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Natal, 16-5-69 

Dra. Mércia, 

Se por acaso for injusto e inconveniente nesta carta atribua ao estado de espírito de quem está há 5 meses preso e que corre o risco de ficar mais tempo do que o previsto, por falta de providências que deveriam ter sido tomadas e não foram. Ao Dr. Varela Barca, à minha família, à amigos bem chegados foi dada uma lista com mais de trinta nomes de pessoas que poderiam atestar quanto a minha conduta. Na maioria professores e ex-professores meus, diretor e ex-diretores da faculdade e professores universitários de um modo em geral. Isso não se deu, apesar das reiteradas recomendações. Alguns poucos atestados foram conseguidos na última hora por e de pessoas com quem inclusive não tinha aproximação. Talvez aqueles que devessem fazê-lo tivessem a mesma opinião do Dr. Varela Barca, ou seja: “que os atestados não tenham muita importância”. Creio que o mesmo se deu quanto a fotocópia de voto de louvor, que me foi dado pela Congregação de professores de minha faculdade, “pela maneira educada e cavalheiresca como defendi os interesses do corpo discente”. Na minha opinião esse documento é de um valor inestimável, principalmente por ter sido um voto unânime e expontâneo. Pois bem, Dr. Varela Barca disse que não me preocupasse que ele conseguiria a fotocópia do documento, e apesar da insistência as vezes irritante junto a ele, à minha família e aos amigos, tal documento não foi conseguido. Quanto às testemunhas de defesa, deu-se o mesmo, apesar de uma lista enorme que dei ao Dr. Varela, à minha família e aos colegas, apresentou-se somente uma, que apesar de minha amiga, não pode atestar quanto a minha conduta na faculdade e no trabalho, já que as nossas relações restringiam-se a encontros esporádicos na rua. Esta falha verificou-se em todos os setores. Eu lhe comunico por carta, para a senhora entender o porquê da ausência dos documentos. Acredito que só conto agora com as alegações finais que serão feitas pela senhora e, possivelmente, com os contatos mantidos aí no Recife por papai para, pelo menos, minorar as dificuldades. Tomo a liberdade de chamar sua atenção para alguns aspectos do processo e para alguns fatos que não constem dele:

1) As provas factuais que pesam contra mim, creio que são três artigos assinados, escritos no “SocioJornal”. Um em 1967 e dois nos últimos meses de 1968 numa edição especial. Confirmei a autoria dos artigos em meu depoimento. O presidente do Diretório, negou a responsabilidade do Diretório quanto à “Edição Especial”, do que se aproveitaram os dirigentes do inquérito para dizerem que a edição era apócrifa e portanto eu era o autor de uma entrevista “pesada” publicada nesse número. Em meu depoimento que além de ter escrito os artigos, havia mimeografado a referida Edição Especial por ordem do presidente do D. A., de quem recebera a matéria. Declarei isso não só por ser verdade mas principalmente porque sabia – nós todos sabíamos – um mês antes de sermos presos, de que uma das pessoas que havia testemunhado a rodagem do jornal tinha denunciado o fato ao Q. G. e que tal denúncia havia sido confirmada posteriormente por três outras testemunhas. Chamo a sua atenção para os dois números do jornal, para meu depoimento e para o de Rinaldo, logicamente se meu desejo fosse transmitir alguma coisa aos colegas e fugir a responsabilidade, não me utilizaria do nome do “SocioJornal” e, muito menos assinaria os outros artigos;

2) Quanto as provas testemunhais, creio que o mais pesa contra mim é o meu próprio depoimento, não sei! Entrou aí não só a inexperiência, como a duração do depoimento, dez horas e quarenta minutos, com um intervalo de menos de uma hora para almoçar. Fora o meu, o depoimento que mais demorou levou seis horas. Confirmei haver rodado uma vez um manifesto do D.C.E. na faculdade de Medicina; confirmei ter estado duas vezes no Colégio Atheneu e se não me engano, confirmei haver distribuído manifestos etc. Sei que disse (posteriormente verifiquei) ter sido acusado pelas testemunhas de acusação. Quanto ao depoimento dessas testemunhas, chamo sua atenção para determinados trechos de certos depoimentos:

a) Depoimento do capitão Domilson. Ele diz que me viu no DCE antes de uma passeata e que tudo partia de lá. Minha presença no local nada tem de estranho, porquanto  o DCE funciona no Restaurante Universitário e é lá que eu fazia refeições; diz adiante, que fizemos um comício defronte da Reitoria, onde falaram Emmanuel e eu, onde “atacamos de forma violenta as autoridades”. Perguntado posteriormente o que nós discursamos, respondeu que não tinha ouvido, pois quando chegara eu já havia falado e Emmanuel estava terminando suas palavras, nas quais não prestou atenção; deu a entender que incitamos os apedrejamentos no dia da passeata, mas depois disse que os apedrejamentos foram um revide. A verdade é que o apedrejamento foi feito por alguns ginasianos depois da passeata e que na hora em que ocorreu eu falava num comício defronte o DCE. Eu inclusive não participei da passeata apesar de ter falado no DCE e disse isso no meu depoimento. O depoimento entrou em outras contradições das quais não me lembro;

b) Depoimento de Clesito Fechine, então administrador do Restaurante Universitário. Diz ele que soube pelo vigia do Restaurante, que Nuremberg Borja e eu havíamos forçado a porta do Restaurante Universitário antes de uma assembléia, contudo, o laudo da perícia criminal nega qualquer arrombamento;

c) O depoimento de Carlos Rios, funcionário da Reitoria, estudante da Faculdade de Direito e jornalista do “Correio do Povo”, jornal dirigido por Genaro da Fonsêca (diretor da Faculdade de Farmácia, membro do Conselho Universitário, ex-militar, eminência parda da Reitoria, candidato a Reitor e inimigo n.º 1 dos estudantes)... comprometido com o reitor e que sempre distorceu os fatos e nos atacou violentamente, foi um depoimento totalmente mentiroso. De início o depoente negou acusações feitas no depoimento anterior e acusou de haver presenciado Ivaldo e eu picharmos a parede externa do Restaurante Universitário. Ao ser perguntado posteriormente se confirmava que Ivaldo houvesse pichado realmente, o fez, mas se omitiu quanto a mim. Essa acusação, como todas as outras feitas por esse rapaz (e foram muitas) é mentirosa. É um indivíduo duplamente comprometido com os dirigentes da universidade e, se não coloquei objeções ao seu depoimento, foi para não contrariar suas instruções. Todos os outros depoimentos estão cheios de contradições e de mentiras, mas esses são os principais.

A razão desta carta é mostrar porque as providências pedidas não foram tomadas, como também uma tentativa de facilitar o seu trabalho, com informações que não constam do processo. Talvez ela seja inoportuna e desnecessária, mas espero que a senhora releve isso. Em última análise, ela reflete “a ideologia do prisioneiro”.

Os agradecimentos e um abraço do

Jaime Ariston 

P.S.: Soube a poucos instantes, através de uma visita que veio para Ivaldo, que talvez seja possível ainda anexar novos documentos aos autos. Seria uma perspectiva animadora se houvesse empenho em consegui-los, principalmente quanto ao famoso voto de louvor... Vou chatear meu pessoal e Dr. Varela Barca com novas recomendações.

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