SECRETARIA
DA JUSTIÇA DE PERNAMBUCO
Recife, 16 de dezembro
de 1999.
Ilmo. Sr.
Dr. FREDERICO C. BARBOSA
MD. Ouvidor Geral da SECRETARIA DA JUSTIÇA E CIDADANIA
NESTA
PROCESSO N.º 189/99
"Mudar o que
precisa ser mudado para que a vida possa um dia, ser mesmo
vida para todos". (Thiago de Melo)
Senhor Ouvidor,
A Interessada, pede
providências, no sentido de que atitudes sejam tomadas, para
prender os vagabundos, que se agrupam nas praças, esquinas,
estações etc., pedindo enquadramento no Código Penal, desses
infelizes.
Na verdade equivocou-se a Sra. ANDRÉA CORINA DE SOUZA pois
a vadiagem é punida pela Lei das Contravenções Penais, em
seu art. 59.
"Art. 59. Entregar-se alguém habitualmente à vadiagem
sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure
meios bastantes de subsistência ou prover à própria subsistência
mediante ocupação ilícita.
Parágrafo Único - A aquisição superveniente de renda que assegure
ao condenado meios bastantes de subsistência extingue a pena."
Este artigo fala de ocupações ilícitas, mas não esclarece
quais as ocupações ilícitas.
Sempre que houver o ilícito penal, vamos encontrá-lo no Código
Penal.
É uma matéria ampla de difícil entendimento, uma vez que a
conduta ilícita, já é tipificada em vários artigos do Código
Penal e pela Lei das Contravenções Penais.
"E agora, José?"
acontece que em Pernambuco, não há vadios, existem desempregados,
que podem até se agruparem, em pontos diversos da cidade,
para discutirem a miséria coletiva, e sobretudo a falta de
emprego.
A Carta Magna assegura a todo e qualquer cidadão o direito
de ir e vir.
Nós temos cidadãos:
sem teto,
sem emprego,
sem pão,
sem terra,
sem nada;
mas vagabundos não temos, só poderíamos falar que em Pernambuco
há vadios, quando houver oportunidade de emprego para todos
(economia de pleno emprego).
Nelson Werneck Sodré, em sua obra "Tudo é Política",
fls. 130, afirma:
"Os traços mais evidentes do chamado Plano Real têm sido,
em medida crescente, o desemprego maciço, o aprofundamento
espantoso da miséria e o vertiginoso crescimento da chamada
economia informal."
Diz ainda:
"O desemprego, aqui deriva direta, absoluta e puramente
da vigência das normas estabelecidas pelo neoliberalismo,
como acontece com os milhares (milhões) de elementos agrupados,
hoje nas áreas urbanas naquilo que se conhece como 'economia
informal' só o triste espetáculo apresentado por esse fenômeno
inteiramente novo no Brasil bastaria para denunciar a economia
enferma."
Segundo informações fornecidas pelo SINE, através de Dra.
Lúcia Moreira é pesquisa da DIEESE, o número de desemprego,
em abril do ano fluente, só na Região Metropolitana do Recife
é de 333.000 (trezentos e trinta e três mil) desempregados.
Com muita propriedade o mestre Roberto Lyra afirma:
"O Estado condena a vadiagem, e sustenta vadios. Difunde
e cultiva a sujagem cerebral, facilita o envenenamento moral,
realiza o confisco da personalidade." ("Novo Direito
Penal, pág. 110).
A prisão do homem desempregado, alcunhado de vadio, é transformá-lo
em delinquente.
O desempregado não é o homem que não quer labutar, é o cidadão
fabricado pelo modelo vigente para se tornar inerte.
São os homens que morrem, sem saudade, na madrugada da vida.
A solução é que seja proporcionada a distribuição de renda,
visto que o Brasil é o campeão de concentração de rendas,
e trabalho aos pseudos vadios, farrapos humanos, desolados
morrendo de fome lentamente.
Diz Roberto Lyra, citando Silvio Romero em sua obra "Criminologia",
pág. 112:
"O homem é o que ele come."
O que come o miserável? Nada.
O que pode se exigir de quem não come? Nada.
Não podemos nos ater ao sintoma produzido pelo sistema sócio-econômico-político,
que no caso é o desempregado, vitimado pelo atraso das oligarquias
que há meio milênio formam degradados, os mantendo entre o
vazio e o nada, na quase eterna angústia do existir.
Trabalhar sobre o sintoma sem uma avaliação estrutural com
propostas claras que alcance e resgate a dignidade humana,
é minimizar as causas que produzem o desemprego.
Devemos observar a expressão máxima em nossa cultura judaico-cristã,
a Bíblia, livro que encontramos um Deus compromissado com
o excluído, em Êxodos 3,1 a 15vv, onde o Criador realiza a
opção pelo oprimido, será que o nosso povo seria indigno da
misericórdia divina? E todos não poderíamos deixar a semente
de Moisés aflorar em nossa prática cotidiana? É potencialmente
viável, porém o nosso eterno egocentrismo nos aprisiona em
nosso mundico tornando-nos emprestáveis ao projeto divino,
pois Deus é amor e em que nos tornamos, quando não amamos?
Em besta das sombras do egocentrismo.
Em 15 de maio de 1891 um novo momento seria criado e fundado
por sua Santidade Leão XIII na magistral Encíclica Rerum Novarium,
onde os jovens eram chamados para assumirem o seu papel no
mundo optando pelo oprimido, pois é a grande lição legada
pelo cristianismo, desde tempos memoráveis, e deformada pela
cristandade a serviço dos poderosos, o trabalho iniciado pelo
Papa Vermelho, é um resgate do papel cristão e da igreja em
favor do outro, trabalho coroado de um brilho singular, e
confirmado por João XXIII e Paulo VI.
No México foi dado um outro passo fundamental na denúncia
da exclusão do homem pelo homem.
O documento de Puebla afirma:
"Cada vez mais os ricos ficam mais ricos e os pobres
ficam mais pobres."
Assim, não podemos usar o termo "vagabundos", pois
são irmãos abandonados à própria sorte, filhos do descaso,
órfãos da estrutura social marcados pelos preconceitos que
dinamizam a ação da sociedade.
Sugiro o arquivamento deste processo.
A consideração superior.
MÉRCIA ALBUQUERQUE
FERREIRA
Defensora Pública