VI
A
Transição em Marcha
Introdução
A
gestação do novo, na história, dá-se, freqüentemente, de modo
quase imperceptível para os contemporâneos, já que suas
sementes começam a se impor quando ainda o velho é
quantitativamente dominante. É exatamente por isso que a
“qualidade” do novo pode passar despercebida. Mas a história
se caracteriza como uma sucessão ininterrupta de épocas. Essa idéia
de movimento e mudança é inerente à evolução da humanidade.
É dessa forma que os períodos nascem, amadurecem e morrem.
No
caso do mundo atual, temos a consciência de viver um novo período,
mas o novo que mais facilmente apreendemos é a utilização de
formidáveis recursos da técnica e da ciência pelas novas formas
do grande capital, apoiado por formas institucionais igualmente
novas. Não se pode dizer que a globalização seja semelhante às
ondas anteriores, nem mesmo uma continuação do que havia antes,
exatamente porque as condições de sua realização mudaram
radicalmente. É somente agora que a humanidade está podendo
contar com essa nova qualidade da técnica, providenciada pelo que
se está chamando de técnica informacional. Chegamos a um outro século
e o homem, por meio dos avanços da ciência, produz um sistema de
técnicas presidido pelas técnicas da informação. Estas passam
a exercer um papel de elo entre as demais, unindo-as e assegurando
a presença planetária desse novo sistema técnico.
Todavia,
para entender o processo que conduziu à globalização atual, é
necessário levar em conta dois elementos fundamentais: o estado
das técnicas e o estado da política. Há, freqüentemente, tendência
a separar uma coisa da outra. Daí nascem as muitas interpretações
da história a partir das técnicas ou da política,
exclusivamente. Na verdade, nunca houve, na história humana,
separação entre as duas coisas. A história fornece o quadro
material e a política molda as condições que permitem a ação.
Na prática social, sistemas técnicos e sistemas de ação se
confundem e é por meio das combinações então possíveis e da
escolha dos momentos e lugares de seu uso que a história e a
geografia se fazem e se refazem continuadamente.
26 — Cultura
popular, período popular
Para
a maior parte da humanidade, o processo de globalização acaba
tendo, direta ou indiretamente, influência sobre todos os
aspectos da existência: a vida econômica, a vida cultural, as
relações interpessoais e a própria subjetividade. Ele não se
verifica de modo homogêneo, tanto em extensão quanto em
profundidade, e o próprio fato de que seja criador de escassez é
um dos motivos da impossibilidade da homogeneização. Os indivíduos
não são igualmente atingidos por esse fenômeno, cuja difusão
encontra obstáculos na diversidade das pessoas e na diversidade
dos lugares. Na realidade, a globalização agrava a
heterogeneidade, dando-lhe mesmo um caráter ainda mais
estrutural.
Uma
das conseqüências de tal evolução é a nova significação da
cultura popular, tornada capaz de rivalizar com a cultura de
massas. Outra é a produção das condições necessárias à
reemergência das próprias massas, apontando para o surgimento de
um novo período histórico, a que chamamos de período demográfico
ou popular (M. Santos, Espaço e sociedade, 1979).
Cultura de
massas, cultura popular
Um
exemplo é a cultura. Um esquema grosseiro, a partir de uma
classificação arbitrária, mostraria, em toda parte, a presença
e a influência de uma cultura de massas buscando homogeneizar e
impor-se sobre a cultura popular; mas também, e paralelamente, as
reações desta cultura popular. Um primeiro movimento é
resultado do empenho vertical unificador, homogeneizador,
conduzido por um mercado cego, indiferente às heranças e às
realidades atuais dos lugares e das sociedades. Sem dúvida, o
mercado vai impondo, com maior ou menor força, aqui e ali,
elementos mais ou menos maciços da cultura de massa, indispensável,
como ela é, ao reino do mercado, e a expansão paralela das
formas de globalização econômica, financeira, técnica e
cultural. Essa conquista, mais ou menos eficaz segundo os lugares
e as sociedades, jamais é completa, pois encontra a resistência
da cultura preexistente. Constituem-se, assim, formas mistas sincréticas,
dentre as quais, oferecida como espetáculo, uma cultura popular
domesticada associando um fundo genuíno a formas exóticas que
incluem novas técnicas.
Mas
há também — e felizmente — a possibilidade, cada vez mais
freqüente, de uma revanche da cultura popular sobre a cultura de
massa, quando, por exemplo, ela se difunde mediante o uso dos
instrumentos que na origem são próprios da cultura de massas.
Nesse caso, a cultura popular exerce sua qualidade de discurso dos
“de baixo”, pondo em relevo o cotidiano dos pobres, das
minorias, dos excluídos, por meio da exaltação da vida de todos
os dias. Se aqui os instrumentos da cultura de massa são
reutilizados, o conteúdo não é, todavia, “global”, nem a
incitação primeira é o chamado mercado global, já que sua base
se encontra no território e na cultura local e herdada. Tais
expressões da cultura popular são tanto mais fortes e capazes de
difusão quanto reveladoras daquilo que poderíamos chamar de
regionalismos universalistas, forma de expressão que associa a
espontaneidade própria à ingenuidade popular à busca de um
discurso universal, que acaba por ser um alimento da política.
No
fundo, a questão da escassez aparece outra vez como central. Os
“de baixo” não dispõem de meios (materiais e outros) para
participar plenamente da cultura moderna de massas. Mas sua
cultura, por ser baseada no território, no trabalho e no
cotidiano, ganha a força necessária para deformar, ali mesmo, o
impacto da cultura de massas. Gente junta cria cultura e,
paralelamente, cria uma economia territorializada, uma cultura
territorializada, um discurso territorializado, uma política
territorializada. Essa cultura da vizinhança valoriza, ao mesmo
tempo, a experiência da escassez e a experiência da convivência
e da solidariedade. É desse modo que, gerada de dentro, essa
cultura endógena impõe-se como um alimento da política dos
pobres, que se dá independentemente e acima dos partidos e das
organizações. Tal cultura realiza-se segundo níveis mais baixos
de técnica, de capital e de organização, daí suas formas típicas
de criação. Isto seria, aparentemente, uma fraqueza, mas na
realidade é uma força, já que se realiza, desse modo, uma
integração orgânica com o território dos pobres e o seu conteúdo
humano. Daí a expressividade dos seus símbolos, manifestados na
fala, na música e na riqueza das formas de intercurso e
solidariedade entre as pessoas. E tudo isso evolui de modo inseparável,
o que assegura a permanência do movimento.
A
cultura de massas produz certamente símbolos. Mas estes, direta
ou indiretamente ao serviço do poder ou do mercado, são, a cada
vez, fixos. Frente ao movimento social e no objetivo de não
parecerem envelhecidos, são substituídos, mas por uma outra
simbologia também fixa: o que vem de cima está sempre morrendo e
pode, por antecipação, já ser visto como cadáver desde o seu
nascimento. É essa a simbologia ideológica da cultura de massas.
Já
os símbolos “de baixo”, produtos da cultura popular, são
portadores da verdade da existência e reveladores do próprio
movimento da sociedade.
As condições
empíricas da mutação
É
a partir de premissas como essas que se pode pensar uma reemergência
das massas. Para isso devem contribuir, a partir das migrações
políticas ou econômicas, a ampliação da vocação atual para a
mistura intercontinental e intranacional de povos, raças, religiões,
gostos, assim como a tendência crescente à aglomeração da
população em alguns lugares, essa urbanização concentrada já
revelada nos últimos vinte anos.
Da
combinação dessas duas tendências pode-se supor que o processo
iniciado há meio século levará a uma verdadeira colorização
do Norte, à “informalização” de parte de sua economia e de
suas relações sociais e à generalização de certo esquema dual
presente há mais de meio século nos países subdesenvolvidos do
Sul e agora ainda mais evidente.
Tal
sociedade e tal economia urbana dual (mas não dualista) conduzirão
a duas formas imbricadas de acumulação, duas formas de divisão
do trabalho e duas lógicas urbanas distintas e associadas, tendo
como base de operação um mesmo lugar. O fenômeno já entrevisto
de uma divisão do trabalho por cima e de uma outra por baixo
tenderá a se reforçar. A primeira prende-se ao uso obediente das
técnicas da racionalidade hegemônica, enquanto a segunda é
fundada na redescoberta cotidiana das combinações que permitem a
vida e, segundo os lugares, operam em diferentes graus de
qualidade e de quantidade.
Da
divisão do trabalho por cima cria-se uma solidariedade gerada de
fora e dependente de vetores verticais e de relações pragmáticas
freqüentemente longínquas. A racionalidade é mantida à custa
de normas férreas, exclusivas, implacáveis, radicais. Sem obediência
cega não há eficácia. Na divisão do trabalho por baixo, o que
se produz é uma solidariedade criada de dentro e dependente de
vetores horizontais cimentados no território e na cultura locais.
Aqui são as relações de proximidade que avultam, este é o domínio
da flexibilidade tropical com a adaptabilidade extrema dos atores,
uma adaptabilidade endógena. A cada movimento novo, há um novo
reequilíbrio em favor da sociedade local e regulado por ela.
A
divisão do trabalho por cima é um campo de maior velocidade.
Nela, a rigidez das normas econômicas (privadas e públicas)
impede a política. Por baixo há maior dinamismo intrínseco,
maior movimento espontâneo, mais encontros gratuitos, maior
complexidade, mais riqueza (a riqueza e o movimento dos homens
lentos), mais combinações. Produz-se uma nova centralidade do
social, segundo a fórmula sugerida por Ana Clara Torres Ribeiro,
o que constitui, também, uma nova base para a afirmação do
reino da política.
A precedência
do homem e o período popular
Uma
outra globalização supõe uma mudança radical das condições
atuais, de modo que a centralidade de todas as ações seja
localizada no homem. Sem dúvida, essa desejada mudança apenas
ocorrerá no fim do processo, durante o qual reajustamentos
sucessivos se imporão.
Nas
presentes circunstâncias, conforme já vimos, a centralidade é
ocupada pelo dinheiro, em suas formas mais agressivas, um dinheiro
em estado puro sustentado por uma informação ideológica, com a
qual se encontra em simbiose. Daí a brutal distorção do sentido
da vida em todas as suas dimensões, incluindo o trabalho e o
lazer, e alcançando a valoração íntima de cada pessoa e a própria
constituição do espaço geográfico. Com a prevalência do
dinheiro em estado puro como motor primeiro e último das ações,
o homem acaba por ser considerado um elemento residual. Dessa
forma, o território, o Estado-nação e a solidariedade social
também se tornam residuais.
A
primazia do homem supõe que ele estará colocado no centro das
preocupações do mundo, como um dado filosófico e como uma
inspiração para as ações. Dessa forma, estarão assegurados o
império da compaixão nas relações interpessoais e o estímulo
à solidariedade social, a ser exercida entre indivíduos, entre o
indivíduo e a sociedade e vice-versa e entre a sociedade e o
Estado, reduzindo as fraturas sociais, impondo uma nova ética, e,
destarte, assentando bases sólidas para uma nova sociedade, uma
nova economia, um novo espaço geográfico. O ponto de partida
para pensar alternativas seria, então, a prática da vida e a
existência de todos.
A
nova paisagem social resultaria do abandono e da superação do
modelo atual e sua substituição por um outro, capaz de garantir
para o maior número a satisfação das necessidades essenciais a
uma vida humana digna, relegando a uma posição secundária
necessidades fabricadas, impostas por meio da publicidade e do
consumo conspícuo. Assim o interesse social suplantaria a atual
precedência do interesse econômico e tanto levaria a uma nova
agenda de investimentos como a uma nova hierarquia nos gastos públicos,
empresariais e privados. Tal esquema conduziria, paralelamente, ao
estabelecimento de novas relações internas a cada país e a
novas relações internacionais. Num mundo em que fosse abolida a
regra da competitividade como padrão essencial de relacionamento,
a vontade de ser potência não seria mais um norte para o
comportamento dos estados, e a idéia de mercado interno será uma
preocupação central.
Agora,
o que está sendo privilegiado são as relações pontuais entre
grandes atores, mas falta sentido ao que eles fazem. Assim, a
busca de um futuro diferente tem de passar pelo abandono das lógicas
infernais que, dentro dessa racionalidade viciada, fundamentam e
presidem as atuais práticas econômicas e políticas hegemônicas.
A
atual subordinação ao modo econômico único tem conduzido o que
se dê prioridade às exportações e importações, uma das
formas com as quais se materializa o chamado mercado global. Isso,
todavia, tem trazido como conseqüência para todos os países uma
baixa de qualidade de vida para a maioria da população e a
ampliação do número de pobres em todos os continentes, pois,
com a globalização atual, deixaram-se de lado políticas sociais
que amparavam, em passado recente, os menos favorecidos, sob o
argumento de que os recursos sociais e os dinheiros públicos
devem primeiramente ser utilizados para facilitar a incorporação
dos países na onda globalitária. Mas, se a preocupação central
é o homem, tal modelo não terá mais razão de ser.
27 — A
centralidade da periferia
A
idéia da irreversibilidade da globalização atual é
aparentemente reforçada cada vez que constatamos a inter-relação
atual entre cada país e o que chamamos de “mundo”, assim como
a interdependência, hoje indiscutível, entre a história geral e
as histórias particulares. Na verdade, isso também tem a ver com
a idéia, também estabelecida, de que a história seria sempre
feita a partir dos países centrais, isto é, da Europa e dos
Estados Unidos, aos quais, de modo geral, o presente estado de
coisas interessa.
Limites à
cooperação
Quando,
porém, observamos de perto aspectos mais estruturais da situação
atual, verificamos que o centro do sistema busca impor uma
globalização de cima para baixo aos demais países, enquanto no
seu âmago reina uma disputa entre Europa, Japão e Estados
Unidos, que lutam para guardar e ampliar sua parte do mercado
global e afirmar a hegemonia econômica, política e militar sobre
as nações que lhes são mais diretamente tributárias sem,
todavia, abandonar a idéia de ampliar sua própria área de influência.
Então, qualquer fração de mercado, não importa onde esteja, se
torna fundamental à competitividade exitosa das empresas. Estas põem
em ação suas forças e incitam os governos respectivos a apoiá-las.
O limite da cooperação dentro da Tríade (Estados Unidos,
Europa, Japão) é essa mesma competição, de modo que cada um não
perca terreno frente ao outro.
Entretanto,
já que nesses países a idéia de cidadania ainda é forte, é
impossível descuidar do interesse das populações ou suprimir
inteiramente direitos adquiridos mediante lutas seculares. O que
permanece como lembrança do Estado de bem-estar basta para
contrariar as pretensões de completa autonomia das empresas
transnacionais e contribui para a emergência, dentro de cada nação,
de novas contradições. Como as empresas tendem a exercer sua
vontade de poder no plano global, a luta entre elas se agrava,
arrastando os países nessa competição. Trata-se, na verdade, de
uma guerra, protagonizada tanto pelos Estados como pelas
respectivas empresas globais, da qual participam como parceiros
mais frágeis os países subdesenvolvidos.
Agora
mesmo, a experiência dos mercados comuns regionais já mostra aos
países chamados “emergentes” que a cooperação da tríade,
em conjunto ou separadamente, é mais representativa do interesse
próprio das grandes potências que de uma vontade de efetiva
colaboração. Nessa guerra, os organismos internacionais
capitaneados pelo Fundo Monetário, pelo Banco Mundial, pelo BID
etc., exercem um papel determinante, em sua qualidade de intérpretes
dos interesses comuns aos Estados Unidos, à Europa e ao Japão.
Tais realidades levam a duvidar da vontade de cada um e do
conjunto desses atores hegemônicos de construir um verdadeiro
universalismo e permite pensar que, nas condições atuais, essa
dupla competição perdurará.
O desafio ao
Sul
Os
países subdesenvolvidos, parceiros cada vez mais fragilizados
nesse jogo tão desigual, mais cedo ou mais tarde compreenderão
que nessa situação a cooperação lhes aumenta a dependência.
Daí a inutilidade dos esforços de associação dependente face
aos países centrais, no quadro da globalização atual. Esse
mundo globalizado produz uma racionalidade determinante, mas que
vai, pouco a pouco, deixando de ser dominante. É uma
racionalidade que comanda os grandes negócios cada vez mais
abrangentes e mais concentrados em poucas mãos. Esses grandes negócios
são de interesse direto de um número cada vez menor de pessoas e
empresas. Como a maior parte da humanidade é direta ou
indiretamente do interesse deles pouco a pouco essa realidade é
desvendada pelas pessoas e pelos países mais pobres.
Há,
em tudo isso, uma grande contradição. Abandonamos as teorias do
subdesenvolvimento, o terceiro-mundismo, que eram nossa bandeira
nas décadas de 1950-60. Todavia, graças à globalização, está
ressurgindo algo muito forte: a história da maioria da humanidade
conduz à consciência da sobrevivência dessa tercermundização
(que, de alguma forma inclui, também, uma parte da população
dos países ricos) (Samuel Pinheiro Guimarães, Quinhentos anos
de periferia, 1999).
É
certo que a tomada de consciência dessa situação estrutural de
inferioridade não chegará ao mesmo tempo para todos os países
subdesenvolvidos e, muito menos, será, neles, sincrônica a
vontade de mudança frente a esse tipo de relações. Pode-se, no
entanto, admitir que, mais cedo ou mais tarde, as condições
internas a cada país, provocadas em boa parte pelas suas relações
externas, levarão a uma revisão dos pactos que atualmente
conformam a globalização. Haverá, então, uma vontade de
distanciamento e posteriormente de desengajamento, conforme
sugerido por Samir Amin, rompendo-se, desse modo, a unidade de
obediência hoje predominante. Jungidos sob o peso de uma dívida
externa que não podem pagar, os países subdesenvolvidos assistem
à criação incessante de carências e de pobres e começam a
reconhecer sua atual situação de ingovernabilidade, forçados
que estão a transferir para o setor econômico recursos que
deveriam ser destinados à área social.
Na
verdade, já são muito numerosas as manifestações de
desconforto com as conseqüências da nova dependência e do novo
imperialismo (Reinaldo Gonçalves, Globalização e
desnacionalização, 1999). Tornam-se evidentes os limites da
aceitação de tal situação. Por diferentes razões e meios
diversos, as manifestações de irredentismo já são claramente
evidentes em países como o Irã, o Iraque, o Afeganistão, mas,
também, a Malásia, o Paquistão, sem contar com as formas
particulares de inclusão da Índia e da China na globalização
atual, que nada têm de simples obediência ou conformidade, como
a propaganda ocidental quer fazer crer. Países como a China e a
Índia, com um terço da população mundial e uma presença
internacional cada vez mais ativa, dificilmente aceitarão, uma ou
outra, assim como a Rússia, jogar o papel passivo de nação-mercado
para os blocos economicamente hegemônicos. Uma reação em cadeia
poderá ensejar o renascimento de algo como o antigo élan
terceiro-mundista tal como o presidente Nyerere, da Tanzânia,
havia sugerido em seu livro O desafio ao Sul.
Além
dessa tendência verossímil, considerem-se as formas de desordem
da vida social que já se multiplicam em numerosos países e que
tendem a aumentar. O Brasil é emblemático como exemplo, não se
sabendo, porém, até quando será possível manter o modelo econômico
globalitário e ao mesmo tempo acalmar as populações
crescentemente insatisfeitas.
As
potências centrais (Estados Unidos, Europa, Japão), apesar das
divergências pela competição quanto ao mercado global, têm
interesses comuns que as incitarão a buscar adaptar suas regras
de convivência à pretensão de manter a hegemonia. Como,
todavia, a globalização atual é um período de crise
permanente, a renovação do papel hegemônico da tríade levará
a maiores sacrifícios para o resto da comunidade das nações,
incentivando, assim, nestas, a busca de outras soluções.
A
combinação hegemônica de que resultam as formas econômicas
modernas atinge diferentemente os diversos países, as diversas
culturas, as diferentes áreas dentro de um mesmo país. A
diversidade sociogeográfica atual o exemplifica. Sua realidade
revela um movimento globalizador seletivo, com a maior parte da
população do planeta sendo menos diretamente atingida — e em
certos casos pouco atingida — pela globalização econômica
vigente. Na Ásia, na África e mesmo na América Latina, a vida
local se manifesta ao mesmo tempo como uma resposta e uma reação
a essa globalização. Não podendo essas populações majoritárias
consumir o Ocidente globalizado em suas formas puras (financeira,
econômica e cultural), as respectivas áreas acabam por ser os
lugares onde a globalização é relativizada ou recusada.
Uma
coisa parece certa: as mudanças a serem introduzidas, no sentido
de alcançarmos uma outra globalização, não virão do centro do
sistema, como em outras fases de ruptura na marcha do capitalismo.
As mudanças sairão dos países subdesenvolvidos.
É
previsível que o sistemismo sobre o qual trabalha a globalização
atual erga-se como um obstáculo e torne difícil a manifestação
da vontade de desengajamento. Mas não impedirá que cada país
elabore, a partir de características próprias, modelos
alternativos, nem tampouco proibirá que associações de tipo
horizontal se dêem entre países vizinhos igualmente
hegemonizados, atribuindo uma nova feição aos blocos regionais e
ultrapassando a etapa das relações meramente comerciais para
alcançar um estágio mais elevado de cooperação. Então, uma
globalização constituída de baixo para cima, em que a busca de
classificação entre potências deixe de ser uma meta, poderá
permitir que preocupações de ordem social, cultural e moral
possam prevalecer.
28 — A nação
ativa, a nação passiva
A
globalização atual e as formas brutais que adotou para impor
mudanças levam à urgente necessidade de rever o que fazer com as
coisas, as idéias e também com as palavras. Qualquer que seja o
debate, hoje, reclama a explicitação clara e coerente dos seus
termos, sem o que se pode facilmente cair no vazio ou na ambigüidade.
É o caso do próprio debate nacional, exigente de novas definições
e vocabulário renovado. Como sempre, o país deve ser visto como
uma situação estrutural em movimento, na qual cada elemento está
intimamente relacionado com os demais.
Ocaso do
projeto nacional?
Agora,
porém, no mundo da globalização, o reconhecimento dessa
estrutura é difícil, do mesmo modo que a visualização de um
projeto nacional pode tornar-se obscura. Talvez por isso, os
projetos das grandes empresas, impostos pela tirania das finanças
e trombeteados pela mídia, acabam, de um jeito ou de outro,
guiando a evolução dos países, em acordo ou não com as instâncias
públicas freqüentemente dóceis e subservientes, deixando de
lado o desenho de uma geopolítica própria a cada nação e que
leve em conta suas características e interesses.
Assim,
as noções de destino nacional e de projeto nacional cedem freqüentemente
a frente da cena a preocupações menores, pragmáticas,
imediatistas, inclusive porque, pelas razões já expostas, os
partidos políticos nacionais raramente apresentam plataformas
conduzidas por objetivos políticos e sociais claros e que
exprimam visões de conjunto (Cesar Benjamin e outros, A opção
brasileira, 1998). A idéia de história, sentido, destino é
amesquinhada em nome da obtenção de metas estatísticas, cuja única
preocupação é o conformismo frente às determinações do
processo atual de globalização. Daí a produção sem
contrapartida de desequilíbrios e distorções estruturais,
acarretando mais fragmentação e desigualdade, tanto mais graves
quanto mais abertos e obedientes se mostrem os países.
Alienação da
nação ativa
Tomemos
o caso do Brasil. É mais que uma simples metáfora pensar que uma
das formas de abordagem da questão seria considerar, dentro da nação,
a existência, na realidade, de duas nações. Uma nação passiva
e uma nação ativa. Do fato de serem as contabilidades nacionais
globalizadas — e globalizantes! —, a grande ironia é que se
passa a considerar como nação ativa aquela que obedece cegamente
ao desígnio globalitário, enquanto o resto acaba por constituir,
desse ponto de vista, a nação passiva. A fazer valer tais
postulados, a nação ativa seria a daqueles que aceitam, pregam e
conduzem uma modernização que dá preeminência aos ajustes que
interessam ao dinheiro, enquanto a nação passiva seria formada
por tudo o mais.
Serão
mesmo adequadas essas expressões? Ou aquilo a que, desse modo, se
está chamando de nação ativa seria, na realidade, a nação
passiva, enquanto a nação chamada passiva seria, de fato, a nação
ativa?
A
chamada nação ativa, isto é, aquela que comparece eficazmente
na contabilidade nacional e na contabilidade internacional, tem
seu modelo conduzido pelas burguesias internacionais e pelas
burguesias nacionais associadas. É verdade, também, que o seu
discurso globalizado, para ter eficácia local, necessita de um
sotaque doméstico e por isso estimula um pensamento nacional
associado produzido por mentes cativas, subvencionadas ou não. A
nação chamada ativa alimenta sua ação com a prevalência de um
sistema ideológico que define as idéias de prosperidade e de
riqueza e, paralelamente, a produção da conformidade. A “nação
ativa” aparece como fluida, veloz, externamente articulada,
internamente desarticuladora, entrópica. Será ela dinâmica?
Como essa idéia é muito difundida, cabe lembrar que velocidade não
é dinamismo. Esse movimento não é próprio, mas atribuído,
tomado emprestado a um motor externo; ele não é genuíno, não
tem finalidade, é desprovido de teleologia. Trata-se de uma agitação
cega, um projeto equivocado, um dinamismo do diabo.
Conscientização
e riqueza da nação passiva
A
nação chamada passiva é constituída pela grossa maior parte da
população e da economia, aqueles que apenas participam de modo
residual do mercado global ou cujas atividades conseguem
sobreviver à sua margem, sem, todavia, entrar cabalmente na
contabilidade pública ou nas estatísticas oficiais. O pensamento
que define e compreende os seus atores é o do intelectual público
engajado na defesa dos interesses da maioria.
As
atividades dessa nação passiva são freqüentemente marcadas
pela contradição entre a exigência prática da conformidade,
isto é, a necessidade de participar direta ou indiretamente da
racionalidade dominante, e a insatisfação e inconformismo dos
atores diante de resultados sempre limitados. Daí o encontro
cotidiano de uma situação de inferiorização, tornada
permanente, o que reforça em seus participantes a noção de
escassez e convoca a uma reinterpretação da própria situação
individual diante do lugar, do país e do mundo.
A
“nação passiva” é estatisticamente lenta, colada às
rugosidades do seu meio geográfico, localmente enraizada e orgânica.
É também a nação que mantém relações de simbiose com o
entorno imediato, relações cotidianas que criam, espontaneamente
e à contracorrente, uma cultura própria, endógena, resistente,
que também constitui um alicerce, uma base sólida para a produção
de uma política. Essa nação passiva mora, ali onde vive
e evolui, enquanto a outra apenas circula, utilizando os lugares
como mais um recurso a seu serviço, mas sem outro compromisso.
Num
primeiro momento, desarticulada pela “nação ativa”, a “nação
passiva” não pode alcançar um projeto conjunto. Aliás, o império
dos interesses imediatos que se manifestam no exercício pragmático
da vida contribui, sem dúvida, para tal desarticulação. Mas,
num segundo momento, a tomada de consciência trazida pelo seu
enraizamento no meio e, sobretudo, pela sua experiência da
escassez, torna possível a produção de um projeto, cuja
viabilidade provém do fato de que a nação chamada passiva é
formada pela maior parte da população, além de ser dotada de um
dinamismo próprio, autêntico, fundado em sua própria existência.
Daí, sua veracidade e riqueza.
Podemos
desse modo admitir que aquilo que, mediante o jogo de espelhos da
globalização, ainda se chama de nação ativa é, na verdade, a
nação passiva, enquanto o que, pelos mesmos parâmetros, é
considerado a nação passiva, constitui, já no presente, mas
sobretudo na ótica do futuro, a verdadeira nação ativa. Sua
emergência será tanto mais viável, rápida e eficaz se se
reconhecem e revelam a confluência dos modos de existência e de
trabalho dos respectivos atores e a profunda unidade do seu
destino.
Aqui,
o papel dos intelectuais será, talvez, muito mais do que promover
um simples combate às formas de ser da “nação ativa” —
tarefa importante mas insuficiente, nas atuais circunstâncias
—, devendo empenhar-se por mostrar, analiticamente, dentro do
todo nacional, a vida sistêmica da nação passiva e suas
manifestações de resistência a uma conquista indiscriminada e
totalitária do espaço social pela chamada nação ativa. Tal visão
renovada da realidade contraditória de cada fração do território
deve ser oferecida à reflexão da sociedade em geral, tanto à
sociedade organizada nas associações, sindicatos, igrejas,
partidos como à sociedade desorganizada, que encontrarão nessa
nova interpretação os elementos necessários para a postulação
e o exercício de uma outra política, mais condizente com a busca
do interesse social.
29 — A
globalização atual não é irreversível
A
globalização atual é muito menos um produto das idéias
atualmente possíveis e, muito mais, o resultado de uma ideologia
restritiva adrede estabelecida. Já vimos que todas as realizações
atuais, oriundas de ações hegemônicas, têm como base construções
intelectuais fabricadas antes mesmo da fabricação das coisas e
das decisões de agir. A intelectualização da vida social,
recentemente alcançada, vem acompanhada de uma forte ideologização.
A dissolução
das ideologias
Todavia,
o que agora estamos assistindo em toda parte é uma tendência à
dissolução dessas ideologias, no confronto com a experiência
vivida dos povos e dos indivíduos. O próprio credo financeiro,
visto pelas lentes do sistema econômico a que deu origem, ou
examinado isoladamente, em cada país, aparece menos aceitável e,
a partir de sua contestação, outros elementos da ideologia do
pensamento único perdem força.
Além
das múltiplas formas com que, no período histórico atual, o
discurso da globalização serve de alicerce às ações hegemônicas
dos Estados, das empresas e das instituições internacionais, o
papel da ideologia na produção das coisas e o papel ideológico
dos objetos que nos rodeiam contribuem, juntos, para agravar essa
sensação de que agora não há outro futuro senão aquele
que nos virá como um presente ampliado e não como
outra coisa. Daí a pesada onda de conformismo e inação que
caracteriza nosso tempo, contaminando os jovens e, até mesmo, uma
densa camada de intelectuais.
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É
muito difundida a idéia segundo a qual o processo e a forma
atuais da globalização seriam irreversíveis. Isso também tem a
ver com a força com a qual o fenômeno se revela e instala em
todos os lugares e em todas as esferas da vida, levando a pensar
que não há alternativas para o presente estado de coisas.
No
entanto, essa visão repetitiva do mundo confunde o que já foi
realizado com as perspectivas de realização. Para exorcizar esse
risco, devemos considerar que o mundo é formado não apenas pelo
que já existe (aqui, ali, em toda parte), mas pelo que pode
efetivamente existir (aqui, ali, em toda parte). O mundo datado de
hoje deve ser enxergado como o que na verdade ele nos traz, isto
é, um conjunto presente de possibilidades reais, concretas, todas
factíveis sob determinadas condições.
O
mundo definido pela literatura oficial do pensamento único é,
somente, o conjunto de formas particulares de realização de
apenas certo número dessas possibilidades. No entanto, um mundo
verdadeiro se definirá a partir da lista completa de
possibilidades presentes em certa data e que incluem não só o
que já existe sobre a face da Terra, como também o que ainda não
existe, mas é empiricamente factível. Tais possibilidades, ainda
não realizadas, já estão presentes como tendência ou como
promessa de realização. Por isso, situações como a que agora
defrontamos parecem definitivas, mas não são verdades eternas.
A pertinência
da utopia
É
somente a partir dessa constatação, fundada na história real do
nosso tempo, que se torna possível retomar, de maneira concreta,
a idéia de utopia e de projeto. Este será o resultado da conjunção
de dois tipos de valores. De um lado, estão os valores
fundamentais, essenciais, fundadores do homem, válidos em
qualquer tempo e lugar, como a liberdade, a dignidade, a
felicidade; de outro lado, surgem os valores contingentes, devidos
à história do presente, isto é, à história atual. A densidade
e a factibilidade histórica do projeto, hoje, dependem da maneira
como empreendamos sua combinação.
Por
isso, é lícito dizer que o futuro são muitos; e resultarão de
arranjos diferentes, segundo nosso grau de consciência, entre o
reino das possibilidades e o reino da vontade. É assim que
iniciativas serão articuladas e obstáculos serão superados,
permitindo contrariar a força das estruturas dominantes, sejam
elas presentes ou herdadas. A identificação das etapas e os
ajustamentos a empreender durante o caminho dependerão da necessária
clareza do projeto.
Conforme
já mencionamos, alguns dados do presente nos abrem, desde já, a
perspectiva de um futuro diferente, entre outros: a tendência à
mistura generalizada entre povos; a vocação uma urbanização
concentrada; o peso da ideologia nas construções históricas
atuais; o empobrecimento relativo e absoluto das populações e a
perda de qualidade de vida das classes médias; o grau de relativa
“docilidade” das técnicas contemporâneas; a “politização
generalizada” permitida pelo excesso de normas (Maria Laura
Silveira, Um país, uma região. Fim de século e modernidades
na Argentina, 1999); e a realização possível do homem com a
grande mutação que desponta.
Lembramos,
também, que um dos elementos, ao mesmo tempo ideológico e
empiricamente existencial, da presente forma de globalização é
a centralidade do consumo, com a qual muito têm a ver a vida de
todos os dias e suas repercussões sobre a produção, as formas
presentes de existência e as perspectivas das pessoas. Mas as
atuais relações instáveis de trabalho, a expansão de
desemprego e a baixa do salário médio constituem um contraste em
relação à multiplicação dos objetos e serviços, cuja
acessibilidade se torna, desse modo, improvável, ao mesmo tempo
que até os consumos tradicionais acabam sendo difíceis ou impossíveis
para uma parcela importante da população. É como se o feitiço
virasse contra o feiticeiro.
Essa
recriação da necessidade, dentro de um mundo de coisas e serviços
abundantes, atinge cada vez mais as classes médias, cuja definição,
agora, se renova, à medida que, como também já vimos, passam a
conhecer a experiência da escassez. Esse é um dado relevante
para compreender a mudança na visibilidade da história que se
está processando. De tal modo, às visões oferecidas pela
propaganda ostensiva ou pela ideologia contida nos objetos e nos
discursos opõem-se as visões propiciadas pela existência. É
por meio desse conjunto de movimentos, que se reconhece uma saturação
dos símbolos pré-construídos e que os limites da tolerância às
ideologias são ultrapassados, o que permite a ampliação do
campo da consciência.
Nas
condições atuais, essa evolução pode parecer impossível, em
vista de que as soluções até agora propostas ainda são
prisioneiras daquela visão segundo a qual o único dinamismo possível
é o da grande economia, com base nos reclamos do sistema
financeiro. Por exemplo, os esforços para restabelecer o emprego
dirigem-se, sobretudo, quando não exclusivamente, ao circuito
superior da economia. Mas esse não é o único caminho e outros
remédios podem ser buscados, segundo a orientação político-ideológica
dos responsáveis, levando em conta uma divisão do trabalho vinda
“de baixo”, fenômeno típico dos países subdesenvolvidos (M.
Santos, O espaço dividido, 1978), mas que agora também se
verifica no mundo chamado desenvolvido.
Por
outro lado, na medida em que as técnicas cada vez mais se dão
como normas e a vida se desenrola no interior de um oceano de técnicas,
acabamos por viver uma politização generalizada. A rapidez dos
processos conduz a uma rapidez nas mudanças e, por conseguinte,
aprofunda a necessidade de produção de novos entes
organizadores. Isso se dá nos diversos níveis da vida social.
Nada de relevante é feito sem normas. Neste fim do século XX,
tudo é política. E, graças às técnicas utilizadas no período
contemporâneo e ao papel centralizador dos agentes hegemônicos,
que são planetários, torna-se ubíqua a presença de processos
distorcidos e exigentes de reordenamento. Por isso a política
aparece como um dado indispensável e onipresente, abrangendo
praticamente a totalidade das ações.
Assistimos,
assim, ao império das normas, mas também ao conflito entre elas,
incluindo o papel cada vez mais dominante das normas privadas na
produção da esfera pública. Não é raro que as regras
estabelecidas pelas empresas afetem mais que as regras criadas
pelo Estado. Tudo isso atinge e desnorteia os indivíduos,
produzindo uma atmosfera de insegurança e até mesmo de medo, mas
levando os que não sucumbem inteiramente ao seu império à busca
da consciência quanto ao destino do Planeta e, logo, do Homem.
Outros usos
possíveis para as técnicas atuais
Os
sistemas técnicos de que se valem os atuais atores hegemônicos
estão sendo utilizados para reduzir o escopo da vida humana sobre
o planeta. No entanto, jamais houve na história sistemas tão
propícios a facilitar a vida e a proporcionar a felicidade dos
homens. A materialidade que o mundo da globalização está
recriando permite um uso radicalmente diferente daquele que era o
da base material da industrialização e do imperialismo.
A
técnica das máquinas exigia investimentos maciços, seguindo-se
a massividade e a concentração dos capitais e do próprio
sistema técnico. Daí a inflexibilidade física e moral das operações,
levando a um uso limitado, direcionado, da inteligência e da
criatividade. Já o computador, símbolo das técnicas da informação,
reclama capitais fixos relativamente pequenos, enquanto seu uso é
mais exigente de inteligência. O investimento necessário pode
ser fragmentado e torna-se possível sua adaptação aos mais
diversos meios. Pode-se até falar da emergência de um artesanato
de novo tipo, servido por velozes instrumentos de produção e de
distribuição.
Dir-se-á,
então, que o computador reduz — tendencialmente — o efeito da
pretensa lei segundo a qual a inovação técnica conduz
paralelamente a uma concentração econômica. Os novos
instrumentos, pela sua própria natureza, abrem possibilidades
para sua disseminação no corpo social, superando as clivagens
socieconômicas preexistentes.
Sob
condições políticas favoráveis, a materialidade simbolizada
pelo computador é capaz não só de assegurar a liberação da
inventividade como torná-la efetiva. A desnecessidade, nas
sociedades complexas e socioeconomicamente desiguais, de adotar
universalmente computadores de última geração afastará, também,
o risco de que distorções e desequilíbrios sejam agravados. E a
idéia de distância cultural, subjacente à teoria e à prática
do imperialismo, atinge, também, seu limite. As técnicas
contemporâneas são mais fáceis de inventar, imitar ou
reproduzir que os modos de fazer que as precederam.
As
famílias de técnicas emergentes com o fim do século XX —
combinando informática e eletrônica, sobretudo — oferecem a
possibilidade de superação do imperativo da tecnologia hegemônica
e paralelamente admitem a proliferação de novos arranjos, com a
retomada da criatividade. Isso, aliás, já está se dando nas áreas
da sociedade em que a divisão do trabalho se produz de baixo para
cima. Aqui, a produção do novo e o uso e a difusão do novo
deixam de ser monopolizados por um capital cada vez mais
concentrado para pertencer ao domínio do maior número,
possibilitando afinal a emergência de um verdadeiro mundo da
inteligência. Desse modo, a técnica pode voltar a ser o
resultado do encontro do engenho humano com um pedaço determinado
da natureza — cada vez mais modificada —, permitindo que essa
relação seja fundada nas virtualidades do entorno geográfico e
social, de modo a assegurar a restauração do homem em sua essência.
Geografia e
aceleração da história
A
própria geografia parece contribuir para que a história se
acelere. Na cidade — sobretudo na grande cidade —, os efeitos
de vizinhança parecem impor uma possibilidade maior de identificação
das situações, graças, também, à melhoria da informação
disponível e ao aprofundamento das possibilidades de comunicação.
Dessa maneira, torna-se possível a identificação, na vida
material como na ordem intelectual, do desamparo a que as populações
são relegadas, levando, paralelamente, a um maior reconhecimento
da condição de escassez e a novas possibilidades de ampliação
da consciência.
A
partir desses efeitos de vizinhança, o indivíduo refortificado
pode, num segundo momento, ultrapassar sua busca pelo consumo e
entregar-se à busca da cidadania. A primeira supõe uma visão
limitada e unidirecionada, enquanto a segunda inclui a elaboração
de visões abrangentes e sistêmicas. No primeiro caso, o que é
perseguido é a reconstrução das condições materiais e jurídicas
que permitem fortalecer o bem-estar individual (ou familiar) sem,
todavia, mostrar preocupação com o fortalecimento da
individualidade, enquanto a busca da cidadania apontará para a
reforma das práticas e das instituições políticas.
Frente
a essa nova realidade, as aglomerações populacionais serão
valorizadas como o lugar da densidade humana e, por isso, o lugar
de uma coabitação dinâmica. Será também aí, visto pela mesma
ótica, que se observarão a renascença e o peso da cultura
popular. Por outro lado, a precariedade e a pobreza, isto é, a
impossibilidade, pela carência de recursos, de participar
plenamente das ofertas materiais da modernidade, poderão,
igualmente, inspirar soluções que conduzam ao desejado e hoje
possível renascimento da técnica, isto é, o uso consciente e
imaginativo, em cada lugar, de todo tipo de oferta tecnológica e
de toda modalidade de trabalho. Para isso contribuirá o fato histórico
concreto que é, ao contrário do período histórico anterior, o
grau de “docilidade” das técnicas contemporâneas, que se
apresentam mais propícias à liberação do esforço, ao exercício
da inventividade e à floração e multiplicação das demandas
sociais e individuais.
Se
a realização da história, a partir dos vetores “de cima”,
é ainda dominante, a realização de uma outra história a partir
dos vetores “de baixo” é tornada possível. E para isso
contribuirão, em todos os países, a mistura de povos, raças,
culturas, religiões, gostos etc. A aglomeração das pessoas em
espaços reduzidos, com o fenômeno de urbanização concentrada,
típico do último quartel de século XX, e as próprias mutações
nas relações de trabalho, junto ao desemprego crescente e à
depressão dos salários, mostram aspectos que poderão se mostrar
positivos em futuro próximo, quando as metamorfoses do trabalho
informal serão vividas também como expansão do trabalho livre,
assegurando a seus portadores novas possibilidades de interpretação
do mundo, do lugar e da respectiva posição de cada um, no mundo
e no lugar.
As
condições atuais permitem igualmente antever uma reconversão da
mídia sob a pressão das situações locais (produção, consumo,
cultura). A mídia trabalha com o que ela própria transforma em
objeto de mercado, isto é, as pessoas. Como em nenhum lugar as
comunidades são formadas por pessoas homogêneas, a mídia deve
levar isso em conta. Nesse caso, deixará de representar o senso
comum imposto pelo pensamento único. Desde que os processos econômicos,
sociais e políticos produzidos de baixo para cima possam
desenvolver-se eficazmente, uma informação veraz poderá dar-se
dentro da maioria da população e ao serviço de uma comunicação
imaginosa e emocionada, atribuindo-se, assim, um papel
diametralmente oposto ao que lhe é hoje conferido no sistema da mídia.
Um novo mundo
possível
A
partir dessas metamorfoses, pode-se pensar na produção local de
um entendimento progressivo do mundo e do lugar, com a produção
indígena de imagens, discursos, filosofias, junto à elaboração
de um novo ethos e de
novas ideologias e novas crenças políticas, amparadas na
ressurreição da idéia e da prática da solidariedade.
O
mundo de hoje também autoriza uma outra percepção da história
por meio da contemplação da universalidade empírica constituída
com a emergência das novas técnicas planetarizadas e as
possibilidades abertas a seu uso. A dialética entre essa
universalidade empírica e as particularidades encorajará a
superação das práxis invertidas, até agora comandadas pela
ideologia dominante, e a possibilidade de ultrapassar o reino da
necessidade, abrindo lugar para a utopia e para a esperança. Nas
condições históricas do presente, essa nova maneira de enxergar
a globalização permitirá distinguir, na totalidade, aquilo que
já é dado e existe como um fato consumado, e aquilo que é possível,
mas ainda não realizado, vistos um e outro de forma unitária.
Lembremo-nos da lição de A. Schmidt (The concept of nature in
Marx, 1971) quando dizia que “a realidade é, além disso,
tudo aquilo em que ainda não nos tornamos, ou seja, tudo aquilo
que a nós mesmos nos projetamos como seres humanos, por intermédio
dos mitos, das escolhas, das decisões e das lutas”.
A
crise por que passa hoje o sistema, em diferentes países e
continentes, põe à mostra não apenas a perversidade, mas também
a fraqueza da respectiva construção. Isso, conforme vimos, já
está levando ao descrédito dos discursos dominantes, mesmo que
outro discurso, de crítica e de proposição, ainda não haja
sido elaborado de modo sistêmico.
O
processo de tomada de consciência — já o vimos — não é
homogêneo, nem segundo os lugares, nem segundo as classes sociais
ou situações profissionais, nem quanto aos indivíduos. A
velocidade com que cada pessoa se apropria da verdade contida na
história é diferente, tanto quanto a profundidade e coerência
dessa apropriação. A descoberta individual é, já, um considerável
passo à frente, ainda que possa parecer ao seu portador um
caminho penoso, à medida das resistências circundantes a esse
novo modo de pensar. O passo seguinte é a obtenção de uma visão
sistêmica, isto é, a possibilidade de enxergar as situações e
as causas atuantes como conjuntos e de localizá-los como um todo,
mostrando sua interdependência. A partir daí, a discussão
silenciosa consigo mesmo e o debate mais ou menos público com os
demais ganham uma nova clareza e densidade, permitindo enxergar as
relações de causa e efeito como uma corrente contínua, em que
cada situação se inclui numa rede dinâmica, estruturada, à
escala do mundo e à escala dos lugares.
É
a partir dessa visão sistêmica que se encontram, interpenetram e
completam as noções de mundo e de lugar, permitindo entender
como cada lugar, mas também cada coisa, cada pessoa, cada relação
dependem do mundo.
Tais
raciocínios autorizam uma visão crítica da história na qual
vivemos, o que inclui uma apreciação filosófica da nossa própria
situação frente à comunidade, à nação, ao planeta,
juntamente com uma nova apreciação de nosso próprio papel como
pessoa. É desse modo que, até mesmo a partir da noção do que
é ser um consumidor, poderemos alcançar a idéia de homem
integral e de cidadão. Essa revalorização radical do indivíduo
contribuirá para a renovação qualitativa da espécie humana,
servindo de alicerce a uma nova civilização.
A
reconstrução vertical do mundo, tal como a atual globalização
perversa está realizando, pretende impor a todos os países
normas comuns de existência e, se possível, ao mesmo tempo e
rapidamente. Mas isto não é definitivo. A evolução que estamos
entrevendo terá sua aceleração em momentos diferentes e em países
diferentes, e será permitida pelo amadurecimento da crise.
Esse
mundo novo anunciado não será uma construção de cima para
baixo, como a que estamos hoje assistindo e deplorando, mas uma
edificação cuja trajetória vai se dar de baixo para cima.
As
condições acima enumeradas deverão permitir a implantação de
um novo modelo econômico, social e político que, a partir de uma
nova distribuição dos bens e serviços, conduza à realização
de uma vida coletiva solidária e, passando da escala do lugar à
escala do planeta, assegure uma reforma do mundo, por intermédio
de outra maneira de realizar a globalização.
30 — A história
apenas começa
Ao
contrário do que tanto se disse, a história não acabou; ela
apenas começa. Antes o que havia era uma história de lugares,
regiões, países. As histórias podiam ser, no máximo,
continentais, em função dos impérios que se estabeleceram a uma
escala mais ampla. O que até então se chamava de história
universal era a visão pretensiosa de um país ou continente sobre
os outros, considerados bárbaros ou irrelevantes. Chegava-se a
dizer de tal ou tal povo que ele era sem história...
A humanidade
como um bloco revolucionário
O
ecúmeno era formado de frações separadas ou escassamente
relacionadas do planeta. Somente agora a humanidade pode
identificar-se como um todo e reconhecer sua unidade, quando faz
sua entrada na cena histórica como um bloco. É uma entrada
revolucionária, graças à interdependência das economias, dos
governos, dos lugares. O movimento do mundo revela uma só pulsação,
ainda que as condições sejam diversas segundo continentes, países,
lugares, valorizados pela sua forma de participação na produção
dessa nova história.
Vivemos
em um mundo complexo, marcado na ordem material pela multiplicação
incessante do número de objetos e na ordem imaterial pela
infinidade de relações que aos objetos nos unem. Nos últimos
cinqüenta anos criaram-se mais coisas do que nos cinqüenta mil
precedentes. Nosso mundo é complexo e confuso ao mesmo tempo, graças
à força com a qual a ideologia penetra objetos e ações. Por
isso mesmo, a era da globalização, mais do que qualquer outra
antes dela, é exigente de uma interpretação sistêmica
cuidadosa, de modo a permitir que cada coisa, natural ou
artificial, seja redefinida em relação com o todo planetário.
Essa totalidade-mundo se manifesta pela unidade das técnicas e
das ações.
A
grande sorte dos que desejam pensar a nossa época é a existência
de uma técnica globalizada, direta ou indiretamente presente em
todos os lugares, e de uma política planetariamente exercida, que
une e norteia os objetos técnicos. Juntas, elas autorizam uma
leitura, ao mesmo tempo geral e específica, filosófica e prática,
de cada ponto da Terra.
Nesse
emaranhado de técnicas dentro do qual estamos vivendo, o homem
pouco a pouco descobre suas novas forças. Já que o meio ambiente
é cada vez menos natural, o uso do entorno imediato pode ser
menos aleatório. As coisas valem pela sua constituição, isto é,
pelo que podem oferecer. Os gestos valem pela adequação às
coisas a que se dirigem. Ampliam-se e diversificams-se as
escolhas, desde que se possam combinar adequadamente técnica e
política. Aumentam a previsibilidade e a eficácia das ações.
Um
dado importante de nossa época é a coincidência entre a produção
dessa história universal e a relativa liberação do homem em
relação à natureza. A denominação de era da inteligência
poderia ter fundamento neste fato concreto: os materiais hoje
responsáveis pelas realizações preponderantes são cada vez
mais objetos materiais manufaturados e não mais matérias-primas
naturais. Pensamos ousadamente as soluções mais fantasiosas e em
seguida buscamos os instrumentos adequados à sua realização. Na
era da ecologia triunfante, é o homem quem fabrica a natureza, ou
lhe atribui valor e sentido, por meio de suas ações já
realizadas, em curso ou meramente imaginadas. Por isso, tudo o que
existe constitui uma perspectiva de valor. Todos os lugares fazem
parte da história. As pretensões e a cobiça povoam e valorizam
territórios desertos.
A nova consciência
de ser mundo
Graças
aos progressos fulminantes da informação, o mundo fica mais
perto de cada um, não importa onde esteja. O outro, isto é, o
resto da humanidade, parece estar próximo. Criam-se, para todos,
a certeza e, logo depois, a consciência de ser mundo e de estar
no mundo, mesmo se ainda não o alcançamos em plenitude material
ou intelectual. O próprio mundo se instala nos lugares, sobretudo
as grandes cidades, pela presença maciça de uma humanidade
misturada, vinda de todos os quadrantes e trazendo consigo
interpretações variadas e múltiplas, que ao mesmo tempo se
chocam e colaboram na produção renovada do entendimento e da crítica
da existência. Assim, o cotidiano de cada um se enriquece, pela
experiência própria e pela do vizinho, tanto pelas realizações
atuais como pelas perspectivas de futuro. As dialéticas da vida
nos lugares, agora mais enriquecidas, são paralelamente o caldo
de cultura necessário à proposição e ao exercício de uma nova
política.
Funda-se,
de fato, um novo mundo. Para sermos ainda mais precisos, o que,
afinal, se cria é o mundo como realidade histórica unitária,
ainda que ele seja extremamente diversificado. Ele é datado com
uma data substantivamente única, graças aos traços comuns de
sua constituição técnica e à existência de um único motor
para as ações hegemônicas, representado pelo lucro à escala
global. É isso, aliás, que, junto à informação generalizada,
assegurará a cada lugar a comunhão universal com todos os
outros.
Ousamos,
desse modo, pensar que a história do homem sobre a Terra dispõe
afinal das condições objetivas, materiais e intelectuais, para
superar o endeusamento do dinheiro e dos objetos técnicos e
enfrentar o começo de uma nova trajetória. Aqui, não se trata
de estabelecer datas, nem de fixar momentos da folhinha, marcos
num calendário. Como o relógio, a folhinha e o calendário são
convencionais, repetitivos e historicamente vazios. O que conta
mesmo é o tempo das possibilidades efetivamente criadas, o que,
à sua época, cada geração encontra disponível, isso a que
chamamos tempo empírico, cujas mudanças são marcadas
pela irrupção de novos objetos, de novas ações e relações e
de novas idéias.
A grande mutação
contemporânea
Diante
do que é o mundo atual, como disponibilidade e como
possibilidade, acreditamos que as condições materiais já estão
dadas para que se imponha a desejada grande mutação, mas seu
destino vai depender de como disponibilidades e possibilidades serão
aproveitadas pela política. Na sua forma material, unicamente
corpórea, as técnicas talvez sejam irreversíveis, porque aderem
ao território e ao cotidiano. De um ponto de vista existencial,
elas podem obter um outro uso e uma outra significação. A
globalização atual não é irreversível.
Agora
que estamos descobrindo o sentido de nossa presença no planeta,
pode-se dizer que uma história universal verdadeiramente humana
está, finalmente, começando. A mesma materialidade, atualmente
utilizada para construir um mundo confuso e perverso, pode vir a
ser uma condição da construção de um mundo mais humano. Basta
que se completem as duas grandes mutações ora em gestação: a
mutação tecnológica e a mutação filosófica da espécie
humana.
A
grande mutação tecnológica é dada com a emergência das técnicas
da informação, as quais — ao contrário das técnicas das máquinas
— são constitucionalmente divisíveis, flexíveis e dóceis,
adaptáveis a todos os meios e culturas, ainda que seu uso
perverso atual seja subordinado aos interesses dos grandes
capitais. Mas, quando sua utilização for democratizada, essas técnicas
doces estarão ao serviço do homem.
Muito
falamos hoje nos progressos e nas promessas da engenharia genética,
que conduziriam a uma mutação do homem biológico, algo que
ainda é do domínio da história da ciência e da técnica.
Pouco, no entanto, se fala das condições, também hoje
presentes, que podem assegurar uma mutação filosófica do homem,
capaz de atribuir um novo sentido à existência de cada pessoa e,
também, do planeta.
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