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Matérias na Imprensa

Mércia Albuquerque
Jornal do Commercio – 16.01.1989

Seus primeiros passos na advocacia foram em defesa dos presos políticos?

E esse escritório meio-clandestino funcionava onde?

Qual o primeiro preso que você defendeu?

E nesse processo estava...?

Quem é Eduardo Ramirez?

 

Os clandestinos da liberdade 

Em 1964, Mércia Albuquerque estava se iniciando na advocacia. Seu projeto profissional não passava pelas dificuldades que enfrentavam os presos políticos. Mística, sem qualquer compromisso político, o que ela pretendia mesmo era tratar de causas ligadas ao menor abandonado. Um dia, ela foi convidada pela médica Naíde Teodósio para participar de uma reunião política. A partir de então, a sua vida mudou totalmente. Passou a fazer reuniões secretas com outros advogados, do Recife e de outros Estados. Objetivo: encaminhar a defesa de dezenas de presos políticos. Durante uma hora e meia ela conversou com Ronildo Maia Leite. Iniciamos hoje a publicação do seu longo depoimento:

Seus primeiros passos na advocacia foram em defesa dos presos políticos?

Mércia – Exatamente. Logo após a minha formatura, houve o golpe de 1964. Eu não era de nenhum quadro político. Alguns advogados começaram a se movimentar em defesa dos presos. Uma vez a Dr.ª Naíde Teodósio fez uma reunião em sua casa e eu fui incluída. Eu não tinha nenhuma experiência ainda. Participei de quase todos os processos de Pernambuco, mas não era eu sozinha. Existiu uma equipe que me apoiava, de advogados que não queria aparecer. Por exemplo, Afonso Cruz, de Minas Gerais. Eu ligava o telefone para ele, ditava os pontos principais do processo; ele elaborava a defesa e eu encaminhava. Roberto Furtado, em Natal, também colaborava. Aqui, Sérgio Murilo e o próprio professor Rui Antunes. Eu elaborava a defesa, levava para o professor analisar e verificar se estava boa.

O professor Heleno Cláudio Fragoso, no Rio, também me apoiava. Quando eu tinha dúvidas, ligava. Encaminhava as peças do processo e ele fazia um esquema, elaborava rapidamente a defesa. Sozinha eu não tinha condições de fazer esse trabalho imenso, a maioria das pessoas não queriam aparecer, com medo da repressão. O meu primeiro contato mesmo com problemas assim, de pessoas envolvidas e processadas, foi com Jarbas de Holanda.

Fale mais dessa reunião na casa da Dr.ª Naíde Teodósio.

Mércia – Ela já estava sendo processada em liberdade. Eu a encontrei no Palácio da Justiça. Existia uma desorganização na defesa dos presos. Existia o temor de alguns advogados. Então, ela resolveu essa reunião no sentido de uma frente para defender os presos políticos, principalmente aqueles que não tinham condições de pagar. Participavam várias pessoas. Eu não recordo os nomes agora. Futuramente, fazendo um levantamento na minha documentação...

E esse escritório meio-clandestino funcionava onde?

Mércia – Esses contatos eram feitos geralmente no escritório do Dr. Juarez Vieira da Cunha; na minha residência, e na residência de algumas pessoas que eu prefiro não declinar o nome. Naquela época, eu prometi que jamais diria o nome dessas pessoas.

Qual o primeiro preso que você defendeu?

Mércia – O primeiro foi g. eu fui com Dr. Juarez à Casa de Detenção do Recife. Ele fora apanhar uma procuração, então eu estava grávida, esperando Garabim. Gregório olhou para mim e falou assim: “Olha menina, eu quero você na procuração, porque você vai até o fim”. Eu achei graça, pois não conhecia g. eu o conheci depois do golpe de 64. Então, ficamos amigos, e eu passei a funcionar no processo dele.

Agora o fato interessante é que eu estava em casa, chega Eduardo Ramirez e me fala, isso logo depois de movimento de 64. Ele me pede para acolher Jarbas de Holanda Pereira na minha casa. Aí, eu pergunto pra ele assim: Quem é esse homem? Eu nem sabia que Jarbas era vereador. Meu projeto profissional era lidar com o menor infrator. Então, Eduardo me disse que Jarbas era vereador, que um outro vereador o havia tirado da Câmara porque estava querendo prendê-lo e ele estava sem nenhum lugar para ficar. Eu disse que o trouxesse. Fiquei meio apreensiva. Mas, diante do quadro que ele falava, que a Polícia desenvolvia uma caçada contra Jarbas, aceitei. Jarbas chegou. Não fiz nenhuma pergunta. Os dias correram. Eu não perguntei sequer se era do Partido Comunista, o nome dele todo, nada disso. Nem as implicações que pesavam sobre ele.

O Ramirez e um rapaz chamado Marcelo, que não é Marcelo Santa Cruz, procuravam um local seguro para tirar Jarbas da minha casa, depois, Jarbas era namorado da esposa, da atual esposa dele. Ela resolve vir à minha casa, para perguntar-me se eu sabia alguma coisa referente a Jarbas. Quando ela entrou tomei o maior choque, porque eu sabia que ela estava sendo seguida pela Polícia. Quando ela entrou, deu um grito quando viu Jarbas. Então eu disse: Esse homem tem que sair imediatamente. Ele ficou ainda até a noitinha. Depois saiu. Quando chegou em Boa Viagem, o número do prédio que lhe deram não existia. Ele vem voltando. Quando chega na ponte do Pina, está a Polícia dando uma batida. Ele desce do carro e vem até aqui, consegue passar sem que a Polícia perceba e vem aqui pro Edifício Ouro Branco. Bateram na vidraça e eu disse: nossa, é a Polícia. Não sei dizer nada. Guardem esse homem, vou apanhar como o diabo. Quando eu abri a porta, era Jarbas. Então, ele me contou o ocorrido e ficou em casa mais uns dias, até que uma noite vieram buscá-lo e eu só voltei a ver o Jarbas depois, quando fui convidada para defendê-lo no processo de PC. Gregório Bezerra era o cabeça do processo.

Depois de algum tempo fui advogada dele, nesse processo de Gregório; do qual ele foi liberado através de habeas-corpus, sobre o fundamento de inexistência da denúncia e falta de justa causa. Esse habeas-corpus foi feito por mim e pelo Dr. Paulo Cavalcanti, assinado por nós. Posteriormente, ainda respondeu ao processo da Loteria. Junto com Evaldo Lopes Gonçalves e eu fui advogada dele. Depois ele foi embora para São Paulo. Algumas prisões. Todas as vezes me chamava e a esposa dele também. Posso dizer que agiu comigo até hoje com dignidade. É uma pessoa íntegra.

E nesse processo estava...?

Mércia – Evaldo?

Evaldo Lopes Gonçalves, que foi meu colega no jornal “Última Hora”?

Mércia – É. Ele sofreu muito na prisão, foi muito torturado. Jarbas de Holanda foi preso em São Paulo e sofreu muito, mas nunca incriminou ninguém, é um sujeito da maior decência e da maior responsabilidade.

Quem é Eduardo Ramirez?

Mércia – Eduardo Ramirez, era um estudante muito jovem na época. Acredito que nem era de partido nenhum, apenas era amigo de Jarbas. Hoje, é professor universitário, aqui no Recife.

Houve um processo interessante aqui. O de José Moura. Ele foi denunciado junto com Valmir Costa, em 25 de fevereiro de 69.

Moura era presidente do Diretório Central de Estudantes da Universidade Federal de Pernambuco. Agora, o que é interessante é que esse careta não pertencia a nenhum partido político, de direita ou de esquerda. Era estudante que contestava irregularidades na Universidade Rural. Isso irritava muito o Reitor, porque Moura estava sempre contestando.

No Dia da Bandeira, um professor passou a palavra a Moura, por ser do Diretório. Ao fazer o discurso, ele citou versos de Castro Alves: “Antes tivesse sido rota num campo de batalha do que servires a um povo de mortalha. Que povo é este que sua bandeira para cobrir tanta infâmia e covardia”. Mais adiante, ele dizia: “governo de opressores, assassinos de estudantes, quatro anos de ditadura a venda da Pátria”.

O reitor Cláudio Martiniano, após as festividades o denunciou ao 4º Exército e serviu também como testemunha de acusação. Ele acusou o Moura; e eu achei muita graça, de cantar com os colegas o Hino Nacional de maneira fria e impatriótica e de ter cantado uma música de Vandré, que ele achou também um atentado. Na auditoria, o Reitor se irritava comigo, porque ele confundiu os versos de Castro Alves com Olavo Bilac. Ele dizia o seguinte: “Este estudante proferiu um poema subversivo de Olavo Bilac”. Aí, eu disse pra ele: “Veja que Reitor o senhor é, que nem os versos de Castro Alves soube decorar. Esses poetas são diferentes em tudo”. Ele ficou muito chateado comigo. Foram chamados vários professoras pra depor contra Moura. O professor Anísio Ferreira fez acusações mais ou menos semelhantes; que Moura fez um discurso interrompido por vibrantes aplausos, efusivamente cumprimentado pelos estudantes. Também denunciou estudantes que eu não cheguei a conhecer, Leopoldo Montalverne e José Bezerra de Araújo. Mas ele ficou por aí. Ao Dr. Cláudio Martiniano Ferreira Silva, eu indaguei se Moura teria respondido inquérito na Universidade, para que esse inquérito fosse para o 4º Exército. A Universidade, antes não apurou o fato, pra poder mandar dados mais concretos. Não houve inquérito, mas uma denúncia ao Conselho Universitário, acusando Moura de subversão. Foi absolvido por 7 votos contra 2.

Depois disso, a situação de Moura tornou-se um inferno. Ele morava num apartamento com um rapaz. A Polícia entrava de madrugada, virava o apartamento e dizia: “Diga ao Moura que quando nós o encontrarmos, o mínimo que vai acontecer é que vamos arrancar sua cabeça a bala. Moura não tinha dinheiro. Eu comecei a me envolver emocionalmente. Eu não era política, sou até mística e continuo; sempre fui muito mística, e ficava angustiada. Então resolvi tirar Moura daqui. E uma das coisas que mais me aborrece no livro de Paulo Cavalcanti é quando ele diz que Gadelha, Francisco Gadelha, um estudante de Medicina, mudou de um lado para o outro. Noa houve isso. Gadelha nunca foi político também. Eu procurei o Gadelha porque tinha sido advogada, em outra situação, da família dele. Solicitei que ele me ajudasse. Então, o pânico dominava. Eu queria tirar Moura daqui do Recife. Fui encontrar com Gadelha, ele estava com a namorada. A namorada lhe disse: “Se você for, eu acabo”. Ele disse: “Está acabado”. E o rapaz não era político, era só uma solidariedade.

Pintavam o Moura como demônio, quando o rapaz era um estudante, só contestando. Então, eu saí com Moura, e Gadelha disse: “Vamos pra Palmares. Em Palmares – eu vou deixar de citar o nome da pessoa, porque também prometi guardar segredo – eu tinha um amigo de extrema direita, anticomunista e racista, todos os “istas”. Eu fui à casa dele. Expliquei: esse menino é estudante, contei tudo sobre Moura, está sendo processado, querem matá-lo. Agora, pela nossa amizade, eu queria saber se você pode tirá-lo daqui. Ele disse: “Deixa o menino”. Eu disse: “Eu não tenho dinheiro pra dar pra ele”. Ele disse: “Deixe o dinheiro, sei o que vou fazer, estou lhe dando a palavra”. E mandou Moura pra São Paulo.

Moura esteve lá e voltou. Quando chegou aqui, estava muito pior a perseguição contra ele. Então, eu disse: Olha Moura, você vai ter que sair novamente. Arranjei outro carro e saímos pra Maceió.

Existia Chica, uma amiga minha de muita idade. Eu disse a ela que estava muito doente pra levar uma pessoa sozinha. “Você quer ir comigo?”. Ela disse: “Olha, eu tenho muito medo de comunista. Eu tenho medo mas vou”. Quando chegamos em Palmares, paramos num bar. Quando desci, havia mais cinco investigadores.

Voltamos pro carro. Eu passei e perguntei pros investigadores: “O que estão fazendo aqui?”. Eles: “Estamos esperando o Zaratini que fugiu”. Então, o Moura foi ao banheiro. Voltamos, tomamos o carro e levei Moura a Maceió. De lá ele foi pra São Paulo. Eu vim a reencontrá-lo três anos depois, na porta do Teatro São João. Fazia um frio intenso. O fato me comoveu. Ele vinha tremendo de frio. Tirei um blusão preto e dei pra ele vestir, eu estava com dois...

Posteriormente, ele foi preso em São Paulo. Fui advogada dele.

Agora teve uma coisa interessante. Eu lembro de outra coisa. Na revista do Núcleo de Preparação de Oficiais da Reserva de Maceió, de 79, encontrei a poesia que Moura declamou colocada lá, na revista.

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