toda restrição ilegal ao direito de locomoção.
Quanto
ao exílio, pena que nos dias de hoje quase que só se aplica a
perseguidos políticos, é uma forma de punição que também só pode
ser admitida se houver previsão legal, não se devendo aceitar
como lei uma regra imposta arbitrariamente por um governo totalitário,
O exílio pode ser para fora do território nacional, dependendo
sua execução, nesse caso, de que um governo estrangeiro aceite
receber o exilado. Normalmente, o exilado vive fora de seu país
com grande dificuldade, pois não tem o apoio, material e afetivo,
de parentes e amigos e fica sujeito a viver em situação de marginalidade,
impossibilitado de obter um trabalho regular.
Tem-se
também a hipótese do exílio local, para determinada região do
território do próprio Estado que impõe a pena. Também nesse caso
o exilado fica desprotegido, não tendo, de modo geral, a possibilidade
de contar com o apoio próximo de familiares e amigos e de obter
trabalho. Por tudo isso é absolutamente indispensável que a imposição
da pena, onde ela existir, tenha por base urna lei anteriormente
aprovada por um órgão legislativo democraticamente escolhido,
assegurado o direito de defesa e observados todos os procedimentos
que a lei exigir.
NORMAS
INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO DA LIBERDADE FISICA
Com
base no artigo 9º da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
reiterando e tornando mais específica a proclamação de que “ninguém
será arbitrariamente preso, detido ou exilado”, seguiram-se vários
instrumentos normativos internacionais, com a natureza de compromissos
jurídicos, que se incorporaram ao direito positivo dos Estados
signatários.
O
Pacto de Direitos Civis e Políticos, aprovado pela ONU em 1966,
formalmente integrado ao direito positivo brasileiro pelo Decreto
n.º 592, de 6 de julho de 1992, dedica ao tema da liberdade e
segurança pessoais o seu artigo 9º, que compreende vários itens.
Além da reafirmação de que ninguém poderá ser preso ou detido
arbitrariamente, ali se estabelecem algumas regras de grande
importância, que podem ser assim sintetizadas: ninguém poderá
ser privado da liberdade a não ser com base em lei previamente
existente e obedecidos os procedimentos legalmente estabelecidos;
toda pessoa detida ou presa deverá ser informada imediatamente
das razões da restrição à liberdade; a pessoa presa ou encarcerada
sob acusação ou suspeita de infração penal deverá ser imediatamente
apresentada a um juiz; toda pessoa detida ou presa deverá ter
o direito de recorrer a um juiz ou tribunal para que este decida
quanto à legalidade da restrição à liberdade e determine a imediata
soltura se houver ilegalidade; qualquer pessoa vítima de prisão
ou encarceramento ilegal terá direito á reparação.
Na
mesma linha dispôs a Convenção Americana sobre Direitos Humanos
(Pacto de San José da Costa Rica), de 1969, incorporada ao direito
positivo brasileiro pelo Decreto n.º 678, de 6 de novembro de
1992. Q artigo 7º dessa Convenção praticamente reproduz as disposições
do artigo 9º do Pacto de Direitos Civis e Políticos, há pouco
referido. Assim, portanto, por meio desses dois instrumentos normativos
internacionais de direitos humanos, dá-se eficácia jurídica, no
Brasil, à proibição de prisão, detenção ou exílio arbitrários
contida na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A
LIBERDADE INDIVIDUAL NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
É
antiga praxe no Brasil efetuar a prisão arbitrária de pessoas,
o que em 51 mesmo já é uma violência. Essas prisões ocorrem muitas
vezes por manifesto abuso de autoridade, baseadas em simples suspeita,
não sendo exagero afirmar que para muitos policiais brasileiros
“todo indivíduo negro e pobre é suspeito até prova em contrário.
São também muito comuns as detenções arbitrárias rotuladas de
“prisão para averiguações, sem nenhum fundamento legal. Em todos
esses casos, o detido ou preso é submetido a violências físicas
e a humilhações, sendo forçado a permanecer encarcerado em condições
degradantes, incompatíveis com a dignidade da pessoa humana.
Nenhuma
detenção OU prisão poderá ser legalmente efetuada no Brasil se
não obedecer estritamente anormal do artigo 5º, inciso LIV, da
Constituição, segundo o qual “ninguém será privado da liberdade
ou de seus bens sem o devido processo legal”. Um dado de grande
importância do ponto de vista jurídico é a obrigação de obedecer
ao disposto no parágrafo 2º desse artigo 5º, que assim dispõe:
“Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados,
ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do
Brasil seja parte”. Como fica bem claro, as normas sobre direitos
e garantias constantes em tratados em que o Brasil seja parte
completam as disposições do artigo 5~ e neste se integram, incorporando-se,
portanto, ao sistema constitucional brasileiro de direitos e garantias
individuais.
Dessa
forma, por força do que dispõem o Pacto de Direitos Civis e Políticos,
no artigo 99, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos,
em seu artigo 79, toda prisão ou detenção deverá ser prontamente
comunicada a um juiz, que decidirá da legalidade do encarceramento
e determinará a imediata soltura se o cerceamento da liberdade
for ilegal.
Toda
prisão ou detenção de uma pessoa afeta direitos fundamentais e
impõe sofrimentos físicos, psíquicos e morais. Por isso, e para
que sejam evitados injustiças e outros prejuízos graves, é indispensável
a estrita obediência ao preceito do artigo 9º da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, não se admitindo a detenção ou prisão arbitrária
de uma pessoa, punindo-se o responsável ou os responsáveis por
um abusivo encarceramento sem fundamento legal ou desrespeitando
os procedimentos legalmente exigidos, inclusive a imediata informação
a uma autoridade judiciária.
Dalmo
de Abreu Dallari — Professor Titular da Faculdade de Direito da
USP; Vice-Presidente da Comissão Internacional de Juristas;
Ex-Presidente da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São
Paulo.
A lei é a mesma para todo
mundo, deve ser aplicada da mesma maneira para todos, sem distinção.
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