Painel
I – As dimensões política e humanitária da criação
do Tribunal Penal Internacional
Guilherme
da Cunha*
Texto
baseado nas notas taquigráficas de conferência proferida
no Seminário Internacional “O Tribunal Penal
Internacional e a Constituição Brasileira”, promovido
pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça
Federal, em 30 de setembro de 1999, no auditório do
Superior Tribunal de Justiça, em Brasília-DF.
Não
cabe dúvida de que a criação de um Tribunal Penal
Internacional permanente constitui um progresso moral e
político para a humanidade. O Secretário-Geral da ONU,
Koffi Anan, qualificou a adoção do Estatuto desse
Tribunal, em Roma, no ano passado, de evento histórico e
presente de esperança para as gerações futuras. A criação
de um Tribunal dessa natureza é um indicador luminoso de
que a comunidade internacional deseja contar com uma
instituição permanente e sob o controle internacional,
capaz de administrar com eficácia a Justiça para todos.
Esse objetivo é compatível com a universalidade dos
direitos humanos, cuja proteção efetiva supõe uma luta
sem quartel contra a impunidade.
A
comunidade internacional está decidida a velar para que
os autores de graves violações do Direito Internacional
Humanitário, independentemente do lugar onde foram
cometidas, sejam castigados, um velho sonho das Nações
Unidas, que hoje começa a concretizar-se. Abre-se, assim,
o caminho para um sistema integral de repressão aos
crimes graves de Direito Internacional mediante a
progressiva consolidação de um sistema internacional de
proteção ao ser humano.
O
grande desafio do próximo milênio, conforme a Srª.
Sadako Ogata, Alta Comissária da ONU para os refugiados,
será o de garantir a segurança aos seres humanos, ou
seja, a segurança de não ser assassinado; de não
desaparecer; de não ser torturado; de não ser objeto de
práticas políticas autoritárias – como, por exemplo,
a limpeza étnica –; a segurança alimentar; a segurança
contra a enfermidade; para não falar da segurança de
poder exercer os direitos civis e políticos previstos nos
instrumentos internacionais, especificamente, o Pacto
Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos de
1967.
Portanto,
o desafio é o de garantir a segurança efetiva dos indivíduos,
porque enquanto estes não se sentirem seguros em suas
casas, a segurança dos Estados continuará ameaçada. Ou
seja, não há segurança dos Estados se não houver a
segurança dos cidadãos. A ausência de segurança humana
gera em efeito ou perpetua inevitavelmente o deslocamento
humano, ou seja, faz com que apareçam refugiados que para
buscar asilo e proteção em terceiros países ou que
apareçam deslocados internos -
aquelas pessoas que vivem uma situação similar à dos
refugiados, pois mesmo não tendo cruzado uma fronteira
internacional em busca de asilo, sofrem igualmente dessa
cruel condição de refugiado.
Vive-se
num mundo tão perigoso quanto assustado. Os movimentos de
refugiados e outras formas de deslocamento forçado são
indicadores, espécie de barômetro, a respeito do estado
de segurança em que vive um povo, ou indicadores do maior
ou menor grau de ruptura no tecido de direitos e obrigações
que unem o indivíduo ao Estado em que vive; ou, então, a
existência de um maior ou menor grau de respeito e proteção
efetiva dos direitos humanos e liberdades fundamentais dos
cidadãos de um determinado país.
O
ACNUR, Alto Comissariado das Nações Unidas para os
Refugiados, é a agência das Nações Unidas de proteção
e assistência internacional aos refugiados. O ACNUR opera
num marco jurídico próprio, destinado a proteger as vítimas
de perseguição e violência por motivos de raça, religião,
nacionalidade, grupo social ou opinião política. O marco
jurídico no qual operamos está basicamente orientado a
dois tratados internacionais: o primeiro, e mais
importante, a Convenção das Nações Unidas, de 1951,
relativa ao Estatuto dos Refugiados, e um Protocolo
Adicional, de 1967, relativo ao mesmo tema, que,
conjuntamente, estabelecem os direitos e as obrigações
das pessoas consideradas refugiadas por um determinado país
signatário.
O
Dr. Hansjorg Strohmeyer disse que, hoje, no mundo, existem
treze milhões de refugiados – essas cifras são de
1968. Referindo-nos ao que aconteceu no sudeste da Europa
e ao que está acontecendo no sudeste da Ásia e no Cáucaso,
poderíamos avançar essa cifra para quatorze milhões e
meio de pessoas. Mas a cifra que utilizamos é de vinte e
dois milhões de seres humanos que se encontram sob a
proteção do ACNUR. Nesse contingente de seres humanos,
estão os refugiados "puros e duros",
reconhecidos por um terceiro Estado nessa condição
migratória, regulamentada por um tratado internacional
supervisado pelo Alto Comissariado da ONU para os
Refugiados. Ademais dos refugiados "puros e
duros", existem outras categorias de pessoas que se
encontram sob a proteção do Alto Comissariado da ONU
para os Refugiados. São os apátridas, os solicitantes de
asilo ou de Estatuto de Refugiados num terceiro país, mas
que aguardam uma resolução dos organismos competentes do
Estado signatário para saber se essa pessoa merece, ou não,
a proteção internacional; são igualmente os repatriados
que continuam a beneficiar-se de assistência material e
até certo ponto de proteção internacional por parte do
Alto Comissariado; e a última categoria, a mais freqüente,
e cujo número aumenta sem cessar, são, infelizmente, as
vítimas dos conflitos militares, sejam de caráter
interno, sejam de caráter internacional. Do ponto de
vista estatístico, o número de pessoas que recebe proteção
e assistência do ACNUR chega a vinte e dois milhões.
Quanto ao número de pessoas deslocadas, cerca de vinte e
cinco a trinta milhões de pessoas foram objeto das mesmas
violações de seus direitos humanos, das mesmas
atrocidades contemporâneas com as quais hoje coexistimos,
ademais de um país muito próximo ao nosso, com o qual
temos fronteira comum, que é a Colômbia.
????t?????????????span style="LAYOUT-GRID-MODE: line; mso-bidi-font-size: 10.0pt">font color="#000080" size="2" face="Arial">Segundo
fontes muito fidedignas, do State
Departament americano, do ano de 1986 até o ano de
1996 ou 1997, cerca de um milhão de pessoas na Colômbia
foram obrigadas a abandonar as suas aldeias de origem;
todavia, mantêm-se dentro do Estado nacional colombiano.
Vale ressaltar que o Alto Comissariado da ONU para os
Refugiados mantém a presença de um encarregado de missão
em Bogotá, que colabora com as autoridades colombianas
para, se não resolver, pelo menos atenuar o sofrimento
desses cidadãos afetados pela violência que corrói esse
país há mais de cinqüenta anos.
A
proteção fundamental prevista no marco jurídico do
ACNUR e que promovemos, apesar de todas as dificuldades,
é o direito de asilo, previsto na Declaração Universal
dos Direitos Humanos, art. 14, e no Pacto de São José,
na Convenção Interamericana de Direitos Humanos, art.
27, § 8º, que garante e sublinha a importância desse
direito humano do qual se diz que, no caso de perseguição,
qualquer pessoa tem o direito de buscar e usufruir de
asilo num terceiro país. A palavra “asilo”, do nosso
ponto de vista, tanto na Declaração Universal dos
Direitos Humanos como no Pacto de São José, refere-se ao
Regime Internacional de Proteção; portanto, no marco jurídico
antes mencionado, que é a Convenção de 1951 e o
Protocolo de 1967.
O
ACNUR foi ator, observador e testemunha privilegiada nas
duas crises principais dos anos 90 que suscitaram a criação,
por meio do Conselho de Segurança da ONU, de um Tribunal
Penal Internacional ad
hoc em duas regiões: no território da ex-Iugoslávia,
devido às atrocidades cometidas nesse País ou região a
partir do final de 1991 até recentemente, em junho de
1998, com o final da guerra no Kosovo; e um conflito
humanitário -
do meu ponto de vista, mais grave, atroz e dantesco,
porque está relacionado ao delito de genocídio –
ocorrido no território de Ruanda e no território de
Burundi, países da África Central que, devido à política
pública de exterminar o grupo étnico opositor na luta
política pelo poder nessa região, ocasionaram quase ou
mais de oitocentos mil mortos, além de mais de três milhões
de pessoas que tiveram de abandonar as suas aldeias dentro
de Ruanda ou que tiveram de cruzar fronteiras para buscar
asilo na República Democrática do Congo – ex-Zaire
–, Tanzânia, Uganda etc. Sabe-se perfeitamente o que
aconteceu nessa região da África Central, e com que
estupor nós, cidadãos, funcionários internacionais,
militantes de organizações não-governamentais e
inclusive Estados-membros da Comunidade Internacional,
tivemos de aceitar a inércia e o abandono da comunidade
internacional, que foi incapaz de lograr consenso para
minorar e impedir esse crime dantesco nessa região da África
há alguns anos.
Mas,
talvez, esse erro grave, essa distância política do
sofrimento de seres humanos na África Central, tenha nos
ensinado a atuar de maneira mais rápida e consistente –
refiro-me à agilidade com que o Conselho de Segurança
das Nações Unidas em Nova Iorque adotou uma resolução
para enviar uma força multinacional de manutenção de
paz ao Timor Leste, para restaurar a paz naquela ilha do
sudeste da Ásia. Nesse sentido, num marco de avanços e
retrocessos, é preciso consolidar os avanços e criticar
os retrocessos.
Esse
marco jurídico ao qual me referi, o Direito Internacional
dos refugiados, supervisado pelo Alto Comissariado da ONU
para os Refugiados, depositário dessa convenção
conjunta e concomitantemente com o Direito Humanitário,
supervisado pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha e
o Direito Internacional dos Direitos Humanos, supervisado
basicamente pelas Nações Unidas, constituem um corpo de
normas jurídicas destinado a proteger o ser humano em
quaisquer circunstâncias, momento e lugar. Portanto, não
há uma compartimentalização na hora de operar ou
executar essas normas jurídicas, que têm por objetivo
fundamental proteger o ser humano em situação de
vulnerabilidade ou de repressão, em conflito armado ou não.
A
violação sistemática dessas normas pode configurar um
delito grave de Direito Internacional, cuja sanção está
prevista na jurisdição do Estatuto do Tribunal Penal
Internacional. Não é por acaso que os autores de tais
delitos, como genocídio, crimes de guerra, crimes contra
a humanidade e agressão, que são delitos contra a paz,
estão excluídos da Proteção Internacional dos
Refugiados. Essas pessoas não se beneficiam da proteção
internacional e tampouco da assistência por parte do Alto
Comissariado da ONU para os Refugiados. Vários cidadãos,
sobretudo ruandeses da etnia hutu, estiveram refugiados àquela
época no Zaire e vivendo em campos de refugiados
administrados pelo Alto Comissariado, em situações de
segurança extremamente difíceis; apesar disso, o ACNUR
teve a determinação, a coragem e a consistência de
indicar à comunidade internacional e ao Tribunal Penal
Internacional, com sede em Arusha, que um certo número de
dirigentes militares ruandeses, da etnia hutu, não
mereciam a proteção internacional e, portanto, deveriam
ser denunciados como perpetradores ou “genocidários”
– não sei se essa palavra existe no Português, mas é
bastante compreensível. Da mesma forma, o ACNUR, na região
da ex-Iugoslávia, sobretudo na Bósnia Hezergóvina e,
naturalmente, no Kosovo, teve a ocasião de discutir com
outros representantes do sistema internacional e
compartilhar com eles informes e relatórios relativos às
atrocidades dos quais fomos testemunhas.
A
criação de um Tribunal Penal Internacional constitui um
progresso importante na aplicação prática
do mecanismo da jurisdição universal; posto que esta já
havia sido incorporada ao Direito Internacional escrito
desde agosto de 1949, quando foram aprovadas pela
comunidade internacional as quatro Convenções de Genebra
sobre o Direito Internacional Humanitário. O conceito ou
a probabilidade de jurisdição internacional está
igualmente previsto em outros tratados internacionais,
como, por exemplo, na Convenção para Prevenção e
Ascensão do Delito de Genocídio, de 1948, e na Convenção
contra a Tortura, de 1984, simplesmente para citar dois
tratados internacionais que supõem e que implicam a existência
da jurisdição universal. Os Estados-membros desses
tratados estariam, assim, ética e juridicamente,
obrigados a julgar esses graves delitos e a castigar seus
autores.
O
Embaixador Gilberto Vergne Sabóia e o Sr. René Kosirnik
recordaram sobre o brocardo latino que diz:
"processar ou extraditar". Essa reflexão é de
extrema atualidade. O Tribunal Penal Internacional aponta
nessa direção e traduz a convicção da comunidade
internacional de que esses crimes aberrantes, que golpeiam
profundamente a consciência da humanidade, não podem
depender unicamente das legislações e tribunais dos
Estados em cujos territórios foram cometidos.
Essa
prática criminosa com a qual coexistimos está hoje
estreitamente relacionada com o movimento dos refugiados.
Seguramente, essas práticas geram refugiados. E,
desafortunadamente, o mandato do Alto Comissariado não
nos permite questionar e discutir sobre essas causas dos
deslocamentos "massivos" de população. Essa
competência está melhor nas mãos do Conselho de Segurança,
porque somos uma organização humanitária, como o Comitê
Internacional da Cruz Vermelha, e lidamos apenas com os
sintomas da crise, procurando realizar o que se propõe a
realizar uma ação humanitária, que é preservar vidas e
atenuar o sofrimento dos seres humanos.
Naturalmente,
a simples existência de um Tribunal Penal Internacional
permanente não impedirá que tais crimes continuem a ser
cometidos, mas constituirá, sim, um forte poder
dissuasivo e de prevenção contra a impunidade, além de
poder ajudar a diminuir o número de vítimas.
O
movimento de refugiados não se produz por acaso; não é
fruto de forças históricas abstratas ou anônimas. Ele
tem lugar, porque determinados indivíduos decidem violar
o direito dos outros; colocam em perigo suas vidas a um
ponto tal que lhes é impossível sentirem-se seguros em
seus próprios países. Abundariam, aqui, os exemplos
dessa prática, cada vez mais majoritária nos conflitos
internacionais, mas sobretudo nos conflitos internos que são
majoritários, em que a população civil passou a ser o
objetivo dos combatentes como alvo a ser destruído, a ser
objeto da limpeza étnica, da transferência forçada de
populações. Esses delitos, afortunadamente, foram incluídos
entre os crimes de guerra ou crimes contra a humanidade.
Garantir
que os autores de tais violações respondam
individualmente por seus atos fortalece o regime de proteção
internacional dos refugiados, além de restituir-lhes um
sentimento de segurança e justiça que havia sido
ignorado em seus países de origem. O Tribunal Penal
Internacional é, assim, um instrumento de proteção e
promoção da segurança dos seres humanos. A vontade política
majoritária dos Estados que aprovaram seu Estatuto em
Roma reflete um avanço no árduo e constante processo de
consolidação do compromisso dos Estados e dos indivíduos
com a paz e a segurança internacionais.
Para
concluir, o ACNUR participou ativamente dos trabalhos
preparatórios em Roma até a conclusão por meio da votação,
e participamos como observador. Ficamos relativamente
contentes, porque várias propostas ou inquietações do
Alto Comissariado foram incorporadas ao Estatuto,
sobretudo aqueles delitos que ocorrem em conflitos de caráter
não-internacional. Fomos capazes, assim, de discutir com
representantes dos Estados-membros que, por exemplo, o
ataque contra pessoal trabalhando em organizações
humanitárias das Nações Unidas constituiria um delito a
ser examinado pelo Tribunal Penal Internacional; também
colaboramos na promoção da idéia de que seria também
um delito examinado no âmbito da jurisdição do TPI o
engajamento de soldados com menos de quinze anos, e
lamentamos que a utilização das minas antipessoais não
foi incorporada à lista de delitos ou práticas que
deveriam ser examinadas por esse Tribunal.
Também
lamentamos, no sentido construtivo, que, todavia, existam
algumas limitações no exercício da competência do TPI,
mas temos a impressão de que esse debate poderá dar
lugar a uma ampliação dessa competência, à medida que
o número de Estados signatários que ratifique o Estatuto
aumente. E, por último, lamentamos muito, não só o
ACNUR, mas o conjunto internacional, que três países,
membros do Conselho de Segurança, que dispõem do direito
de veto, tenham se recusado a adotar o Estatuto do
Tribunal Penal Internacional. Refiro-me à posição
tomada pelos governos dos Estados Unidos, da Rússia e da
China.
Finalmente,
gostaria de compartilhar a expectativa e a esperança
manifestadas pelo Secretário-Geral da Nações Unidas,
Koffi Anan, de que o Estatuto do Tribunal Penal
Internacional venha a ter, num futuro próximo, uma
autoridade inquestionável e trabalhe numa jurisdição
mais ampla possível.
Guilherme
da Cunha é
Representante regional para o sul da América Latina do
Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados –
ACNUR –, em Buenos Aires, na Argentina.
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