DESAPARECIDOS POLÍTICOS: TABU
MILITAR
Nos
dias 26 e 27 de maio passado, três gerações participaram. em Brasília,
do Encontro Nacional dos Familiares de Desaparecidos. Pais, irmãos e
filhos de desaparecidos políticos se integraram, mais uma vez, numa
tarefa que a cada dia parece mais difícil - resgatar a memória dos que
foram mortos pelo regime militar, saber em que circunstâncias foram
assassinados, terem o direito de dar-lhes um túmulo.
O
evento fez parte da Semana Latino-Americana dos Desaparecidos Políticos.
Este ano, a expectativa foi maior, pois já circulava, nos labirintos do
Executivo Federal, a minuta do projeto elaborado por uma comissão de
juristas do Ministério da Justiça, propondo formas de indenização
dos desaparecidos. Além disso, a esperança era de que consultores dos
ministérios do Exército, Marinha e Aeronáutica ajudassem na localização
dos corpos.
Desde novembro
de 1992, o Governo havia constituído uma comissão para tratar do
assunto. Mesmo informando que “o fogo não apagou completamente”
junto aos militares, o ministro Maurício Corrêa levou adiante a missão,
negociando com os três ministros militares. Prazo previsto para
resultados concretos - dois meses. O presidente Itamar Franco já havia
advertido que só mandaria um projeto ao Congresso, definindo o assunto,
se o documento final fosse aprovado pelos militares e familiares dos
desaparecidos.
Impasse
- Ao se depararem com a minuta do projeto, os familiares dos
desaparecidos descobriram que o Estado não tem pressa em resolver o
assunto. Os militares não aceitam a denominação “vítimas da violência
política” para os 144 desaparecidos, preferindo uma denominação
mais branda - “pessoas declaradas ausentes”.
Este
e o primeiro ponto do impasse. Para Maria do Amparo Araújo,
ex-militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) e integrante do grupo
Tortura Nunca Mais, a solução que os militares propõem para declarar
as pessoas “ausentes” e como se elas tivessem ido ao supermercado e
nunca mais achado o caminho de volta para casa.
O
segundo ponto do impasse é quanto ao esclarecimento das circunstâncias
em que as pessoas foram mortas, e onde foram enterradas. Os ministros
militares concordaram com a criação da comissão, mas colocaram uma
observação que pode anular todos os esforços. Sutilmente, o texto do
projeto diz que as circunstâncias serão esclarecidas “desde que seja
possível”. É claro que, em alguns casos, não vai ser possível
esclarecer tudo. Mas não vamos colocar isso no papel e assinar embaixo,
porque estaremos generalizando a questão”, lembra Amparo.
Por
último, a União se dispõe a indenizar os familiares dos
desaparecidos, reconhecendo que a morte foi causada pelo Estado. Só que
adota os mesmos critérios da Previdência Social. Os familiares não
aceitam este critério. No Chile, o Executivo indenizou as famílias dos
desaparecidos com pensões mensais e alguns benefícios aos filhos das vítimas,
como universidades gratuitas. Após a saída do ditador Augusto
Pinochet, foi criada a Comissão de Verdade e Reconciliação
Nacional”, que está tratando do assunto sem os “detalhes”
brasileiros.
Discussão
Dolorosa - Por dois dias, os familiares se reuniram para tratar de um
assunto que já faz parte de suas vidas. “Foi uma discussão
dolorosa”, informou Amparo Araújo. “Em 14 anos, desde a Anistia, a
luta para esclarecer os desaparecimentos de militantes tem sido autônoma,
impulsiva emocional”, diz.
Desde
o dia 13 de dezembro de 1992, os familiares ganharam um auxílio
importante para tentar solucionar o problema, com a instalação da
Comissão Externa para Desaparecidos Políticos, da Câmara Federal. Com
a ajuda da comissão, os familiares conseguiram um feito inédito, em 26
de maio ultimo - foram recebidos pelo presidente em exercício da República,
deputado Inocêncio de Oliveira. “Nunca um presidente quis tratar do
assunto. Conseguimos ser recebidos e colocamos nosso problema”,
destaca Amparo.
A
esperança de que a questão finalmente seja resolvida vai depender,
agora, de negociações. Os familiares, após o encontro, elaboraram um
documento ao ministro Maurício Corrêa, rejeitando os três pontos
principais e fazendo contra-propostas. Até o final deste ano não há
perspectivas de solucionar um dos maiores tabus nacionais – o resgate
da memória e dos despejos das vítimas da repressão política no
Brasil, a partir de 1964.
O
presidente da Comissão Externa sobre os Desaparecidos Políticos,
deputado Nilmário Miranda (PT/MG), quer que as Forças Armadas abram
a “caixa-preta” da história do Brasil, para colocar um ponto final
no sofrimento das famílias que buscam informações sobe seus parentes
desaparecidos. “Há pessoas que há mais de 20 anos tentam resolver
esta questão, mas os órgãos de informação mantém isso como um
segredo intocável”, frisa Nilmário. Ele também é contrário à
denominação “pessoas consideradas ausentes”, lembrando que
“ninguém some por encanto”.
“Anistia
vem do grego Amnestia, que significa perda total ou parcial da memória.
Não há poder que transforme a anistia em amnesia para as vítimas”,
lembra o escritor e jornalista Frei Betto, uma das vítimas da repressão
política. A luta dos familiares para enterrar seus mortos recebeu uma
comparação bíblica. “Ainda que todos se calem, diz Jesus, as pedras
clamarão, porque debaixo delas há mortos que continuam governando os
vivos e exigem, no mínimo, o sagrado direito de uma sepultura”.
Para
o advogado José Paulo Cavalcanti Filho, que foi secretário-geral do
Ministério da Justiça, em 1985, quando o ministro era o pernambucano
Fernando Lyra, os familiares têm direito a saber toda a verdade.
“Todo povo tem direito a história. Não podemos fazer de conta que não
aconteceu”. Para ele, a punição aos culpados tem que se dar em
nossas consciências”
As
mães não conseguem cicatrizar as feridas deixadas pela repressão. As
lembranças, neste caso, são mais fortes que o tempo. Ieda Novaes da
Mata Machado, mão de José Carlos da Mata Machado, prefere não falar
muito sobre o assunto. Se emociona com facilidade, chora, lembrando o
filho era um excelente rapaz, que sonhava com um mundo melhor, mais
justo.
Elzita
Santa Cruz teve dez filhos. O quinto, chamado Fernando Santa Cruz, foi
preso juntamente com o amigo Eduardo Collier Filho, em 23 de fevereiro
de 1974, no Rio de Janeiro. Nunca mais foi localizado. Uma foto de
Fernando (a última) permanece na parede da sala, enquanto ela fala, com
a voz embargada: ”Espero que dêem um a luz à história, contem
realmente o que aconteceu com os desaparecidos”.
No
dia 13 de julho deste ano, Maria Madalena da Cunha, de 85 anos, vai
contar o 23º ano do assassinato do seu filho, Luís José da Cunha,
ex-dirigente da Ação Libertadora Nacional (ALN). Ele foi fuzilado pelo
DOI/CODI de São Paulo, numa emboscada. Morando numa casa pobre, no
bairro da Sapucais, ela sobrevive de uma aposentadoria. Ao invés de uma
possível indenização, ela recorda a tristeza que representa a ausência
do filho.
No último
encontro Nacional dos Parentes de Desaparecidos. alguns pais, por
dificuldades físicas, não puderam comparecer. Algumas mães, com mais
de 70 anos, não podem também sofrer grandes emoções. Para eles, a
luta está chegando ao fim sem que a verdade seja esclarecida. Em maio
de 92, uma dessas mães não resistiu. Agrícola Maranhão do Vale, mãe
do estudante Ramires Maranhão do vale, morreu dois dias após a
abertura dos arquivos do IML do Rio de Janeiro. Aos 65 anos, ela não
suportou o choque de saber que o filho havia sido metralhado, em 28 de
outubro de 1973, na praça Sentinela, em Jacarepaguá, Rio de Janeiro.
Ela tinha esperança que o filho estivesse vivo. Ramires morreu na noite
em que completava 23 anos de idade.
O filho de José
Carlos da Mata Machado e Madalena tem 21 anos e mora em Belo Horizonte.
Seu nome é Dorival Soares da Mata Machado. “Foi uma homenagem ao
companheiro Jair Ferreira de Sá, também da AP. Seu nome de militante
era Dorival”, explica Madalena. O filho nasceu em 19 de fevereiro de
1972.
Dorival
mora com os avós (pais do Mata Machado) desde os nove meses, e não tem
dificuldades para falar sobre seu pai. ”Costumo dizer que para mim é
mais fácil, porque meu pai morreu quando eu tinha menos de dois anos.
Minha visão é de fora”. Quando começou a receber informações
sobre o passado, Dorival recolheu, com todos os familiares, os
documentos referentes ao pai. “Não é que eu esteja pesquisando sobre
o assunto, mas preferi guardar tudo comigo”, explica.
No
próximo ano, Dorival termina o curso de Economia, na UFMG. Diz que
pretende conversar com a mãe para saber como era a participação do
seu pai no movimento das esquerdas. “Não sei, em termos concretos,
qual era a importância dele. Minha mãe nunca me contou bem as coisas
porque é muito emocional, sofre muito”.
Integrante
do Diretório Acadêmico do seu curso, Dorival avalia que a luta contra
o regime militar era por um ideal “E por causa das experiências do
passado que temos esta maturidade de hoje. Eles deram a vida por algo
que acreditavam. Se eu estivesse naquele contexto, certamente teria
feito o mesmo’, diz. Dorival é eleitor do PT. Às vezes, PSDB.
Epitáfio
“Estamos
mortos porque não quisemos viver e desonrar a nossa pátria.
Certo,
a vida não vale grande coisa, mas para os mortos
vale,
e éramos moços.”
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