Alegações finais em favor de
GREGÓRIO LOURENÇO BEZERRA
“Disse
o Senhor: – Sabeis qual o jejum que eu apresento? É romper as
cadeias injustas, desatar as cordas do jugo, repartir alimentos
com os famintos, mandar embora, livres, os oprimidos e quebrar
toda espécie de servidão.” (Profeta Isaias).
Doutos
Julgadores:
Antes de
entrar no exame do processo a que responde nesse Juízo Gregório
Lourenço Bezerra, desejo utilizar algum espaço desta Defesa para
situar-me, como sua advogada. Como mulher e mãe, sinto-me à vontade
para funcionar em causas que dizem respeito à Liberdade Individual.
Não funciono, aqui, como “inocente inútil”, mas com a consciência
plena de haver assumido a defesa de um grande, embora discutido
líder popular. Sei das enormes restrições que se fazem à pessoa
do acusado, do ponto de vista político e ideológico. Mas sei,
também, da sua grandeza moral da sua responsabilidade, numa época
em que a coerência e a firmeza de atitudes são confundidas com
fanatismo e obstinação.
Acompanhei
o processo desde o início, nestes dois anos e meio de prolongadas
audiências, de idas e vindas e essa Auditoria Militar, sem me
descurar, um instante sequer, da grave responsabilidade histórica
de defender Gregório Bezerra. Outros, de minha profissão, ficaram
no caminho – intimidados ou atônitos. Eu resolvi prosseguir, embora
enfrentando dissabores, comentários mesquinhos, acerbas críticas
e aleivosias diversas. Fiz juramento de não transigir no exercício
de minha atuação de advogada. E não transigirei, quaisquer que
venham a ser as dificuldades e ameaças. Maior do que a minha resistência
física, é o meu grande amor – de mulher, de mãe, de simples criatura
humana – ao Homem, que é o templo de Deus, segundo os evangelhos.
E o Homem é uma criatura una, indivisível – quaisquer que sejam
as contingências da vida, as crenças, o modo de encará-las, a
fé e a própria negação da fé. Há mil formas de acreditar na vida.
Como existem mil formas de destruí-las – pelo medo, pela covardia,
pelo individualismo, pela vaidade. Bem aventurados os que sabem
dignificá-la, em atos e práticas que somente a História julgará
em definitivo, depois das paixões ocasionais, depois das lutas,
depois das controvérsias.
O
tempo é a dimensão histórica do Homem. E a maneira de julgá-lo
só é lícito e completa, quando esquadrinhadas todas as suas atitudes.
E as consequências sociais dessas atitudes.
“A
moral política – já disse Beccaria, no seu famoso livro Dos
Delitos e das Penas – não pode proporcionar à sociedade nenhuma
vantagem durável, se não for fundada sobre sentimentos indeléveis
do coração do Homem.”
Aceitamos
a defesa de Gregório Lourenço Bezerra, reencontro-me com os fundamentos
da vida, na essencialidade de seus magnos princípios. E posso,
daqui, na humildade de meus atos, repetir as súplicas de Davi,
no Livro dos Salmos:
“Ouve-me,
quando eu clamo, ó Deus da minha justiça; na angústia me deste
largueza. Tem misericórdia de mim e ouve a minha oração.”
Do
processo
Sob
todos os aspectos, esse processo é uma monstruosidade jurídica.
Há, nele, graves nulidades, tanto de forma como de conteúdo. Sua
peça informativa – o inquérito policial-militar – tem manchas
de sangue. Do sangue de espancamentos de réus e de testemunhas.
Muitos dos denunciados sofreram os piores suplícios – que a Nação
conheceu, em detalhes. Gregório quase foi morto. Suas torturas
foram filmadas e rodadas nos vídeos das televisões do Recife,
num espetáculo de circo romano.
Das
nove testemunhas de acusação ouvidas – em juízo – nove testemunhas,
apenas, para um processo de mais de trinta réus! – a maioria delas
é confessadamente integrada de agentes do serviço secreto das
Forças Armadas. As que não são agentes secretos, são militares
da ativa da Polícia Estadual. Todas, enfim, com interesse na causa,
na apuração unilateral da causa.
Réus
há, nesse processo – Doutos Julgadores – que, sendo funcionários
públicos, nunca foram requisitados à repartição de origem. Outros
que, revés, não tiveram o direito de constituir advogados. Outros
que respondem a dois e três processos pelos mesmos crimes. Ainda
outros que, já condenados, estão sob ameaças de novas condenações,
pelos mesmos fatos. Ainda outros que, tendo sido considerados
isentos de culpa, em processos arquivados na Justiça Civil, se
acham, agora, nas vésperas de um julgamento ou de uma possível
condenação pelos mesmos motivos que foram tidos como insubsistentes,
do ponto de vista penal, em juízos competentes.
Um
ex-Secretário de Estado do Governo Miguel Arraes foi excluído
do processo pelo justo reconhecimento de foro especial. Dois outros,
porém, nele permanecem, sem motivo plausível.
Testemunhas
houve que, sendo funcionários públicos, não foram requisitados
à repartição competente. Outras que, residindo fora da jurisdição
dessa Auditoria, não foram ouvidas por precatória, indeferindo-se,
nesse sentido, requerimentos expressos e fazendo-se constar de
ata tal cerceamento ao direito de defesa.
O
cabeça ou co-réu principal no processo, o ex-Governador Miguel
Arraes de Alencar, também foi excluído de julgamento, respondendo,
hoje, a processo em separado, numa aberração flagrante à unidade
do feito, desde que se trata de crime de concurso necessário,
de co-delinquência. Corremos o risco de assistir a uma estranha
cissiparidade: a cabeça de um lado e o resto do corpo de outro,
num esquartejamento que encheria de satisfação aos sádicos espancadores
dos acusados.
Eis,
Doutos Julgadores, o quadro real deste processo.
DA INÉRCIA DA DENÚNCIA
Com
a devida ressalva que devo fazer, por dever de justiça, ao digno
representante do Ministério Público Militar, a denúncia dos autos
é inepta. Nela conta-se uma história que não se coaduna nem se
ajusta às provas do processo. Enquanto a denúncia se refere ao
delito de atentado à segurança interna do País, com auxílio ou
subsídio de Estado estrangeiro (Art. 2º, inciso III, da Lei de
Segurança do Estado), nos autos nenhuma testemunha alude a tal
crime, absolutamente. Das testemunhas de acusação ouvidas, nada
há, em seus depoimentos, que se reporte ao delito de atentado
à segurança interna do País, nem se fala, mesmo de longe, de nenhum
Estado ou País estrangeiro. E, no entanto, a Promotoria Militar
insiste na classificação inicial, quando das razões finais.
A
denúncia caracteriza-se pela vagueza de expressões e pelo amontoado
de palavras que nada têm a ver com a situação de cada um dos denunciados.
Dois terços da denúncia são gastos numa espécie de “prolegômenos
da subversão”, no mundo e no Brasil, com situações duvidosas de
Lênin, de Marx e de Fidel Castro.
Quanto
ao crime de cada um dos réus, propriamente dito; quanto as circunstâncias
do fato delituoso; quanto ao lugar e ao tempo da perpetração do
delito – nada se diz. Os acusados foram amontoados no mesmo processo
sem o menor critério de co-delinquência. Há réus que, neste processo,
vieram a conhecer-se no curso das audiências. Antes, não se conheciam.
Acredito que tudo isso adveio do grande acúmulo de serviço da
Promotoria Militar, no princípio da fase punitiva da Revolução.
Mas o fato é que o processo não tem as características que a lei
exige, para produzir efeitos.
Se
a Promotoria Militar insiste na classificação do crime, como sendo
o de atentado à segurança interna, com auxílio de potência estrangeira,
é de perguntar-se: qual é essa potência estrangeira? Quem foi
o intermediário dessa potência estrangeira com os acusados? Onde
estes se reuniram para tentar ou consumar o crime? Em que dia
e em que ano esse crime foi perpetrado? As testemunhas de acusação
não o dizem, Doutos Julgadores. E se, no IPM, se faz referência
a alguns fatos dessa natureza, no processo, em Juízo, nada disso
foi apurado. E testemunhas que não comparecem a Juízo não são
testemunhas. São fantasmas.
Quanto
a Gregório Lourenço Bezerra, comete-se a inverdade – permita-se-me
a expressão – de afirmar que ele foi incendiário do 15º Regimento
de Infantaria, da Paraíba, aí pelos idos de 1947.
Ora,
Doutos Julgadores, nessa mesma Auditoria, Gregório foi absolvido
por unanimidade! E quem pediu a absolvição de Gregório, por falta
absoluta de provas, foi o hoje Procurador Geral da Justiça Militar,
o doutor Eraldo Gueiros Leite. Como, pois, insistir nessa aleivosia,
a não ser com o intuito de fazer confusão no seio do Conselho
Permanente de Justiça, tão digno, hoje, como o era nos idos de
1947.
No
que diz respeito ao processo ora em exame, nada existe que possa
incriminar Gregório pelo delito previsto no art. 2º, inciso III,
da Lei de Segurança do Estado. Seu maior crime, Doutos Julgadores,
é o de pensar diferente. É o chamado delito de opinião, crime
que os códigos não condenam. Crime de impunidade democrática.
Crime dos homens livres e das Nações soberanas.
Peço
aos ilustrados membros do Conselho Permanente de Justiça que levem
em conta a bravura moral desse homem, digno do nosso maior respeito.
Hoje, injustiçado. Amanhã, quem sabe? Glorificado. A um homem
desses não se deve apontar as grades da prisão. Nela, o homem
poderá fisicamente tombar; mas o ideal do homem ressurgirá por
cima de suas fraquezas materiais, continentes.
Faça-se
justiça a esse homem do povo, absolvendo-o, exculpando-o das penas
da lei.
A
Justiça Militar, por ser militar, não é desumana ou insensível
aos dramas sociais. No fundo, ela se integra ao aparelho judiciário
do País, vivendo os mesmos sentimentos de Justiça e as mesmas
tradições de independência.
Seu
horizonte são os horizontes da lei e não o descampado das paixões
humanas. Sua meta é o bem comum e não a tábula do ódio e das vontades
ilimitadas.
O
dever dessa Justiça é o mesmo das outras Justiças, togadas ou
não. É o dever que se origina da consciência.
Contra
Gregório há, somente, a alegação de ser comunista. Ele o é, confessadamente.
Mas isso é, porventura, crime?
Os
Tribunais brasileiros, tanto civis como militares, consideram
que o fato de ser comunista não constitui crime.
Por
isso, Doutos Julgadores, peço a absolvição de Gregório Lourenço
Bezerra. E o faço como mulher, como mãe e como advogada – cônscia
do meu dever perante a civilização humana.
Mércia
de Albuquerque Ferreira.