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Pareceres

SECRETARIA DA JUSTIÇA DO ESTADO DE PERNAMBUCO

Recife, 20 de outubro de 1999

Ilmo. Sr.
DR. FREDERICO C. BARBOSA
MD. Ouvidor Geral da Secretaria da Justiça e da Cidadania
NESTA

"Mas o erro, o tremendo erro, está no crer que aqueles que estão recolhidos na penitenciária sejam malditos" (F. Carnelutte - As Misérias do Processo Penal).

De imediato, não posso deixar de confirmar as críticas do interessado, mas afirmar que as mazelas do sistema penitenciário são bem mais graves, e mais desumanas do que a denúncia da notícia. Devo esclarecer que essa desgraça, não é "privilégio" do nosso Estado, atinge todo país.

"Sob um, certo aspecto, pode se assemelhar a penitenciária a um cemitério; mas se esquece que o condenado é um sepultado vivo" (F. Carnelutte).

Outro não é o pensamento de Dostoievsk - "Recordação da Casa dos Mortos".

"Prisão é uma casa morta viva, uma vida à parte de homens à parte.
Somos vivos sem vida, e mortos que não foram enterrados, não é mesmo?"

Roberto Lima em suas magistral obra - "O Novo Direito Penal", preconiza:

"Prisão é morte moral, morte cívica, morte civil, morte mesmo pela consumação; é pior do que a pena de morte. Eliminação lenta, 'mofada', 'apodrecendo', dizem as vítimas.
A prisão é a escola anormal de periculosidade, é curso de aperfeiçoamento celerado mantido pelo Estado. Nem intimida, nem regenera. Embrutece e perverte. Insensibiliza ou revolta".
A prisão no Brasil, é um organismo de destruição, não há respeito à pessoa do preso, não há preocupação em reintegrar o homem preso à sociedade como um cidadão que passa a produzir, não há cuidados com a saúde física e moral, aniquila-se a auto estima, trucidam-se os que reagem.
Qual o futuro do preso?
Qual o projeto de vida do preso?
Como a sociedade recebe o ex-presidiário?
Qual o perfil do nosso sistema penitenciário?
A prisão, a pena, não podem ultrapassar a pessoa do delinquente - é a lei, mas ultrapassam, aniquila, desrespeita, incentiva as visitas a se retraírem, com o tratamento humilhante que lhes dispensam: as mulheres são obrigadas a se despirem e têm as partes pudendas pesquisadas.
A maioria dos agentes penitenciários, estigmatizados, despreparados, para lidarem com a massa carcerária, criam dificuldades, hostilizam os presos, fatos que são do domínio público.
Os visitantes perdem a auto estima ou desertam.
A situação dos nossos presos me faz lembrar - Alencar Furtado - "Salgando a Terra":

"Que não hajam lares em pranto; filhos órfãos de pais vivos... quem sabe mortos talvez. Órfãos da talvez e do quem sabe. Para que não hajam esposas que enviuvem com maridos vivos, talvez; ou mortos quem sabe? Viúva do quem sabe e do talvez".

O núcleo familiar do preso em geral apodrece e começa o círculo vicioso: filhos de presos, futuros delinquentes; as esposas, em grande maioria, ou se prostituem, ou se tornam vivas mortas.
Tal afirmação corresponde à verdade, em grande percentual.
Os presos são amontoados numa área de exígua proporção, mal nutridos e privados das potencialidades primordiais.
Desnecessário lembrar que o respeito à integridade física e moral do preso é garantida constitucional e, na verdade, não se cumpre a Lei Maior.
O ex-detento não tem futuro, porque é execrado pela sociedade, não encontra trabalho, é rotulado de marginal, e volta ao crime.
O sistema penitenciário onera o contribuinte, sem o retorno positivo. Os presos vegetam, multiplicam-se os vícios, deixam de acreditar nas autoridades, no outro, no Estado e na sociedade.

"Um dia na prisão, é como mil dias fora dela. Mas nada pode acontecer de pior ao homem do que a perda da liberdade" (Ho Chi Minh - Diário de Prisão).

Para que o povo acredite no ex-presidiário e o acolha em sociedade, basta que se transforme o sistema penitenciário, cumprindo-se a Lei de Execução Penal.
O mestre F. Carnelutte, em "As Misérias do Processo Penal":

"Precisa-se pouco para compreender que ao invés do cemitério, deveria a penitenciária ser um hospital". (F Carnelutte - obra citada).

A grande maioria da população carcerária é de pobres e jovens analfabetos, abandonados pela família e pelo sistema.

"Claro que pobre é quem nada tem. Mas, ainda mais pobre, é aquele que não tem 'ninguém'. Há algo para o pobre pior que a pobreza: solidão. Seu estado miserável cria o vazio ao seu redor". (Raaul Follereau).

A disciplina, o trabalho, o lazer, o contato com a família e com o mundo exterior, além do consolo de ser ouvido o encarcerado, como fazia Frei Damião, para mim, o protetor dos Ouvidores, é exatamente necessário para transformar os fantoches, os voudus, em homens.
Diz Abbé Pierre:

"Na medida em que colocamos nossas mãos, na mão de quem sofre, encontramos uma outra mão, a mão de Deus".

No encontro do delegado com Graciliano Ramos, ao chegar na cadeia, houve este diálogo:

"Aqui não há direito. Escutem, nenhum direito. Vocês não vêm corrigir-se, estão ouvindo. Não vêm corrigir-se: vêm morrer".

A inadequação de cargos e funções, a falta de vocação e supervisão, o corporativismo, provocam impunidade e estimula a intolerância.
Faz-se necessário uma dinamização, curso de treinamento do pessoal penitenciário em todos os níveis
A falta de preparo do pessoal penitenciário dificulta a composição de grupos de trabalho para uma ação positiva tanto aos encarcerados quanto à comunidade.
O agente penitenciário não deve conduzir arma, deve ser profissionalizado, colaborar na ressocialização do preso, manter a disciplina, o regulamento do estabelecimento prisional.
A visita do Juiz da Vara das Execuções Penais aos estabelecimentos penais é importantíssimo.

"A função social do Juiz reclama espírito aberto, tomada de consciência exata das novas dimensões da justiça penal, zelo pelo direito da pessoa humana. O Juiz Penal é o símbolo da justiça humana" (Marc Ansel).

Hoje apesar do progresso da humanidade, os estabelecimentos penais são os mais perversos e destruidores do homem, sendo o preconceito o maior tumor dos estabelecimentos penitenciários, pois determina o destino e o porvir das existências amargamente reduzidas ao ostracismo social, político do sujeito transformado em objeto que não reluz, mas a sua imagem no espelho social, corpo sem alma, vidas sem esperança.
Bem define Voltaire, em seu livro "Dicionário Filosófico", a saga e o jugo de tal sentença.

"O preconceito é uma opinião sem julgamento. Assim, em toda a terra, inspiram-se as crianças todas as opiniões que se desejam antes que elas as possam julgar" (pág. 186 a 187).

E a maior expressão do preconceito é a prévia determinação do status e papel social do Ser na estrutura econômica. O indivíduo já é pensado como perdedor, sentenciado à morte social.
A prisão reproduz a expectativa do organismo social. Preso é a criatura que é desprovida do Criador. Como Prometeu, deve purgar pela eternidade, sem direito à defesa, silenciado no charco de sua miserável vida, previamente determinada, por nosso tão perverso Estado, por uma elite míope, por uma sociedade alienada.
O sistema penitenciário é o reflexo de nossas omissões e de nossos desejosa hostis, dissimulados em um macabro complô projetivo: eles, os presos, são os culpados que carregam a dor, que se perdem na degradação física e moral, para que todos que ainda estão intocáveis, possam dormir em paz.
Até quando tal infâmia ficará nos calabouços da ignorância? Provavelmente até o dia em que sairmos da escura caverna, como foi tão bem refletida por Platão em seu diálogo "A República":

"Imagina uma caverna subterrânea, provida de uma vasta entrada aberta - a luz é que se estende ao largo de toda a caverna, e uns homens que lá dentro se acham desde meninos, amarrados pelas pernas e pelo pescoço de tal maneira que tenham de permanecer imóveis e olhar tão só para frente, pois as ligaduras não lhes permitem voltar a cabeça; atras deles e num plano superior arde um fogo a certa distância e entre o fogo e os encadeados há um caminho elevado ao longo do qual faz de conta que tenha sido construído um pequeno muro semelhante a esses tabiques que os titeriteiros colocam entre si e o público para exibir por cima deles a sua muralha". (pág. 153).

Se por um instante o Interessando acha que esses homens são os nossos encarcerados, devo dizer que comete um ledo engano; são sim, todos nós que alienados, imaturos, endementados, ausentes do processo histórico social, sem consciência - histórico-política e despido do juízo crítico-analítico, mantemos a condição de subumano, onde tudo é reflexo, consequência na nossa falta primeira que é manter e transferir ao Estado, ao governo, a nossa responsabilidade, como agente da transformação, desse caótico modelo, que nos é imposto pela globalização e adotado por todos.
Presos somos todos nós que necessitamos de manter um determinado grupo então vil estado para não termos que nos incomodar com as próprias correntes, miseráveis, guiados por uma visão sem parâmetro e objetivos, talvez por termos "apagado" de nosso cotidiano as grandes interrogações da humanidade: quem sou eu, de onde vim, para onde vou, nos protegendo insanamente da angústia-mãe, que seria capaz quem sabe, em nos devolver a capacidade de colocarmos em nossas mãos o destino, e aí reestruturarmos as relações políticas, econômicas e sociais geradoras das senzalas, onde o Estado foi convertido em feitor e a sociedade civil em legalizadora do delito de omissão.

"O indivíduo livre não entende a nossa vida, além das grades, as ocilações de caráter e da inteligência, desespero sem causa aparente, a covardia substituída por atos de coragem doida.
Somos animais desequilibrados, fizeram-nos assim, deram-nos almas incompatíveis".
"Nunca a luta pela vida me pareceu tão feia e tão dura" (Graciliano Ramos - Memórias do Cárcere).

Temos que lutar contra as injustiças sejam quais forem as consequências, não importa se aceitas ou não.

"O processo social da reforma jurídica como um problema seja descobrir de que forma atinge a sensibilidade adequada a sociedade, em relação a necessidade que ela tem de realizar mudança no sistema de justiça criminal" (Alberto M. Binder).

Preso não vota, então não acresce nada aos políticos. Ao contrário, os governantes afirmam que é um "peso morto", onerando cada vez mais o orçamento financeiro face as despesas com o mesmo em suas "jaulas".
O preso sempre foi um renegado pela sociedade, tendo todos os seus direitos aviltados, inclusive a morte é tida como coisa normal "sem flores nem velas, nem uma fita amarela".
Exemplo do que afirmamos: há pouco mais de três anos, houve um "acidente" do qual resultou em morte de um dos presos que inexplicavelmente, foi "fritado" na cerca elétrica da Penitenciária Barreto Campelo, e nada se sabe quais as providências tomadas a respeito desse assunto, o qual está hibernando.
É do nosso conhecimento que o então Secretário de Justiça, Dr. Marcos Cabral se rebelou contra a prática de tal absurdo, determinando o desligamento.
O Ministério Público, através do Dr. Gustavo Rodrigues de Lima, intentou uma ação que muito contribuiu para abolir essa "pena de morte".
Na gestão do Secretário, que sucedeu Dr. Marcos Cabral, morreu outro preso eletrocutado.
Pergunta-se: será que a cerca foi religada, posteriormente? Não se tem qualquer notícia desse assunto, e de logo entendemos que por ter sido vítima um apenado, as vozes se calam. Onde andará o inquérito?
A família da vítima continua esperando o resultado do processo... e a Justiça, como "Carolina", de Chico Buarque de Holanda, não vê o tempo passar.
O preso também tem direito a observação científica e classificação do grau de emendabilidade.
A liberação sem prévio preparo é traumatizante, é fator de delinquência.
O condenado não tem o vil metal, não entende a lei, por determinação de um Juiz, como patrono, um Defensor Público, na incerteza se terá de volta a liberdade perdida.
Aliás, Ulisses Guimarães disse em um dos inúmeros discursos que proferiu:

"O homem é a liberdade...".

hoje, apesar do progresso da humanidade e do culto à liberdade, são mais cruéis e degenerativa as prisões.
Ninguém se preocupa com o delinquente nem antes, nem durante, nem depois da prisão.
Os índices de criminalidade são apenas a ponta do iceberg, as causas estão submersas: baixo índice de escolaridade, concentração de renda, alto índice de desnutrição, entre outros.
No momento histórico, a administração atual tem que gerenciar este débito social, que se avoluma como bola de neve, cada ano maior. Enquanto não se eleger a criança com prioridade das prioridades, não haverá como reverter essa tendência histórica. O que se pode esperar de uma sociedade que permite que 55.000 (cinquenta e cinco mil) crianças busquem nos lixões, meios para sua sobrevivência além de buscarem nesses locais infectos, motivações para o exercício do seu imaginário. Uma sociedade que é omissa, diante de tamanho horror, como motivá-la para que ela revise a tradição cultural da relação Estado e preso.
Roberto Lira citando A. Lacassagne documentou estas conclusões:

"As sociedades têm os criminosos que merecem. O meio social é o caldo de cultura da criminalidade; o micróbio é o criminoso, que não tem importância senão quando encontra o caldo que o faz fermentar".

Diante da escassez de recurso resultante da crise econômica que se abate sobre o território nacional, Além da inversão de valores onde se subordina as necessidades básicas do cidadão há compromissos com instituições internacionais.
Isto posto, não vislumbro a curto e longo prazo (de dois a cinco anos), a possibilidade de infletir a tendência histórica do horror que vem se caracterizando a décadas a política penitenciária.
O apenado na sua maioria é apenas o sinal de uma sociedade doente.
A consideração superior.

Mércia Albuquerque Ferreira
Defensora Pública

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