A
democracia representativa e a democracia participativa
Passando
por Locke e Rousseau, o prefeito de Porto Alegre discute as
origens e a crise do sistema representativo e mostra como
liberalismo não é sinônimo de democracia.
Raul
Pont*
O
tema central deste seminário está presente no debate político
da humanidade há, no mínimo, dois séculos. As raízes dos
sistemas políticos de representação encontram-se nos regimes
constitucionais dos Estados Modernos. Os regimes políticos
antigos e medievais, por existirem em sociedades escravocratas ou
servis, não podem ser identificados com as situações
inauguradas com o Estado Moderno. Mesmo com o Absolutismo, onde a
idéia de “contrato” já aparece e o súdito já é
portador de certos direitos, sua condição ainda é distante da
qualificação de cidadão.
As
origens dos sistemas representativos nascem de concepções
liberais que expressavam o desenvolvimento e amadurecimento das
sociedades mercantis e das condições objetivas para o surgimento
do capitalismo – a acumulação de capitais e a existência do
trabalho livre.
Esse
processo não foi linear, nem simultâneo, na Europa ou no Novo
Mundo. As contradições e conflitos sociais que permearam o
surgimento do modo de produção capitalista se expressaram
através das várias correntes teóricas.
Simplificadamente,
para efeito desta apresentação, podemos reduzir a duas grandes
vertentes ideológicas o pensamento burguês que justifica a
necessidade do Estado e o legitima. Ambas partem do direito
natural do homem à liberdade e da crítica ao Estado absolutista.
Este justifica sua existência pelo direito divino das monarquias
ou pelo “contrato” através do qual os homens – para saírem
do permanente estado de guerra em que, naturalmente, se
encontravam –, abdicavam da sua soberania e a transferiam de
forma absoluta a um rei. Esta era, para os absolutistas, a única
condição pela qual os homens poderiam viver em harmonia: todos
abdicavam de sua soberania para um Estado todo poderoso que, pelo
temor e poder coercitivo, garantia a paz e a vida em sociedade.
Os
dois liberalismos
A
primeira dessa vertentes, a concepção liberal proprietária,
possessiva, marca o pensamento de John Locke (1632-1704) que
critica o Absolutismo não por seu caráter contratual (que já
aparecia na obra anterior de Thomas Hobbes), mas pela
justificativa do direito divino no qual os monarcas
buscavam justificar seu poder absoluto. O direito natural para
Locke é o direito à liberdade que, junto com o trabalho,
sustenta o direito a propriedade: o Estado tem como objetivo
defendê-la. E mais: esta deve ser a função essencial do Estado
sob controle de representantes delegados com o direito de fazer as
leis e aplicá-las.
A
outra vertente é a concepção liberal “igualitária” de Jean
Rousseau (1712-1778). Para ele, o contrato social pressupõe a
idéia do direito natural à liberdade, mas também da igualdade
como condição humana.
Esta
introdução não é, pois, uma divagação teórica. Ela busca
situar as origens do nosso debate sobnre a delegação de poder e
permite que compreendamos que este não é um debate recente,
constituindo-se há séculos num desafio para a humanidade.
As
diferentes explicações teóricas e ideológicas desse processo
expressam interesses sociais distintos ao longo da história e
tem, até hoje, conseqüências diferentes no desenvolvimento
político da humanidade. Este debate expressa interesses distintos
de classes e frações de classe na passagem de uma sociedade de
pequenos produtores, artesãos e agricultores saindo do jugo
feudal, para a consolidação de uma nova elite dominante
tipicamente capitalista. Ele dá a dimensão histórica de que
estas concepções respondem a um momento da humanidade e que não
são eternas, como não o foram as explicações de mundo do
feudalismo ou da transição absolutista. São relações da
sociedade e do Estado que podem ser alteradas pelo protagonismo
dos agentes históricos.
Isso
valeu para essa época e vale, evidentemente, para os dias de
hoje. A concepção proprietária baseava-se na idéia de que o
direito à liberdade é o direito à propriedade. O Estado é o
“contrato” para garantir a manuntenção da propriedade e de
outros direitos.
Nesta
concepção sobre o Estado de Direito, tanto em Locke como nas
formulações de Kant (1724-1804) pressupõe-se cidadãos com
direitos desiguais em função da propriedade, “cidadãos
independentes e cidadãos não independentes”. A estes, por sua
condição de despossuídos, de não proprietários, não se
poderia conceder o direito do voto, o direito à representação
no poder de Estado, de preferência parlamentar.
Locke,
apesar de sua visão laica e da defesa da tolerância numa época
de intransigências confessionais, via o Estado (a sociedade
política que resulta do contrato) como o que expressa a
soberania, o poder coercitivo do Estado, inclusive o de condenar
à morte!
O
liberalismo igualitário de Rousseau
n
A
outra concepção, o liberalismo igualitário de Rousseau,
baseava-se na visão de que “os homens nascem livres e
iguais”, ainda que ele também constatasse que, em sua época,
“em todas as partes encontravam-se sob ferros”.
Se
a frase traía a realidade do mundo em que vivia, onde os homens
já não nasciam livres e iguais, como “desejava” o pensamento
de Rousseau, esta fundamentação é riquíssima para expressar
seu pensamento baseado na pequena produção e no artesanato, a
realidade das pequenas localidades e/ou regiões que rapidamente
começava ser superada pela acumulação capitalista.
Essa
realidade vivida pelo autor foi suficientemente forte para que ele
defendesse que a soberania do povo, formado por indivíduos
“livres e iguais” não poderia ser transferida por
necessidade e opção a um monarca como queriam os absolutistas,
nem poderia ser delegada, no contrato, ao Estado
Parlamentar.
Dizia
Rousseau que ao ato no qual se realiza o contrato da sociedade
política, onde o povo convenciona um governo, existe um
momento anterior que é aquele em que o povo é povo e esta
condição é a condição primeira, estabelecendo uma soberania
que não pode ser transferida, delegada ou dividida.
Para
que se mantenham as condições de liberdade e igualdade, onde
nenhum cidadão perde sua soberania no processo de formação da vontade
geral, esta não pode ser delegada ou transferida, a não ser
para encarregados de executá-la, cujos mandatos devem ser
revogáveis a qualquer momento.
A
concepção utópica de Rousseau era irreal em um mundo que
rapidamente se transformava com a acumulação de capitais, mas
prenunciava o grande desafio para qualquer avanço democrático no
interior das concepções liberais.
n
Liberalismo
não é sinônimo de democracia
A
partir destas grandes vertentes desdobraram-se, ao longo destes
quase dois séculos, sistemas políticos representativos com
características próprias, com diferenciações, mas alicerçados
predominantemente na visão do liberalismo proprietário,
possessivo. Desdobraram-se nas formas de repúblicas ou monarquias
constitucionais parlamentares onde a soberania popular delegada ao
Parlamento unifica as funções legislativas e executivas a partir
das relações de forças no interior da instituição.
Expressaram-se, também, nas repúblicas presidencialistas onde a
divisão de poderes e competências é mais nítida e onde
Executivo e Legislativo são eleitos por critérios distintos.
Nessa
longa experiência histórica dos países liberais, já temos um
elemento de debate e troca de informações em nosso seminário:
os sistemas eleitorais. Estes também expressaram diferentes
estágios de desenvolvimento econômico e graus distintos na
organização política das classes e frações de classes na
disputa nde espaços e representações dentro do sistema liberal.
Mas,
principalmente, esse processo histórico deu visibilidade
cristalina ao fato de que o liberalismo, ao longo desses dois
séculos, não foi e não é sinônimo de democracia.
Dependendo
do país, no século passado e mesmo neste, o direito à
organização político-partidária e ao sufrágio universal foram
conquistas duramente alcançadas. Ao longo do liberalismo, o
exercício do voto foi elitista, excludente ou limitador: o voto
censitário baseado na propriedade e/ou nos impostos dominou o
século XIX.
No
Brasil-Império excluíam-se os negros escravos, os índigenas, as
mulheres, os pobres, enfim, a maioria esmagadora da população
– situação que se prolongou pelas primeiras décadas do
século XX. Afinal, todos estes não poderiam ser “cidadãos
independentes”, como pensavam Locke e Kant, o que beneficiava a
n oligarquia fundiária.
As
lutas sociais pelo direito a sindicalização, ao partido
político e a universalização do voto complementavam, assim, as
lutas pela jornada e pelas condições de trabalho.
O
socialismo e a crítica da representação
As
novas contradições, os novos conflitos, as novas relações de
classe produziram novas concepções político-ideológicas de
explicação do mundo e das relações entre a Sociedade e o
Estado. Ao par de reivindicações e conquistas sociais
desenvolve-se uma nova concepção de mundo: o pensamento
socialista.
Este,
também, não é unívoco, mas na concepção marxista faz a
crítica da concepção liberal, anfirmando – de forma
esquemática – o caráter de classe do Estado, sua relação e
subordinação aos interesses predominantes na sociedade na esfera
da produção.
A
igualdade do Estado de Direito não ultrapassa a igualdade
jurídica do cidadão e apenas tenta esconder a enorme
desigualdade presente na sociedade civil em função da
propriedade privada dos meios de produção.
Afora
a condição insubstituível de que o socialismo requer a
superação da sociedade de classes e, portanto, do fim da
propriedade privada, o marxismo não desenvolveu uma concepção
de Estado socialista, no sentido de teorizar sobre novas
instituições e sobre como seriam as relações políticas na
nova sociedade.
Foram
experiências concretas como a vivida pela Comuna de Paris (1871)
e depois pela Revolução Russa (1917) que permitiram
sistematizações teóricas e propnostas que retomaram o problema
da representação política, da delegação de poder.
A
curtíssima vida da Comuna, sufocada após pouco mais de dois
meses, não permitiu as classes populares que a impulsionaram
desenvolver um novo tipo de Estado. Mas aí procuraram, ao menos,
constituir novas relações políticas onde predominavam
critérios para diminuir delegações de poder, ampliar a
revogabilidade dos mandatos, desconstituir as forças armadas
substituindo-as por cidadãos armados e diminuir diferenças de
remuneração entre os servidores públicos, visando não criar
privilégios e favorecer burocracias.
A
vitória da Revolução Russa inaugurou uma nova etapa na
história da humanidade; ela propunha-se a constituir as
relações políticas de um novo Estado, cuja grande pretensão e
objetivo era, também, auto-extinguir-se junto com o fim da
sociedade de classes.
nO
governo baseado em conselhos (sovietes) – que retomava o velho
tema da delegação de poder – propunha-se a superar a
mera igualdade jurídica e a distância do poder político da
maioria da população. Através dos conselhos (sovietes)
almejava-se fundirem numa só pessoa o produtor e legislador.
A
experiência soviética não sobreviveu a guerra civil e ao
processo de autoritarismo e burocratização que prevaleceu na
luta interna na União Soviética. O partido único e a
identificação deste com o Estado centralizador e todo poderoso
afastou a possibilidade do fortalecimento da auto-gestão, da
auto-organização e do controle democrático de um Estado
planificador apenas “das coisas” e não um instrumento de
dominação de classe, “das gentes”.
O
“socialismo real” do leste europeu e da China e seus
seguidores menores sufocaram este debate no campo da esquerda ao
longo do século e o longo predomínio das experiências
social-democratas ou de democracias burguesas liberais consolidou
a democracia representativa como ápice do avanço político da
humanidade.
O
brilho foi ofuscado, certamente, pelo rosário de ditaduras
militares e de autoritarismo populista que se sucederam na
América, África e Ásia. Mesmo a Europa não escapou incólume,
confirmando que o século XX ainda não seria o século da
civilização.
Nas
últimas décadas, o fim da “guerra fria”, o colapso das
experiências do leste europeu e a falência da “doutrina da
segurança nacional” na América Latina, consolidaram a
democracia representativa em um grande número de países. Nos
casos em que substituiram ditaduras, elas constituiram importantes
nas conquistas políticas dessas sociedades.
A
crise de legitimidade do sistema de representação
É,
inegável, entretanto, que na maioria dos países de democracia
liberal, o sistema de representação vive um processo de crise de
legitimidade, que se expressa na abstenção eleitoral, na apatia
e não participação político-social e nos baixos índices de
filiação partidária.
As
causas variam entre os diferentes países mas se pode afirmar que
as principais residem:
-
no processo de burocratização e no caráter autoritário das
administrações e parlamentares;
-
na falta de controle dos eleitores e/ou do partido sobre os
eleitos;
-
nos sistemas eleitorais que distorcem a representação, fraudando
a vontade popular, através dos mecanismos distritais e/ou
barreiras e obstáculos para partidos pequenos;
-
na falta de coerência entre o projeto e o programa eleitoral e a
prática dos eleitos;
n
-
nas trocas partidárias sem perda de mandato, onde o Brasil deve
ser recordista mundial, resguardados pela lei;
-
na incapacidade desses sistemas garantirem a reprodução do
capitalismo com legitimidade frente a evidência dele ser
reprodutor da desigualdade e da exploração sociais.
Nossa
experiência de democracia participativa
Neste
quadro é que nossa experiência de onze anos de democracia
participativa, em Porto Alegre, adquire sentido e importância.
Sem desconhecer os limites das experiências locais e de que nossa
prática precisa estar inserida num projeto maior, que pense o
país dentro de uma nova concepção de mundo, não cabe cruzar os
braços e esperar que todos os problemas teóricos e estratégicos
estejam resolvidos para podermos atuar. Afinal, como diz Eduardo
Galeano, a utopia, mesmo quando parece afastar-se tem como
função nos obrigar a caminhar para alcançá-la.
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Nesta
última década, construímos, governo e movimento popular, uma
rica experiência participativa. Ela tem seu centro no Orçamento
público, o elemento mais importante, mas não o único, em uma
gestão municipal. Certamente, o grau de compreensão e
consciência é diferenciado entre os participantes, mas quem vive
essa prática dificilmente não adquire outra visão do Estado, de
seu funcionamento e do seu caráter. O que importa, porém, do
nosso ponto de vista é que na prática desenvolvida ressaltam
experiências que compõem ou tem a potencialidade de compor um
projeto maior que venha retomar o velho dilema de como construir e
garantir uma democracia conscientizadora e transformadora de si
mesma.
Não
pretendo retomar a dinâmica e os mecanismos de funcionamento
dessa experiência. Suas plenárias regionais e temáticas, sua
organização a partir de um Regimento Interno produzido pelos
participantes e que se aperfeiçoou ao longo da década de 90,
foram objeto do primeiro painel deste seminário. Nosso objetivo,
neste momento, é tentar refazer o elo de uma experiência
concreta com esse debate teórico anterior sobre a democracia
representativa e participativa.
n
Um
método de atuação política
Para
nós, essa questão é essencialmente programática,
constituindo-se numa reflexão e numa prática do campo político
democrático-popular, que as forças e partidos socialistas
pretendem representar. A questão democrática é central em
qualquer processo de resistência e superação ao neoliberalismo
predominante. A democracia participativa, por seu potencial
mobilizador e conscientizador, permite aos cidadãos desvendar o
Estado, gerí-lo e estabelecer um efeito demonstração para
outros setores da sociedade traduzirem este método para suas
esferas da luta política e da competência administrativa. Nosso
objetivo é estabelecer a ligação entre as questões
teórico-programáticas e nosso método de construção de uma
experiência de democracia participativa em seus elementos
constitutivos.
Assim,
as principais características da nossa experiência podem ser
resumidas emn alguns aspectos suscetíveis de servirem de
referência e de método, independente do conhecimento
insubstituível de cada realidade, para outras experiências.
A
primeira delas é a participação popular, direta ou
indiretamente, como no caso de Porto Alegre onde a participação
direta no Orçamento Participativo, regional e temática,
não é contraditória com uma rede de conselhos municipais
formados por representantes de entidades e associações que
também influenciam, fortemente, nas políticas públicas.
A
segunda característica é a prática direta, a ação
insubstituível dos cidadãos nas reuniões, discussões e
momentos de conhecimento dos dados, para que as pessoas se
apropriem dos elementos necessários para decidir, formem
comissões de controle, de fiscalização e tenham o espaço para
a cobrança e a crítica. Quanto mais isto for feito diretamente,
sem transferir para outros, sejam eles líderes comunitários,
sindicais ou vereadores, maior e mais rápido será o avanço da
consciência democrática.
A
terceira característica da nossa experiência é a auto-organização,
expressa na auto-regulamentação construída e decidida pelos
próprios participantes num saudável exercício de soberania
popular que não fique sempre a mercê de leis e decretos
decididos por outros. A experiência da auto-regulamentação foi
riquíssima, incorporando critérios que vinham da própria
prática desenvolvida, como por exemplo, conselheiros com
delegação imperativa e substituição ou revogação dos
mandatos quando conselheiros ou suplentes abandonam ou não
cumprem as funções assumidas.
Da
mesma forma, a experiência e o debate entre os participantes
levou-os a estabelecer também que funcionários da
administração com cargos de confiança do governo não poderiam
ser conselheiros a não ser que renunciassem a esta situação.
O
regulamento incorporou, igualmente, critérios de
proporcionalidade quando a comunidade não encontra consenso e a
disputa envolve várinos candidatos a condição de conselheiro,
bem como o espírito de solidariedade na hora de definir
variáveis (população, carência de equipamentos públicos) para
hierarquizar obras e serviços.
Ao
concluir, quero reafirmar que a nossa experiência não é uma
receita ou um modelo de exportação, mas uma prática que se soma
a outras e com as quais queremos dialogar e aprender na busca de
novos caminhos para nossas comunidades.
Nossa
convicção funda-se no processo histórico que nos ensina que
não há verdades eternas e absolutas nas relações entre a
sociedade e o Estado. Estas se fazem e se refazem pelo
protagonismo dos seres sociais. A busca de uma democracia
substantiva, participante, regida por princípios éticos de
liberdade e igualdade social continua sendo nosso horizonte
histórico e nossa utopia para a humanidade. Obrigado.
*Raul
Pont é prefeito de Porto Alegre (RS)
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