Princípios
da Cruz Vermelha
A primeira
formulação destes princípios foi fruto
da obra de Gustave Moynier que, em 1864
identificou quatro princípios: o da cen-tralização, que
determina a existência de uma
única Sociedade Nacional por Estado, desenvolvendo
uma ação que se estenda ao conjunto
do território nacional; o da previdência que
impõe a tomada de medidas de preparação
com vista à aplicação do direito em
tempo de paz; o da neutralidade, através do
qual cada Sociedade Nacional deve trazer socorros
às vítimas de guerra, indepen-dentemente das
respectivas nacionalidades e
o da solidariedade, por via do qual as Sociedades
se comprometem a prestar assistência.
A vigésima
Conferência Internacional da Cruz
Vermelha, reunida em Viena em 1965, proclamou
os princípios fundamentais sobre os
quais assenta a acção da Cruz Vermelha.
Estes
princípios não consistem em abstrações de
ordem moral ou filosófica, consistindo simplesmente em regras de
comportamento para a ação humanitária.
Os sete
princípios da Cruz Vermelha estão sujeitos a uma hierarquia
que é antes de mais a da ordem
da sua proclamação, mas estão igualmente sujeitos
a uma hierarquia que consiste na distinção entre os princípios
substanciais, os princípios derivados e os princípios orgânicos.
Os primeiros
constituem fins e não meios, ao contrário do
que se passa com os princípios derivados que permitem a
trans-posição dos
princípios substanciais para a realidade dos fatos. Finalmente
os princípios de carácter organizacional consistem em normas
de aplicação sobre a forma e funcionamento da instituição.
No seu
preâmbulo, os estatutos do Movimento Internacional da Cruz
Vermelha e do Crescente Vermelho recordam que as divisas do
Movimento «inter
arma caritas» e «per
humanitatem ad pacem»
exprimem, no seu conjunto, as
ideias contidas nos sete princípios.
1.PRINCÍPIOS
SUBSTANTIVOS
Princípio de
humanidade
«A Cruz
Vermelha, nascida da preocupação de trazer socorros sem
discriminação aos feridos nos campos de
batalha, esforça-se, nas suas vertentes
internacional e nacional, por prevenir e aliviar em todas
as circunstâncias o sofrimento humano. A
Cruz Vermelha visa proteger a
vida e a saúde, mas também fazer respeitar a pessoa humana.
Esta
organização favorece a compreensão mútua, a amizade, a
cooperação e
uma paz duradoura entre todos os povos.»
O princípio
de humanidade é ainda designado como o princípio essencial
já que todos os outros princípios dele decorrem. Tal significa
que o objectivo da Cruz Vermelha é de natureza tripla :
em primeiro
lugar o princípio tem por objectivo prevenir e aliviar os sofrimentos.
A acção reparadora da Cruz Vermelha é complementada por
uma acção preventiva, visto que o melhor meio
de lutar contra o sofrimento é impedir que
ele surja. O princípio de humanidade
36 Direito
Internacional umanitário
Mandato afirmado em
1977 aquando da
XXIII Conferência Internacional
da Cruz Vermelha
..visa em seguida
a protecção da vida e da saúde e finalmente tende
a fazer respeitar a pessoa
através da divulgação de noções de respeito
(atitude de abstenção que
visa não prejudicar e poupar) e de tratamento
humano (condições mínimas
que permitam a uma pessoa conduzir uma
vida aceitável e tão normal quanto possível).
Tal como o
sublinha Jean Pictet 2 , o princípio de humanidade consiste
em definitivo simultaneamente numa moral
social, num combate espiritual e
sobretudo na recusa de qualquer tipo de violência através
da denúncia dos males provocados pela guerra.
Princípio de
imparcialidade
«A Cruz
Vermelha não faz qualquer distinção de nacionalidade, raça,
religião, condição social ou
filiação política, destinando-se unicamente a
socorrer os indivíduos na medida do seu sofrimento e a promover
ajuda de
forma prioritária às mais urgentes situações de emergência.»
O princípio
de imparcialidade engloba três dimensões. Em primeiro lugar,
a proibição de discriminações subjectivas, que implica uma
despersonalização total da assistência e da proteção
humanitárias, tanto no que diz
respeito à pessoa que fornece essa ajuda e protecção,
como no que concerne ao seu beneficiário.
Em segundo
lugar, a proibição de discriminações
objectivas, de natureza política, racial,
religiosa, social (baseadas na origem, posição social ou fortuna
…).
Em terceiro
lugar, o respeito pelo princípio da proporcionalidade, nos
termos do qual a Cruz Vermelha socorre os indivíduos de
acordo com as suas necessidades e com o respectivo grau de
urgên-cia.
É
necessário um critério para a repartição da ajuda
forçosamente maciça às vítimas de
uma guerra e neste contexto somente as razões de
urgência médica autorizam que sejam estabelecidas prioridades
na ordem dos cuidados prestados. Convém
assim conceder prioridade ao
tratamento do inimigo gravemente ferido
sobre o amigo ligeiramente atingido, e às
urgências sobre os casos em que os ferimentos são
ligeiros ou demasiado graves.
Princípios
da Cruz Vermelha 37
2 Pictet (Jean):«Les
principes fondamentaux
de la Croix-Rouge » Institut
Henry-Dunant,1979,p.15 e
seguintes (em português: «Os
princípios fundamentais da Cruz Vermelha
»)
2.PRINCÍPIOS
DERIVADOS
Princípio da
neutralidade
«A Cruz
Vermelha, com o objectivo de preservar a confiança de todos,
abstém-se de participar nas hostilidades
e nas controversas de ordem
política, racial, religiosa ou filosófica a todo o tempo.»
A Cruz
Vermelha nunca toma partido por forma a manter a confiança
indispensável para que lhe sejam confiadas
– a palavra é indiciadora – tarefas
de utilidade pública e para garantir o seu bom funcionamento.
A neutralidade
reveste-se de três facetas. Em primeiro lugar,
trata-se de uma neutralidade
militar: a Cruz Vermelha abstém-se de qualquer
ingerência directa ou indirecta
nos conflitos armados. A neutralidade militar
encontra-se inteiramente ligada à protecção de
que beneficia a Cruz
Vermelha. Na realidade, a imunidade protege as
vítimas e, como contrapartida
desta neutralidade, a assistência não é nunca
considerada como
uma ingerência no conflito. Trata-se também de
uma neutralidade ideológica,
já que a Cruz Vermelha se limita a seguir a sua
doutrina, e nunca
aquela de um determinado Estado, mesmo que se
trate da Suíça. Ainda
que a Cruz Vermelha seja solicitada de forma crescente
a penetrar na esfera política,
deve recusar-se a fazê-lo, sob pena de
limitar a sua liberdade de acção e de provocar
cisões internas.
A
neutralidade da Cruz Vermelha é ainda reforçada pelo facto de os
membros e principais colaboradores do
C.I.C.R. pertencerem a um país cuja
neutralidade permanente oferece aos beligerantes uma garantia
suplementar de independência e de
capacidade de funcionamento.
Por fim,
trata-se de uma neutralidade de confissão. Mesmo que os
fundadores da Cruz Vermelha
estivessem imbuídos de um espírito cris-tão, queriam
que a instituição tivesse um carácter puramente laico, não
tendo o seu emblema evidentemente qualquer significado religioso.
Foram os
países muçulmanos que, exigindo um crescente vermelho ????L??????font COLOR="#000000">ao
lado da cruz vermelha, projectaram sobre esta última um/font> significado
que não possuía originariamente, já que a cruz vermelha colocada
sobre fundo branco consiste numa composição heráldica que
inverte as cores da bandeira suíça.
38 Direito
Internacional umanitário.
Princípio da
independência
«A Cruz
Vermelha é independente. As Sociedades Nacionais, auxiliares
dos poderes públicos nas suas
actividades humanitárias e submetidas às
regras que governam os seus países respectivos, devem no
entanto conservar uma autonomia que lhes permita agir sempre
de acordo
com os princípios da Cruz Vermelha.»
Se por um lado
a neutralidade determina que sejam evitadas intro-missões
na política, o princípio
da independência significa, por outro lado,
que a Cruz Vermelha deve proibir qualquer incursão
da política na sua
esfera privada. Esta independência é não só política,
mas também religiosa
e económica.
O princípio
da independência deve ser analisado à luz de outros dois princípios,
com designações diversas. Um desses princípios, o do auxílio,
determina que no caso de a Cruz Vermelha não se poder substituir
à ação dos Estados no seu trabalho geral
de assistência às pessoas desfavorecidas,
pode fornecer uma contribuição eficaz, tanto enquanto
auxiliar autorizado dos serviços de saúde das forças armadas
– o que consistia no fim primeiro da Cruz
Vermelha – quer nas suas
actividades de assistência em tempo de paz ou dirigidas às
vítimas de catástrofes naturais. O
outro princípio é o da autonomia em relação
às autoridades governamentais do Estado que podem exercer uma
influência sobre as actividades de uma Sociedade Nacio-nal
através da aprovação dos estatutos da
Sociedade, de controlos financeiros e
da nomeação para certos cargos de chefia. A única garan-tia
de autonomia continua a ser a forma
democrática da organiza-ção e o
recrutamento das Sociedades Nacionais que devem permitir aos
seus membros manifestar a sua vontade.
3.PRINCÍPIOS
ORGÂNICOS
Carácter benévolo
«A Cruz Vermelha
é uma instituição voluntária e desinteressada.»
A Cruz
Vermelha deve inspirar-se na dedicação e deve suscitar
voca-ções com vista a cumprir a sua
missão. A dimensão do voluntariado,
Princípios
da Cruz Vermelha 39
.determina
que as prestações voluntárias sejam asseguradas por
cola-boradores não remunerados. Por
seu lado, o facto de a Cruz Verme-lha ser
desinteressada, implica que a organização não prossiga qualquer
interesse próprio, mas tão-somente o interesse das vítimas.
O
voluntariado e o desinteresse reforçam os princípios da
inde-pendência e de humanidade
respectivamente.
Unidade
«Só pode existir
uma única Sociedade da Cruz Vermelha em cada
país,
devendo esta estar aberta a todos e estender a sua ação
humanitária
a todo o território.»
O princípio
de unidade tem três dimensões. Em primeiro lugar a da unicidade,
significando que só pode existir uma única sociedade nacional
num Estado, com uma unidade da direcção, apesar de nos Estados
Federados as Sociedades Nacionais serem descentralizadas em
secções ou divisões dotadas de maior ou menor autonomia.
A Cruz
Vermelha deve ainda estar aberta a todos, independen-temente
da raça, sexo, religião, opinião ou mesmo
da nacionalidade 3 , o que não quer
dizer que a Sociedade esteja aberta a qualquer um, já
que são exigidas condições de moralidade ou de capacidade para
os seus membros. Não deixa porém de ser
indispensável que todos os meios
sociais, políticos ou religiosos estejam representados numa
Sociedade Nacional, já que o princípio da
não discriminação, apli-cado àqueles
que prestam socorros, permitirá um maior acesso às pes-soas
que devem ser socorridas. Por fim, o
carácter genérico da acção implica
que uma Sociedade Nacional possa desenvolver as suas acti-vidades
por todo o território, o que constitui um
corolário da uni-cidade,????L??????/font> font COLOR="#000000">sendo para
tal desejável uma descentralização máxima.
Universalidade
«A Cruz
Vermelha é uma instituição univer-sal
no seio da qual todas as Sociedades têm
direitos
iguais e o dever de entreajuda.»
40 Direito
Internacional umanitário
A Cruz
Vermelha tem uma vocação universal, devendo estender as suas
actividades a todos e por todo o lado. Esta universalidade é
complementada pela igualdade (a paridade de
direitos) e pela solidariedade entre
as Sociedades Nacionais, que se exprimem através da
Federação.
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