Hora
de valorização da política
Raimundo
Santos*
Já
ali se via que o único caminho a seguir era o da política. Não
prosperaram nem a palavra-de-ordem enfurecida da retaliação nem
as justificativas de que os atentados expressavam atos defensivos
dos mais débeis. Logo teve curso, na Europa, em muitas partes,
nos EUA, uma tensa “guerra de posições”, desenvolvida por
lideranças políticas, governamentais, personalidades e
autoridades religiosas, partidos e opinião pública, que se
investiram de responsabilidade maior pelo mundo, primeiro, para
fazer com que os fatos não nos governassem, como dizia o
comunista italiano autor daquele conceito, falando de situações
adversas. Em lugar da vingança que só levaria ao extermínio de
populações e a radicalizar o irracionalismo buscado pelas explosões,
uma ação, aos poucos concertada, procurou dar direção aos
acontecimentos e se começou a falar de individualizar e punir os
autores e os mandantes dos crimes terroristas. Tornadas a segurança
e a proteção à vida bens de todos -- nas milhares de mortes de
11 de setembro --, começou-se a falar na urgência de se efetivar
uma ampla frente mundial contra o terrorismo, definida como uma
luta também do interesse, e com sua participação, dos povos do
Oriente, cujas civilizações, cultura e religiões compõem o
universo da mesma e única humanidade em busca de vida civil,
democracia e justiça social.
Com
muita nitidez, Massino D’Alema afirmou, em 23 de setembro último,
que “a verdade é que paz, tolerância, diálogo religioso são
os valores da democracia, da Europa, da América, mas não são
exclusivamente valores nossos. São também os profundos valores
compartilhados além dos confins históricos e culturais do
Ocidente. Ai de nós,
se julgássemos aqueles princípios dentro de uma fortaleza
assediada. Faríamos o jogo dos bárbaros e dos assassinos. É
preciso entender que o mundo islâmico, em sua esmagadora maioria,
é a primeira vítima do fanatismo. As bombas e as destruições
também o atingiram. Elas são tentativas de bloquear os países e
os povos do Islam no caminho para uma política aberta e pacífica”.
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Logo
após o 11 de setembro, foram estimuladas ações políticas para
evitar mais destruição e mortes – “No more victims anywhere”!,
como bem o dizia um cartaz de um manifestante pacifista em Boston
–, como aquelas para se apressar a retomada imediata das
tratativas de paz entre Peres e Arafat. Esta reaproximação já
mostrava que era possível criar outras iniciativas, como aquelas
que se fazem necessárias para descriminalizar e tirar do
isolamento povos distantes acossados por tensões, conflitos,
agressões militares e pelas agruras da miséria e da fome,
trazendo-os para a frente comum contra o terrorismo e a guerra e
sobremaneira para a luta pela democracia. Trabalhou-se rapidamente
na direção contrária à lógica perversa que o terrorismo
queria impor. Pôs-se em marcha antigos e novos movimentos de luta
pela paz e por soluções negociadas, reativando-se tradições
que, no passado mais distante, não incentivavam o choque entre
civilizações nem, após 1989, estimulavam ações antiamericanas
que viessem alimentar retrocessos no mundo do pós-Guerra Fria. Em
lugar disso, viu-se muitas áreas políticas e culturais
movendo-se rapidamente em busca de um compartilhamento dos
assuntos mundiais tragicamente tensionados em 11 de setembro, no
contexto dos organismos internacionais.
Dentre
as variadíssimas manifestações desses nossos dias para
interferir e evitar a guerra, vem se notando a presença de uma
tendência que vinha abrindo caminho num campo político
que reunia o Presidente Clinton em seu último tempo na Casa
Branca e lideranças de governos social-democratas da Europa,
campo que ainda era estimulado pela ação de grandes lideranças
(por exemplo, o Papa visitando Cuba, e, entre outros, Arafat,
inclusive Fernando Henrique Cardoso). Essa tendência torna-se
muito necessária nesta hora em que as explosões de Nova Yorque e
Washington vão acentuar os traços conservadores da administração
Bush – em maior grau, se a opinião pública mundial e a ação
dos governos não conseguirem bloquear a guerra. Cristalizados,
tais traços poderão acarretar conseqüências incalculáveis
para a vida americana e o cenário político mundial, reduzindo os
avanços logrados com o fim da Guerra Fria, fortalecendo a tendência
de substituição da bipolaridade de antes por um novo
unilateralismo. Não controlado o reacionarismo da administração
Bush, a campanha contra o terrorismo corre maior risco de vir
assumir formas de constrangimentos aos direitos humanos e levar ao
esgarçamento das relações entre povos e governos.
A
valorização da política também já vinha tendo uma outra prova
na tentativa de governar a globalização mediante as
experiências social-democratas da Europa. Ante esses
outros “fatos” -- não poucos diziam que a queda do Muro de
Berlin e a globalização eram a “vitória do capitalismo”
ante o qual só cabia levantar a resistência --, formaram-se
largas coalizões, como as da Itália e da França, para abrir
caminho naquela tarefa. Os novos tempos da política chegaram
interpelando experiências a Leste e a Oeste, trabalhando aquilo
que Habermas, em sua reflexão sobre o fim do comunismo, valorizou
como saldo do século passado, que não foi só de guerras: o
reencontro entre o Estado Democrático de Direito e a compreensão,
afinal universalizada, da meta social-democrata da inter-relação
entre economia e sociedade.
Agora,
vê-se melhor a importância desses governos social-democratas,
especialmente de alguns deles – dramaticamente lembrados pelos
acontecimentos de 11 de setembro, tanto pela influência na política
internacional que eles tiveram – no passado recente e nas
primeiras horas e dias imediatamente subseqüentes aos ataques
terroristas –, quanto têm e terão doravante, inclusive
propiciando uma discussão alternativa ao clima intelectual de
catastrofismo que, nos anos 90, acompanharam numerosos estudos e não
poucas interpretações sobre o globalismo. Essas experiências de
governos multipartidários exibem à reflexão suas possibilidades
e seus impasses e fracassos – estes oriundos da excessiva ênfase
na modernização, expressos nos déficits de mudanças favoráveis
ao trabalho e à sociedade em geral. Elas mostram que o homem não
é nem um ser impotente diante da perda do equilíbrio bipolar –
tenso e precário – da política internacional do tempo da
Guerra Fria, nem um ente condenado a ser apenas reativo a um
naturalismo universal que viria por fim à história, sem lhes dar
chance aos homens – como diziam as mentes radicalizadas por
influência do neoliberalismo -- de disputar a direção da
globalização, ou interferir para que ela não tenha curso
reacionário.
A
Internacional Socialista forma parte importante desse renovado
movimento das forças da paz e de busca de “soluções
positivas” – usando uma modesta expressão do comunismo
brasileiro. Ela abriga aquelas correntes que, em governos (por
exemplo, na França e, até há pouco tempo, na Itália) ou fora
deles (por exemplo, na Itália), longe do pessimismo e da atitude
defensista, acreditam que a globalização oferece grandes
possibilidades ao gênero humano e que se pode lutar para evitar
que as suas contradições não acirrem as mazelas sociais e,
inclusive, não releguem povos e nações inteiros ao abandono.
Porisso, não surpreende que os trinta partidos da Internacional
Socialista venham propor, nesta hora perigosamente catastrófica,
a necessidade de se dar ao processo de globalização “uma
orientação democrática para incluir os grandes problemas da
fome, do desenvolvimento sustentado, dos desequilíbrios
Norte-Sul”. Tem-se ainda escutado muitas outras vozes, bem
importantes, também insistindo na discussão da globalização
como uma conquista humana
capaz de generalizar o welfare
state e universalizar o Estado Democrático de Direito a todos
os recantos do Planeta, começando-se por se tomar os
“contingentes devastados”, sobremaneira a África, como uma
responsabilidade mundial, possibilidade já descrita por Habermas
na sua reflexão sobre a queda do Muro de Berlin, em 1990.
Esse
movimento plural também indica a presença de uma esquerda de
origem marxista que vem se afirmando em torno da defesa e da
valorização da política. O discurso atual dessa esquerda não
minimiza a gravidade dos ataques terroristas e a importância de
suas conseqüências na formação de um novo cenário mundial,
nem aceita passivamente sobredeterminações do mercado que viriam
governar homens sem iniciativa e criatividade e rebaixar as
possibilidades do desenvolvimento e das mudanças. Como disse uma
das suas vozes: “Trata-se de saber se os valores da política,
da democracia, da esquerda estão em condição de recuperar o
terreno e de se impor como uma necessidade do futuro” (Massimo
D’Alema). Nesta vertente italiana de antiga raiz comunista, não
se prioriza as indagações sobre uma “lógica do capital” nem
se limita a lhe oferecer apenas resistência, desconhecendo os
acontecimentos de dez anos atrás a Leste e o significado mais
contemporâneo do pluripartidarismo reformador de várias culturas
políticas (católica, republicana, verde, etc.). Essa corrente
procura dar toda conseqüência ao aggiornamento
da sua antiga tradição de política de frente única calcada na
democracia política, como sua contribuição para um largo
movimento pluriclassista de novo tipo que procura desenvolver os
ganhos da globalização e, no curto e médio prazos, luta por
promover muitos avanços, interditando a orientação neoliberal..
No
Brasil, os dois governos de Fernando Henrique Cardoso –
justamente pela excessiva ênfase na estabilização da moeda e no
econômico, travado pela configuração mais de centro-direita da
sua base partidária – têm-se consumido nas modernizações e
perdido o tempo histórico, com isso trazendo custos sociais
elevados. Foram administrações afirmativas do tema da democracia
política e mantiveram a orientação progressista do Itamaraty,
política exterior que, também aqui, agora com os acontecimentos
de 11 de setembro, se qualifica de importância acrescida. Os
gestos do Presidente Fernando Henrique Cardoso – a reunião com
todos os partidos logo após os ataques terroristas, as suas
seguidas declarações sobre a formação misturada do povo
brasileiro, ao estilo do nosso pensamento social, a sua valorização
do multiculturalismo no mundo – indicam um posicionamento que
vem estimulando a ação concertada entre governos, fortalecendo o
campo daqueles que concebem o combate ao terrorismo como uma
campanha promovida no contexto de entendimento, sob a direção da
ONU. Apoiado nessa posição, certamente o Presidente não
acompanhará uma ação militar retaliativa da administração
Bush. O país, pela sua importância econômica e cultural, pode
jogar um papel político relevante como grande liderança
latino-americana democrática. Não ensejando, à propósito da
campanha contra o terrorismo, medidas militares de guerra nem
constrangimentos à vida política e civil das comunidades –
locais ou de extração imigrante – que integram os países
latino-americanos. Aqui, através dessa convergência com Fernando
Henrique Cardoso, as correntes de esquerda e de centro-esquerda e
todos os partidários da paz podem potencializar sua interferência
nesta hora difícil.
O
novo quadro internacional em formação ainda encerra o perigo da
guerra. O seu adiamento, vitória parcial da mobilização da
opinião pública e das ações de lideranças e governos que se
espalhou pelo mundo como uma só voz em solidariedade ao povo
americano e contra o terrorismo, ainda é um primeiro resultado de
uma “guerra de posições”, sujeita a recuos, mas sempre a
exigir preparação para novos avanços. Caso advenha uma ação
militar de guerra no Afeganistão ou em outras partes do mundo, já
as experiências das energias reunidas pela política, nestes dias
que rapidamente nos distanciam dos acontecimentos de 11 de
setembro, dão fé às palavras do Gramsci insurgente ante aquelas
situações em que lhes falta força aos atores e parece que só
temos “Protagonistas os ‘fatos’, por assim dizer, e não os
‘homens individuais’”, citando a frase com a qual ele
apresentava o conceito de “revolução passiva” a partir de
suas reflexões sobre o século XIX, conceito extensivo às revoluções
passivas do século passado e ainda às de nossos dias.
*Raimundo
Santos é autor do livro Caio
Prado Jr. na Cultura Política Brasileira (co-edição Faperj/Mauad)
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