GREGÓRIO
BEZERRA: O CENTENÁRIO DE UM VALENTE
JORNAL DO COMÉRCIO – Recife, 12.03.2000 – pág.
4 (POLÍTICA)
Sérgio Augusto Silveira
Há
17 anos morria em São Paulo aquele que, já em vida, passou a ser
considerado como um dos maiores heróis populares da política brasileira,
Gregório Bezerra. No dia 13 deste mês, Gregório, que morreu aos
83 anos depois de uma vida de militância comunista contra o capitalismo
e as ditaduras no País desde os anos 30, completaria 100 anos
de nascimento. Este centenário vem sendo comemorado desde o ano
passado, quando mereceu uma placa na calçada do monumento Tortura
Nunca Mais, no Recife, por iniciativa da Associação Pernambucana
de Anistiados Políticos, partidos de esquerda e ex-colegas do
PCB, como o ex-vereador Roberto Arrais.
O
mito em torno de sua figura, capaz de mobilizar entidades, inspirar
escritores e até disputa pela ‘paternidade’ das comemorações do
seu centenário, deve-se ao seu exemplo de firmeza no cumprimento
das missões que recebia do PCB, ao enfrentar 20 anos de prisão,
as torturas da polícia e do Exército e a discriminação no partido.
Gregório organizou e pôs em funcionamento pelo menos uma centena
de sindicatos rurais de orientação marxista em quase todos os
Estados. Seu exemplo é reconhecido até pelos antigos inimigos
ideológicos. Quem o conheceu de perto no corpo a corpo da militância,
vê mais uma razão para o carisma: seu discurso coloquial de velho
camponês e de imediata comunicação com o povo. Esta foi sua grande
arma, temida pelos governos que se sucederam até o regime dos
generais, derrubado em 1985.
Integrante
do Comitê Central do PCB, ao lado do lendário chefe comunista
no País, Luiz Carlos Prestes, Gregório sempre disse que “um revolucionário
deve ser, antes de tudo, um audacioso”, e deu exemplo disto quando,
no Recife, deflagrou o movimento de insurreição planejado pela
Aliança Nacional Libertadora para assumir o poder, tomando de
assalto o CPOR, do qual era sargento-instrutor. o movimento fracassou,
ele ficou preso 10 anos até o final da ditadura Vargas, em 1945,
mas o sargento criou fama, principalmente em suas ações para organizar
e trazer para o partido os trabalhadores do campo. Com este discurso,
Gregório sai, em 1946, candidato a deputado federal constituinte
pelo PCB legalizado. É eleito com a maior votação na Região Metropolitana.
Os trabalhadores, assim como parte da classe política, têm, até
hoje, um juízo dúbio acerca deste líder, ora evitando falar em
seu nome devido ao estigma de comunista, ora vendo nele uma espécie
de Robin Hood.
Gregório
sensibilizou de fato o Recife e o País para o seu nome no momento
em que foi vítima de tortura em público, logo após o golpe de
1964, quando, aos 64 anos, foi preso e arrastado por um destacamento
militar, acorrentado e espancado nas ruas do bairro de Casa Forte.
A cena chocou a cidade. Mas o calvário de Gregório aconteceria
também em suas fileiras, já que o Comitê Central do PCB o hospedou,
mas nunca reconheceu sua capacidade de decidir e projetar ações
políticas, vendo nele um velho camponês experiente, disciplinado,
mas simplório, pronto apenas para cumprir tarefas. Nascido no
município de Panelas, no Agreste pernambucano, paupérrimo, menino
de rua que teve mais tarde só a instrução recebida no Exército
e a doutrinação partidária, Gregório não era um intelectual como
Prestes. Esta simplicidade o fez ser o preterido até no uso do
microfone nos comícios, esquecido por quem se dizia seu aliado,
a ponto de ser forçado a assumir uma candidatura errada nas eleições
de 1982. Filiado ao PMDB, após acusar o PCB de desvio direitista
e sair da legenda, concorreu a deputado federal, obtendo apenas
12.156 votos sendo uma vítima do grande confronto que começava
entre Jarbas Vasconcelos e Miguel Arraes. Ambos se desafiavam
para ver quem seria mais votado, o nisso concentraram mais de
350 mil votos.
Alto,
rosto avermelhado, olhos verdes e fala compassada, Gregório tinha
uma forte compleição física, que o ajudou a resistir aos maus
tratos. Casado com uma mulher também de origem camponesa, dona
Maria, Gregório teve um casal de filhos que não herdaram seu ímpeto
político, e ainda tem parentes em sua cidade natal, a exemplo
de seu sobrinho João Alves dos Santos, de 80 anos, agricultor.
E de sua sobrinha Aurelino Azevedo, que faz questão de orientar
seus alunos, no colégio estadual Gregório Bezerra, em Panelas,
sobre quem foi o “Homem de ferro e flor”, na expressão do poeta
maranhense Ferreira Gullar. De ferro mas frustrado em certos momentos,
como confessou ao jornalista Geneton Morais Neto, em 1983. “Em
1964, a frustração foi tamanha, pois a massa camponesa estava
pronta para agir e repelir o golpe militar terrorista. Mas não
tínhamos armas. Ainda tentei buscar armas no Palácio das Princesas.
Desgraçadamente, quando cheguei Arraes já estava preso. Voltei
de mãos vazias ao campo, para desfazer todo um trabalho de conscientização
da massa camponesa para o confronto. Meu problema não foi o sofrimento,
mas a frustração”. E mais adiante: “Não me arrependo. Tenho plena
consciência de que meus atos revolucionários foram justos e oportunos.
O que posso ter feito, e aí faço autocrítica, é que sempre fui
tarefeiro, não tinha boa formação teórica”.
Advogada lembra trajetória de lutas
do líder comunista
A
estudante concluinte de Direito e professora, Mércia Albuquerque,
passava pela praça de Casa Forte, no dia dois de abril, logo após
o golpe militar de 1964, justo no momento em que um homem idoso
estava sendo arrastado na rua e espancado por um coronel e vários
sargentos, sob o olhar horrorizado dos que passavam. “Naquele
momento eu decidi que iria defender aquele homem que estava sendo
torturado em público. E foi o que fiz”, conta Mércia, que se tornou
advogada de presos políticos e, em especial, de Gregório Bezerra,
com quem aprendeu a dimensão dos problemas políticos e sociais
brasileiros. Hoje titular da Ouvidoria da Secretaria de Justiça
do Estado, ela sofreu maus tratos e foi jogada no xadrez, mesmo
gestante, várias vezes, por defender os inimigos do novo regime.
“Quando
eu vi aquela cena, lá em Casa Forte, com o coronel Darcy Villoc
Viana (o oficial que comandou a prisão de Gregório) gritando ensandecido
e ameaçando o ancião, enquanto soldados muito jovens arrastavam
aquele homem cambaleando, eu senti que deveria deixar minha profissão
de professora de menores abandonados e passar a fazer algo por
aquele homem torturado”, lembra a advogada.
Ela
localizou Gregório no Parque de Motomecanização, um quartel em
Casa Forte. “Ele estava numa cela, com os pés queimados por soda
cáustica e a cabeça quebrada. O coronel Villoc disse que eu era
uma atrevida. E falou: “Com este ferro eu espanquei seu cliente.
O que a senhora acha?”. Eu respondi: “O senhor tem a força, mas...”.
aí ele falou: “Mas o quê?”. E eu disse: “Mas mesmo! Posso ir?”.
E ele falou: “Dane-se!”. Para ela, naquele momento o País vivia
“uma síndrome de sangue”.
Passados
36 anos daquelas cenas, Mércia ainda lembra com emoção, assistindo
à movimentação das comemorações dos 100 anos de seu amigo e ex-cliente.
“Todos temiam aproximar-se de mim porque eu defendia os presos
políticos”, revela, fazendo questão de mencionar o então escrivão
da Vara de Homicídios, Décio Magalhães que, em 1967, aceitou,
com riscos, levar para casa as razões de defesa de Gregório, rascunhadas
por ela, para datilografar. Ainda sem experiência profissional,
Mércia pedia ajuda dos advogados Rui Antunes e Cláudio César Andrade.
Eles iam para uma granja, de madrugada para não serem vistos pela
férrea vigilância policial, onde preparavam as petições. Naquele
momento, Gregório estava doente da próstata e tinha sido removido
para o hospital onde hoje é o Ipsep. Conta que havia policiais
com metralhadora apontando para ela até dentro do quarto do paciente.
“Eles queriam ficar até dentro da sala de cirurgia, mas o coronel-médico
César Montezuma os expulsou. Eu rendo homenagens ao falecido coronel”.
Sabe-se
que, antes mesmo de ser preso, Gregório esteve escondido durante
um dia numa usina, enquanto aconteciam centenas de prisões no
Recife e no campo. Passadas três décadas daquela noite, a advogada,
que sabe detalhes contados por seu cliente, evita revelar quem
foi o usineiro que escondeu o líder comunista. Indagada a respeito,
ela limita-se a dizer: “Este usineiro foi um político muito importante
no Estado, é vivo e às vezes se fala nele”.
Segundo
Mércia Albuquerque, a vida de Gregório esteve por um foi também
antes de ser entregue ao Exército. Conta que o capitão PM Álvaro
Rêgo Barros prendeu Gregório na Usina Pedrosa, em Ribeirão, mas,
no caminho, o usineiro José Lopes Siqueira, acompanhado de pistoleiros,
exigiu que o oficial lhe entregasse o pistoleiro. Era para trucidá-lo
no canavial. O capitão não aceitou. Quase houve tiroteio, mas
Rêgo Barros venceu a parada e, como diz Mércia, “ele não sujou
as mãos com o sangue da história”.
A
advogada diz que nunca comungou da mesma ideologia de seu cliente,
mas reconhece que “tratava-se de um líder autêntico, que assumiu
corajosamente suas posições, ainda que isso tenha sido causa de
muitas privações e sofrimentos”. Revela que ele sempre foi o remediador
nos confrontos entre os presos. Respeitava a todos, independente
de facção. E mais, revela Mércia: “As mulheres se apaixonavam
por ele. Médicas, advogadas lhe mandavam cartas. Eu recebia e
as rasgava. Achava que a mulher dele, Maria da Silva Bezerra (dona
Maroca) não podia ser maculada. Um dia Gregório descobriu que
eu rasgava as cartas. Continuei rasgando. A esposa dele, uma camponesa
maternal, sempre deu todo apoio a ele, criou os filhos Jandira
e Jurandir com dignidade. Eu contei a ela sobre as cartas. Hoje
eu me arrependo de as ter rasgado”.
Mércia
conta que, em 1969 na Casa de Detenção, disse a Gregório que ele
se preparasse para sair, pois era um dos presos que iam ser trocados
pelo embaixador dos Estados Unidos, Burke Elbrick, sequestrado
pela guerrilha urbana. Gregório, que já estava com 69 anos, não
aceitou ser solto, dizendo que a decisão era do partido. A advogada
disse que ele não poderia prejudicar outros presos que estavam
na lista. Ele, então, seguiu para o exílio.
CRONOLOGIA
1900
– Nasce
Gregório Lourenço Bezerra, no dia 13 de março, no sítio Mocós,
município de Panelas, no Agreste pernambucano. Aos quatro anos
começa a trabalhar na roça, aos oito fica órfão de pai e mãe e
aos 10 vira empregado de senhor de engenho.
1911
– Revolta-se
contra os maus tratos e foge para o Recife, onde vira menino de
rua. No ano seguinte, começa a trabalhar como gazeteiro.
1916
– Como
ajudante de pedreiro começa a participar do sindicato. No ano
seguinte, acusado de agitação, é preso na Casa de Detenção do
Recife, onde passa quatro anos e oito meses.
1922
– É
libertado, enquanto no Rio de Janeiro era fundado o PCB.
1923
– Gregório
entra no Exército, no antigo 21º Batalhão de Caçadores. É transferido
para a 1ª Cia. de Carros de Assalto, no Rio. Conhece Luiz Carlos
Prestes.
1925
– Alfabetiza-se
matriculando em curso noturno.
1930
- Filia-se
ao PCB.
1935
– Instrutor
de educação física do CPOR, no Recife, o sargento Gregório participa
da Aliança Libertadora Nacional (ALN), toma de assalto o quartel
do CPOR. O plano fracassa e Gregório é preso.
1945
– Depois
de passar pelas prisões de Fernando de Noronha e Ilha Grande,
Gregório é libertado no processo de redemocratização e decretação
da Anistia. É eleito deputado federal constituinte pelo PCB, o
mais votado no Recife e o segundo no Estado.
1946
– Gregório
é preparado para ser candidato a prefeito do Recife. Prevendo
a vitória comunista, a Câmara dos Deputados aprova intervenção
no Recife, Santos, São Paulo e Rio.
1947
– O
PC é posto na ilegalidade, Gregório é preso, com outros membros
do partido. É solto no Recife, depois de quase dois anos.
1964
– Novamente
preso, no dia dois de abril, logo após o golpe militar.
1967
– Gregório
é condenado a 19 anos de prisão. É levado para a Casa de Detenção.
1969
– É
libertado junto com outros presos políticos em troca do embaixador
norte-americano Burke Elbrick. Exila-se inicialmente no México,
onde já estava o fundador das Ligas Camponesas, Francisco Julião.
Inicia seu exílio em Moscou.
1979
– É
decretada a Anistia e Gregório retorna ao Brasil.
1980
– Juntamente
com Prestes, Gregório sai do PCB acusando o partido de “desvios
direitistas”.
1982
– Candidata-se
a deputado federal em Pernambuco e é derrotado, obtendo apenas
12.156 votos.
1983
– Cardíaco,
tem uma crise e é levado a São Paulo, onde falece.
DEPOIMENTOS
Arquiteto
Oscar Niemeyer (PCB), autor do projeto do Memorial a Gregório:
“Gregório
Ferreira
Gullar, poeta, autor do poema “História de um valente” exaltando
Gregório:
“Das figuras revolucionárias que conheci e que queriam mudar o
Brasil, Gregório era o que representava o povo humilde. Ele acendeu
a consciência de que é necessário mudar o Brasil. Nenhum outro
revolucionário brasileiro representou tão bem as camadas mais
distantes dos problemas políticos e ideológicos, ele que nasceu
na roça e aprendeu a cortar cana. Ele, na sua biografia, canta
a alegria quando começa a chover. Ele é um exemplo para todo jovem.
Este tem que saber que houve, no Brasil, este homem e há na nossa
história. Assim, ele é permanente, porque representa o passo adiante
da consciência humana que é a liberdade. Não vejo ninguém comparável,
hoje, a Gregório”.
Os
versos célebres dedicados por Ferreira Gullar ao líder comunista,
constantes do poema “A história de um valente”:
“Mas
existe neste terra
muito
homem de valor
que
é bravo sem matar gente
mas
não teme matador,
que
gosta de ser gente
e
que luta a seu favor, como Gregório.
Governador Jarbas Vasconcelos (PMDB):
“ Gregório Bezerra foi um idealista que, por sua luta em favor
da liberdade e da justiça, honrou Pernambuco e o Brasil. Foi um
exemplo para os que lutaram ao seu lado e para a juventude que,
na época em que foi preso e torturado, iniciava uma batalha, que
levaria anos, em favor da redemocratização do País. Se fosse possível
hoje, a repetição de todos aqueles episódios vividos e
enfrentados com coragem e determinação por Gregório Bezerra, não
tenho dúvida de que a juventude de novo seria sensibilizada por
ele”.
Ex-governador
e presidente nacional do PSB, Miguel Arraes:
“Conheci Gregório Bezerra em 1934, quando eu tinha 17 anos e fazia
serviço militar no tiro de Guerra do Recife. Ele era sargento
e foi meu instrutor. Depois nos encontramos em muitos momentos
das lutas políticas que travamos ao longo desses anos todos. Embora
pudéssemos ter divergências pontuais quanto às táticas, sabíamos
ter em comum a convicção de que era preciso afirmar a dignidade
de nosso povo e lutar contra a injustiça e a opressão. Guardo
dele principalmente a lembrança de sua simplicidade e da força
com que defendia suas convicções. Vítima da tirania que prende
e tortura, nunca vacilou na afirmação do que acreditava. Sua característica
mais marcante era a coragem e a convicção”.
Luiz
Carlos Preste Filho, coordenador do projeto artístico comemorativo
do Centenário:
“O exílio teve um lado feliz para mim. Convivi com Gregório nove
anos. Ele era pessoa frequente na nossa casa, a partir de junho
de 1970. Presenciei uma coisa magnífica: um homem que já tinha
70 anos participando das aulas de russo com as crianças. Aprendeu
a língua. Importante foi a atuação dele em defesa dos direitos
humanos, viajando pela Europa e dando depoimentos à Anistia Internacional.
Tinha mais vigor que muitos jovens. Ele não dava chance da gente
ficar triste e desanimado. Viajava com um passaporte cubano. Jornalistas
russos perguntaram a ele sobre qual a coisa da vida brasileira
da qual mais sentia saudade, e ele respondeu, “sinto mesmo é saudade
de comer jaca”.
Senador
Roberto Freire (PPS), que começou a militância seguindo Gregório:
“Homenagear Gregório Bezerra é prestar um tributo, antes de tudo,
ao ideal de justiça que acompanha o projeto de construção e aperfeiçoamento
da civilização. Ele encama os melhores sentimentos humanos – a
humildade, a generosidade, o despreendimento material, a fraternidade,
sem ceder ao servilismo e à apatia. Por isso, a frase tão decantada:
um homem de ferro e flor. Gregório apresenta-se como uma marca
diferenciada em minha vida. Já militante comunista, ainda estudante
da Faculdade de Direito, como integrante do escritório de advocacia
de Rildo Souto Maior, do partido, fui com ele trabalhar na Zona
da Mata, na organização de sindicatos rurais. Diria, ele está,
de alguma forma, na raiz, bem plantado, de minhas convicções políticas
e sonhos por um mundo melhor. Ficar frente a frente e trabalhar
com Gregório era uma experiência ímpar, por ele e por nossos objetivos.
Já como deputado federal e membro da Comissão de Anistia, fui
revê-lo em 79, quando chegava do exílio pelo aeroporto de São
Paulo. Vim com ele ao Recife. Devem, talvez, existir vários Gregórios.
O ideológico, portanto polêmico em suas concepções; o militante
inabalável capaz de, quase sozinho, tomar um quartel ou enfrentar
a agonia da tortura; o companheiro solidário das lutas, barreira
intransponível ante qualquer vacilação; e o homem terno, ciente
do papel a cumprir na passagem pelas terras sofridas do NE, pelo
planeta. Mas, para nós, herdeiros do antigo Partido Comunista,
todos os Gregórios são um só, ele próprio”.