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"Tudo o que de mim se perde acrescenta-se ao que sou"
(Ferreira Gullar)


Cândido Pinto de Melo tinha 22 anos de idade, estudava engenharia no Recife e era presidente da UEP - União dos Estudantes de Pernambuco, entidade cassada pela ditadura e reestruturada pelo movimento estudantil em eleições diretas. No dia 28 de abril de 1969, nas imediações da Ponte da Torre, sob a mira de um atirador mascarado, foi intimado a entrar num carro. Reagiu e salvou a vida. Um disparo do bandido lhe seccionou a medula abaixo do peito. A partir daí, até a sua morte na sexta-feira, Cândido viveu 33 anos de uma resistência política e existencial tenaz e tocante, que o colocam num plano elevado da condição humana.

De repente, encontrava-se paraplégico aquele militante aligeirado no andar, mergulhado nas falações em assembléias e passeatas, nas correrias de rua e nas articulações clandestinas. Ante essa nova condição, ele empenhou-se para mobilizar ao máximo as forças disponíveis. No tratamento em São Paulo, viu a possibilidade de utilizar uma espécie de armadura, que lhe permitiria andar com muletas alguns metros. Os especialistas não admitiam que o equipamento fosse utilizável no seu caso. Teve de recorrer a cálculos físico-matemáticos para convence-los.

Cândido terminou o curso de engenharia respondendo a processos pela Lei de Segurança Nacional, vendo as invasões policiais nos hospitais e na sua casa, com os amigos e familiares sendo revistados, ameaçados e perseguidos. A vivência hospitalar levou-o a se especializar na engenharia biomédica. Tornou-se um profissional respeitado nessa sua área, compôs a equipe do Dr. Jesus Zerbine e era funcionário do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Foi um dos fundadores da Associação de Bioengenharia Brasileira.

Na cadeira de rodas, Cândido continuou seguindo sempre à esquerda. Integrou-se ao movimento pela anistia, ingressou no Partido dos Trabalhadores, atuou no movimento dos portadores de deficiência e foi fundador da sua entidade nacional. Procurava acompanhar o debate em torno do projeto socialista e do pensamento marxista, a que se mantinha alinhado. Quando veio ao Recife em 1999, denunciar os 30 anos de impunidade do atentado que sofreu, Candido publicou um longo artigo (JC de 18/4), fazendo uma retrospectiva da resistência contra a ditadura e se posicionando politicamente na atualidade. São suas palavras: "Dos governos militares ao neoliberal de hoje, as necessidades da grande maioria da população sempre foram excluídas das prioridades e as políticas públicas sempre foram voltadas aos interesses das elites e oligarquias nacionais e regionais. Estas oligarquias estiveram no poder na ditadura e mantêm-se hoje no poder, graças a alianças que lhes fornecem o 'oxigênio' necessário à sobrevivência política".E arremata: "...enquanto continuarem a miséria e a desigualdade, o sonho continua e sempre se saberá de que lado ficar".Quando o governo da Frente de Esquerda do Recife o chamou para assumir a direção da Empresa de Processamento de Dados do município, Cândido licenciou-se do Hospital das Clínicas, voltou à terra e assumiu a tarefa.

A dramaticidade, a dignidade e a grandeza da vida de Cândido Pinto de Melo, vítima de um atentado na condição de presidente de uma entidade estudantil proibida, não permite a sua utilização, hoje, como objeto de malversação política por parte de pessoas que, na época, ocupavam funções importantes nos governos biônicos ou na representação parlamentar da ditadura.

Cândido sempre manteve a denúncia do atentado que sofreu e da teia de solidariedade criminosa que se construiu para preservar os responsáveis e ainda hoje se faz presente para impedir, ao menos, o esclarecimento factual do caso. Mas a consciência de vítima e a atitude de denúncia não o transformaram numa pessoa obsessiva, mórbida, retraída, centrada em si mesma e movida a bílis. Encarando de frente as suas circunstâncias, ele desenvolveu uma resistência construtiva, procurando fruir o mais plenamente possível o arco-íris da vida. Dedicou-se ao tratamento médico permanente, à formação profissional, à militância, às amizades e à vida afetiva. Casou-se com Joana Figueiredo e construiu com ela uma família formada pelos filhos Ana Luiza e Bruno. Quando morreu, vivenciava a condição de avô do menino Lucas, com cinco meses.

Depois do atentado, a vida de Cândido foi um permanente transitar por hospitais, enfrentando infecções e cirurgias, consumindo dosagens elevadas de medicamentos pesados. Nos últimos tempos, submeteu-se a uma cirurgia, passou por UTIs e colocou um marca passo, sofrendo um abalo físico impressionante. Até que, aos 55 anos, trabalhou dois expedientes, foi ao teatro, jantou com a mulher, os filhos e os irmãos Cláudio e Celso.Em casa, deitou-se para dormir e morreu de embolia pulmonar na primeira hora do sábado 31 de agosto.

A história que Cândido Pinto de Melo escreveu nesses 33 anos toca fundo e faz com que, na perda e na lembrança, os momentos de convivência com ele cintilem como jóias raras. Na última ceia, Cristo ofereceu aos apóstolos o pão e o vinho, como se fossem o seu corpo e o seu sangue. Que o exemplo de Cândido também nos alimente, para enfrentarmos as dificuldades individuais e políticas e mantermos o rumo na construção de um Brasil e de um mundo onde predomine a vida em abundância, por que ele tanto lutou.


Marcelo Mário de Melo

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