ORIENTE
MÉDIO
Como
promover a guerra em nome do “processo de paz”
Desde
1971, os Estados Unidos têm sido os únicos na arena
internacional a se opor a um acordo negociado pela via
diplomática para o conflito Israel-Palestina: o “processo de
paz” é um resumo deste desenrolar.
Noam
Chomsky*
Um
despacho recente da agência Associated Press (AP) sobre Camp
David (tarde, 25 de Julho) começa assim: “As conversações de
paz no Oriente Médio em Camp David sucumbiram terça-feira sob o
peso de reivindicações opostas a respeito de Jerusalém Leste.
Desapontado, o presidente Clinton disse ter tentando várias
abordagens sem, contudo, chegar a uma solução”. Clinton
externou esperança de que o processo possa continuar até uma
solução para o problema de Jerusalém Leste.
Para
se ter idéia do que está acontecendo, é interessante
retrocedermos alguns passos e observarmos os eventos correlatos a
partir de uma, digamos assim, perspectiva mais ampla.
Qualquer
discussão sobre o que seja chamado “processo de paz” – a
negociação que ocorreu em Camp David ou outra qualquer – deve
lembrar o significado objetivo da frase: por definição, o
“processo de paz” é aquilo que o governo dos Estado Unidos
esteja perseguindo.
O precedente cruel do ataque aos
sandinistas
Quem
tiver absorvido este princípio fundamental pode entender que o
processo de paz pode ser promovido pelos esforços claros feitos
por Washington para minar a paz.... Para ilustrar, em janeiro de
1988 a impressa noticiou a “viagem de paz” do Secretário de
Estado George Shultz à América Central sob a manchete “Shultz
Planeja Viagem Latina para Paz”. O subtítulo esclarecia o
objetivo: “A missão pode ser o último recurso para neutralizar
a oposição ao auxílio aos contra”. Os homens do governo
conceberam que a “missão de paz” seria “a única forma de
salvar” a ajuda aos contras face à "crescente oposição
vinda do Congresso.”
As
circunstâncias são importantes. Em agosto de 1987, sob forte
objeção americana, os presidentes da América Central haviam
alcançado um acordo de paz para o mais renhido conflito
centro-americano: os Acordos de Esquipulas. Prontamente, os
Estados Unidos agiram para miná-lo e em janeiro tiveram sucesso
absoluto. O único “elemento indispensável” citado nos
Acordos havia sido excluído: o fim do apoio americano aos contras
(os vôos de suprimento da CIA triplicaram de imediato, e o
terror promovido pelos contras cresceu). Washington também
eliminou o segundo princípio básico dos acordos: que as
precauções humanitárias seriam aplicadas aos agentes americanos
bem como aos nicaragüenses (por uma manobra americana, elas foram
impostas apenas à Nicarágua). Washington gestionou, da mesma
maneira, para extinguir a desprezada missão internacional de
monitoramento, a qual cometeu o crime de descrever fielmente o que
havia ocorrido desde a adoção do plano em agosto. Para a
consternação do Governo Reagan, a Nicarágua, apesar disso,
aceitou a versão dos acordos esboçada pelo poder dos Estados
Unidos, o que provocou a “missão de paz” de Shultz,
empreendida para adiantar os “processo de paz” assegurando que
não haveria recuos na operação de demolição.
Em
resumo, a “missão de paz” foi um “esforço desesperado”
de bloquear a paz e mobilizar o Congresso a apoiar o “uso ilegal
da força”, pelo qual foram recentemente condenados os Estados
Unidos na Corte Internacional.
Os únicos contra a paz
O
“processo de paz” na Oriente Médio é similar, ainda que mais
extremo. Desde 1971, os Estados Unidos têm sido os únicos na
arena internacional a se opor a um acordo negociado pela via
diplomática do conflito Israel-Palestina: o “processo de paz”
é um sumário deste desenrolar. Para revisitar rapidamente os
pontos essenciais, em novembro de 1967, sob iniciativa americana,
o Conselho de Segurança da ONU adotou a resolução 242 (UNSCR
242) sobre “terra por paz”. Como explicitamente proposta pelos
Estados Unidos e demais signatários, a UNSCR 242 clamava por um
acordo geral de paz com bases nas fronteiras de antes de junho de
1967, com no máximo pequenos e mútuos ajustes, nada oferecendo
aos palestinos. Quando o Presidente Sadat do Egito aceitou a
posição oficial dos Estados Unidos, em fevereiro de 1971,
Washington revisou a UNSCR 242 para prever uma retirada parcial de
Israel, tal como pretendiam os Estados Unidos e Israel. Esta
revisão unilateral é o que passou a ser chamada de “terra por
paz”, um reflexo do poder dos Estados Unidos no domínio da
doutrina e da ideologia.
O
despacho da AP quando do colapso das negociações de Camp David,
citado acima, ressalta que a manifestação oficial última dizia,
“num aceno para Arafat”, que “o único caminho para a paz
seriam as resoluções adotadas pelo Conselho de Segurança da ONU
após as guerras de 1967 e 1973 no Oriente Médio. Estes chamam
Israel a abrir mão dos territórios conquistados aos árabes em
troca de fronteiras seguras”. A resolução de 1967 é a UNSCR
242, que prevê a retirada total israelense, com no máximo
pequeno e mútuos ajustes; a resolução de 1973 simplesmente
endossou a UNSCR 242 sem mudanças. Porém, o sentido da UNSCR 242
mudou profundamente desde fevereiro de 1971, de acordo com as
ordem de Washington.
Sadat
alertou que a recusa americana e israelense da UN242 poderia
conduzir a guerra. Nem os Estados Unidos, nem Israel, levaram-no a
sério, adotando posições notadamente triunfalistas e racistas,
duramente denunciadas, ????A???????tEd??¼??c???/span>a posteriorispan style="font-style:normal">,
em Israel. O Egito lançou-se na guerra em outubro de 1973. Ela
quase se transformou num desastre para Israel e para o mundo: as
possibilidades de um tiroteio nuclear não eram pequenas. A guerra
de 1973 tornou claro até para Henry Kissinger que o Egito não
era um balaio de gatos que pudesse ser simplesmente
desconsiderado. Então, Washington desviou-se para sua habitual
estratégia de reserva: excluir o Egito do conflito para que
Israel, com crescente apoio dos Estados Unidos, pudesse continuar
a anexar os territórios ocupados e atacar o Líbano. Tal intento
foi alcançado em Camp David em 1978, aclamado desde então com o
grande momento do “processo de paz”.
Enquanto
isso, os Estados Unidos vetavam as resoluções do Conselho de
Segurança, propondo acordos diplomáticos que incorporassem a
UN242 mas não incluíssem os direitos dos palestinos. Os EUA
votavam a cada ano contra uma resolução similar da Assembléia
Geral (junto
com Israel e algumas vezes um ou outro estado-cliente), e por
outro lado bloqueavam todos os esforços pacíficos de resolução
do conflitos iniciados na Europa, nos Estados árabes ou pela OLP.
Esta constante rejeição de acordos diplomáticos é o
“processo de paz”. Os fatos reais têm sido longamente
omitidos pela mídia e esquecidos também na academia, porém é
fácil descobri-los.
Após 1991, a tática dos
bantustões
Depois
da guerra do golfo, os Estados Unidos estavam finalmente em
condições de impor sua própria posição de rejeição
unilateral e assim o fizeram, primeiro em Madri, no final de 1991,
e mais tarde nos sucessivos acordos firmados entre Israel e a OLP
desde 1993. Com estas medidas, o “processo de paz” avançou em
direção a arranjos do tipo dos batustões sul-africanos, que os
Estados Unidos e Israel preferiam -- como era óbvio qualquer
observador de olhos abertos --, e está perfeitamente claro nos
documentos e, mais importante, na história das operações. Isto
nos traz para o estado presente: Camp David, julho de 2000.
Ao
longo as varias semanas de deliberação, foi regularmente
noticiado que o principal obstáculo era Jerusalém. A notícia
final reitera esta conclusão. A observação não é falsa, mas
é um tanto distorcida. Soluções “criativas” foram propostas
para permitir autoridade simbólica palestina em Jerusalém – ou
como ela é conhecida em árabe, Al-Quds. Elas incluiriam
administração palestina dos bairros árabes (como Israel poderia
preferir, se racional), alguns acertos para os locais religiosos
muçulmanos e cristãos e uma capital palestina na cidade de Abu
Dis, perto de Jerusalém, que poderia ser renomeada como
“Al-Quds” com um pequeno passe de mágica. Tal empresa poderia
ter sido bem sucedida, e ainda o pode. Porém, um problema mais
áspero surge quando se faz a seguinte pergunta: O que é
Jerusalém?
Quanto Israel
conquistou a banda ocidental, em junho de 1967, anexou-se
Jerusalém de um modo não muito cortês: por exemplo, como foi
recentemente revelado em Israel, a destruição, em 10 de junho,
do bairro árabe de Mughrabi, próximo ao Muro das Lamentações,
foi perpetrada com tal pressa que continua desconhecido o número
de palestinos enterrado nas ruínas deixadas pelos tratores.
A farsa da “grande
Jerusalém”
Rapidamente,
Israel triplicou a área da cidade. Subseqüentes programas de
desenvolvimento, implantados com pequena variação por todos os
governos, visando estender as fronteiras da "grande
Jerusalém" bastante além. Mapas israelenses atuais
articulam os planos básicos de forma suficientemente clara. Em 28
de junho, o principal jornal de Israel, “Ha'aretz”, publicou o
mapa detalhando a "proposta israelense de colonização
permanente". É virtualmente idêntico ao "Mapa do
Status Final" do governo, apresentado no mês anterior. O
território a ser anexado em volta da largamente expandida "Jerusalem"
estende-se em todas as direções. Ao norte, vai bem além de
Ramallah, e no sul vai bem de Belém, as maiores cidades
palestinas das proximidades. Estas deveriam restar sob o controle
palestino, porém anexadas ao território israelense, e no caso de
Ramallah, cindida do território oriental palestino. Como os
demais territórios palestinos, ambas as cidades estão separadas
de Jerusalém, o centro da vida da Banda Ocidental, por
territórios anexados a Israel. A leste, o território a ser
anexado inclui a cidade de Ma'ale Adumim, que vem crescendo
rapidamente e estende-se até Vered Jericho, uma pequena colônia
que faz fronteira com a cidade de Jericó. A saliência alcança a
fronteira jordaniana. Toda a fronteira jordaniana deve ser anexada
às saliências de "Jerusalém" que dividem a Banda
Ocidental. Outra saliência a ser anexada mais ao norte
virtualmente impõe uma segunda partição.
A construção
intensiva e os projetos de colonização dos anos anteriores foram
tratados como "fatos consumados" que poderiam conduzir a
"colônias permanentes". Este foi o compromisso claro
dos sucessivos governos desde o primeiro "acordo do
Oslo" de setembro de 1993. Ao contrário do que se dizia, as
pombas oficiais (Rabin, Peres, Barak) estiveram no mínimo tão
fielmente dedicadas a este projeto quanto o tão condenado
Binyamin Netanyahu, apesar de haverem conseguindo conduzir tais
projetos com menos protestos. É uma história familiar. Em
fevereiro deste ano, a imprensa israelense noticiou que o número
de construções iniciadas cresceu quase um terço desde 1998
(governo Netanyahu) até o corrente ano (governo Barak). Uma
análise do correspondente israelita Nadav Shragai revela que
apenas uma pequena fração das terras destinadas às colônias
era realmente utilizada para agricultura ou outros propósitos. Em
Ma'ale Adumim, por exemplo, a terra destinada à colônia é 16
vezes maior que a área usada, e proporções similares são
encontradas por toda parte. Palestinos apresentaram petições
junto à Corte Suprema de Israel opondo-se à expansão de Ma'ale
Adumim, mas elas nunca foram deferidas. Em novembro último,
indeferindo um recurso, um juiz da Corte Suprema explicou que
"algum benefício para os residentes da cidades (palestinas)
vizinhas poderia advir do desenvolvimento econômico e cultural de
Ma'ale Adumim", que na realidade divide o Margem
Ocidental.
Um
“Estado” palestino retalhado e títere
Os projetos foram
levados à frente graças a benevolência dos contribuintes dos
Estados Unidos, por meio de uma variedade de dispositivos
"criativos", usados para superar o fato de que a ajuda
dos Estados Unidos está oficialmente vedada para tais
propósitos.
O
resultado pretendido é que um eventual Estado palestino se
constitua de quatro cantões na banda ocidental: (1) Jericó; (2)
o cantão mais ao sul, que iria até onde fosse Abu Dis (a nova
"Jerusalém" árabe); (3) o cantão mais ao norte,
incluindo as cidades palestinas de Nablus, Jenin e Tulkarm; e (4)
o cantão central incluindo Ramala. Os cantões seriam
completamente cercados por territórios a serem anexados por
Israel. As áreas de concentração populacional palestina
deveriam estar sob administração palestina, uma adoção do
típico padrão colonial que é o único resultado possível
enquanto Estados Unidos e Israel estiverem preocupados. Os planos
para a faixa de Gaza, o quinto cantão, são incertos: Israel pode
abrir mão deles ou pode manter a região costeira do sul e outra
saliência virtualmente dividindo a Faixa abaixo da Cidade de
Gaza.
Este esboço é
coerente com as propostas que têm sido formuladas desde 1968,
quando Israel adotou o "plano Allon" -- nuca formalmente
apresentado, mas que aparentemente pretende incorporar 40% da
Margem Ocidental a Israel. Desde então, planos específicos têm
sido propostos pelo ultra-direitista General Sharon, pelo Partido
Trabalhista e por outros. Eles são praticamente iguais na
concepção e no esboço. O princípio básico é que o
território aproveitável dentro da Margem Ocidental e os recursos
essenciais (basicamente água), continuarão sob controle
israelense, sendo a população controlada por um governo
palestino submisso, do qual se espera que seja corrupto, bárbaro
e complacente. Os cantões sob administração palestina poderiam
então prover de mão de obra barata e facilmente explorável para
a economia israelense. Ou, a longo prazo, a população poderia
ser "transferida" de um lado para outro, em nome de
promessas realizáveis cada vez a mais longo prazo.
É
possível imaginar esquemas "criativos" que pudessem
aplainar as questões relativas aos locais religiosos e à
administração de bairros palestinos em Jerusalem. Porém, o
problema fundamental esconde-se em outra parte. Não esta
absolutamente claro que seja possível resolver razoavelmente
estes pontos dentro do sistema de estados-nações que foram
impostas em todo o planeta através da conquista e dominação
ocidental, com suas conseqüências fatais dentro da própria
Europa por séculos, sem se falar nos seus efeitos para além do
momento presente. (Tradução: Gustavo Maia Jr.)
*
Noam Chomsky é lingüista e ativista político
norte-americano, conhecido também pela profundidade de suas
análises e denúncias sobre a “Nova Ordem” e o papel
imperialista dos EUA
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