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 "A Globalização e o Direito"
Realinhamento Constitucional(*)
Oscar Vilhena Vieira

Doutor e Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo, Master of Laws / Columbia University, USA, Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Secretário-Executivo do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente.

Sumário

1. Introdução. 2. Constitucionalismo histórico. 3. Constitucionalismo regional.  4. Cosmopolitismo ético dos direitos humanos. 5. Economia constitucional.


1. Introdução

Os sistemas constitucionais vêm sendo fortemente pres­sionados por diversas demandas impostas por um cenário interna­cional em rápida reconfiguração. O objetivo deste texto é analisar o processo de realinhamento constitucional decorrente dessas pres­sões. Pretendo abordar alguns desses fatores de pressão e o im­pacto que eles tem provocado sobre as diversas ordens constitu­cionais. Esse, porém, não é um processo unidirecional. Assim como está havendo uma internacionalização do direito constitu­cional, buscarei demonstrar que também tem ocorrido um movi­mento inverso, pelo menos em alguns setores dessa integração, que é a constitucionalização de setores do sistema internacional, político e jurídico. Trata‑se, portanto, de uma via de mão dupla, ainda que embrionária em muitas esferas.

Centrarei minha atenção em três movimentos distintos que vêm rearticulando o constitucionalismo contemporâneo: a regio­nalização, representada pela união de Estados, com fins específi­cos; o cosmopolitanismo ético, decorrente do desenvolvimento de um sistema universal de direitos humanos; e a globalização econômica, que busca estabelecer um habitat ideal para a livre circu­lação e atuação do capital transnacional por todo o globo.¹

O primeiro desses movimentos que têm causado uma reconfiguração dos sistemas constitucionais decorre da formação de blocos regionais, onde, em função de uma integração econômica, surge a necessidade de uma integração de ordem política e jurí­dica. A União Européia é o grande exemplo e que será aqui anali­sada. Mercosul, Nafta, Asean e Sadec estão apenas começando. Desde 1951, quando França, Alemanha, Itália e os Países Baixos resolveram somar esforços e criar a Comunidade Européia do Car­vão e do Aço, a Europa vem inovando institucionalmente e dando passos, significativos para uns, equivocados para outros, no sen­tido da constituição de uma nova entidade política. A última etapa desse processo de integração foi o lançamento de uma moeda única, o que sem dúvida nenhuma constituía atributo exclusivo dos Estados soberanos.

O segundo movimento que aqui será analisado decorre do desenvolvimento de um sistema internacional de direitos humanos a partir do final da Segunda Guerra. Esse movimento também tem provocado a mútua "contaminação" do sistema constitucional e global. O sistema europeu e o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos são uma prova disso; a adoção da Corte Internacional Criminal Permanente, como estipulada pelo Tratado de Roma de 1998, é outro bom exemplo desse fenômeno. Por outro lado, está ocorrendo uma internacionalização do direito constitucional, seja pela incorporação dos tratados de direitos hu­manos como parte do direito interno, seja por um mimetismo, que tem feito com que as constituições se pareçam cada vez mais, no que se refere a suas cartas de direitos, aos instrumentos internacio­nais de direitos humanos.

O terceiro movimento, reconhecido como globalização econômica, não decorre de uma ação deliberada de estadistas, com objetivos éticos, como no caso dos direitos humanos, ou político-econômicos, aqui no sentido do fortalecimento coletivo das eco­nomias de uma determinada região, como no caso da União Euro­péia, mas de uma retórica voltada a justificar a expansão e os inte­resses do capital dos países de economia central, especialmente os Estados Unidos.² Essa expansão tem sido legitimada ideologica­mente pelo neoliberalismo. Embora essa onda já se encontre em refluxo, ela continua exercendo uma forte pressão sobre os sistemas constitucionais, especialmente aqueles que reconhecem direitos de caráter social. Essa idéia de minimização da ação do Estado e liberdade total ao capital internacional, que encontra seus fundamentos teóricos em autores como Friedrich von Hayek e Milton Friedman, foi finalmente cristalizada no chamado Consen­so de Washington, que resume a planilha neoliberal a ser aplicada como antídoto à inflação, à ineficiência do Estado e às fragilidades do mercado, especialmente nos países periféricos. Nesse sentido, as constituições que apontam para rumos distintos vêem‑se pres­sionadas a se realinhar, como poderemos verificar com o caso brasileiro.

span lang="PT-BR" style="mso-bidi-font-family: Times New Roman; mso-ansi-language: PT-BR">2. A história não começa aqui

A pretensão universalista não constitui uma novidade para o constitucionalismo. Basta lembrar que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, uma das pedras fundadoras do que conhecemos hoje por constitucionalismo, já buscava influen­ciar as demais nações ao estabelecer em seu art. XVI que “toda a sociedade que não assegura a garantia dos direitos, nem determine a separação de poderes, não tem constituição”. Nesse sentido, a Constituição era a chave para o ingresso no mundo civilizado.

Esse peculiar modo de se organizar o Estado liberal mo­derno não foi, no entanto, consensualmente recebido. Diversas têm sido as críticas ao constitucionalismo nesses últimos 200 anos. À direita, a pretensão universalista do constitucionalismo racionalista foi contestada por uma forte reação historicista, a exemplo da for­mulada por Edmund Burke,³ em suas Reflexões sobre a Revolução em França. Nesse livro , em que analisa os acontecimentos decor­rentes da Revolução, Burke faz fortes críticas ao projeto iluminista de se estabelecer uma ordem político‑constitucional a partir de uma racionalidade abstrata e universal; de uma hipotética idéia de contrato social ou vontade geral.4 Tomando como exemplo o desenvolvimento do constitucionalismo inglês, Burke busca de­monstrar que somente a partir da sedimentação histórica, que no decorrer dos séculos acomoda acordos, convenções, costumes e principalmente os direitos que são herdados, é que se pode esta­belecer um sistema político estável e funcional. Nenhum homem, ou grupo de homens, tem condição, ou mesmo direito, de despre­zar a experiência histórica e, utilizando‑se apenas de princípios abstratos, estabelecer a forma como deve se organizar uma socie­dade. "A constituição não é um pudim", que pode ser feita a partir de uma receita, diria um seu contemporâneo. Assim, Burke toma as bases do racionalismo constitucional como pura ingenuidade, ou ainda, como uma busca deliberada e inconseqüente de perverter as conquistas do Antigo Regime. Esse argumento será posterior­mente desenvolvido pelos juristas da escola histórica germânica, no decorrer do século XIX.

Também o marxismo tinha profunda desconfiança no mo­delo constitucional implantado na França e na América. Para Marx, os direitos expressos na Declaração Francesa não passavam de direitos burgueses voltados à proteção da propriedade. No mo­mento em que a constituição separa as esferas pública e privada, por intermédio de uma carta de direitos, e limita a intervenção do Estado nesta última, o constitucionalismo nada mais faz do que preservar uma situação de estado de natureza, onde vence o mais forte. Assim, ao invés de assegurar direitos e favorecer a cidadania, o constitucionalismo liberal favoreceria o mercado e assegura­ria a desigualdade material, disfarçada pelo manto da igualdade perante a lei. De acordo com Marx a igualdade, como considerada pela Declaração, "nada mais é do que a igualdade da liberté" e a “liberdade é o direito a esta dissociação, o direito ao indivíduo delimitado, limitado a si mesmo”, submetido ao arbítrio do homem egoísta.5 Nesse sentido o constitucionalismo teria por verdadeira função assegurar a exploração na esfera do mercado, mantendo o Estado impedido de qualquer ação no sentido de restringir a desi­gualdade, limitar os arbítrios do mercado ou promover o fortale­cimento da cidadania.

No final dos anos 80 deste século, essas críticas perderam grande parte de sua força, especialmente a partir da derrocada dos regimes socialistas no Leste Europeu e da corrida para substituí-­los por regimes constitucionais em países como a Polônia, Repú­blica Checa, Hungria, assim como naqueles Estados que surgiram a partir da dissolução da União Soviética. O constitucionalismo teve aí o seu momento de maior expressão. A necessidade de um governo submetido a leis superiores, que limitassem o arbítrio estatal, por intermédio de um sistema de separação de poderes e pelo reconhecimento de direitos fundamentais, tornou‑se uma es­pécie de consenso intelectual e político entre aqueles que se reor­ganizaram institucionalmente nas ultimas décadas.6 O constitucio­nalismo é colocado como um ambiente propício e fértil para o fortalecimento da sociedade civil, sem o que a democracia e o Estado de direito não alcançam a densidade almejada.

O paradoxal é que apesar desse consenso em torno das qualidades do constitucionalismo, vive‑se hoje uma espécie de "mal‑estar da Constituição", no dizer de Canotilho,7 decorrente de um rápido processo de integração regional e mesmo de globalização econômica. Assim, para muitos o modelo constitucional está se esgotando, devendo ser substituído por um direito sem fronteiras, produzido de forma reflexiva, pelas mais variadas fontes. Para os mais idealistas, por outro lado, coloca‑se hoje a possibilidade de realização de um constitucionalismo universal, como o projetado na Paz Perpétua, de Immanuel Kant,8 aproveitando um momento de fragilização das soberanias.

A meu ver, não há dúvida de que o paradigma constitucio­nal está passando por um processo de reformulação. Antes, porém, que se decida abrir mão desse modelo de organização político-­jurídica, é fundamental não esquecer o papel fundamental desem­penhado pelo constitucionalismo no processo de emancipação da humanidade nesses últimos dois séculos.9 Foi a estrutura constitu­cional que deu segurança ao mundo dos direitos e à própria demo­cracia. No primeiro pós‑guerra também começou a assumir a res­ponsabilidade por promover mais igualdade e justiça social. Trata­-se de um mecanismo de autovinculação ou pré‑comprometimento, pelo qual a soberania popular busca se proteger de suas paixões e fraquezas, dando mais rigidez àqueles princípios e regras, que não devem ficar à disposição de maiorias eventuais.10

Hoje, muitas destas estruturas são vistas como obstáculo ao ingresso das nações no mundo pós‑moderno. Certamente as constituições precisam ser adaptadas e atualizadas, porém elas continuam sendo o pilar de nossos direitos e de nossas democra­cias. Devem servir, assim, como filtro ético que nos auxilie em nosso relacionamento com um mundo em rápida mudança. As constituições, antes de tudo, devem permanecer como mecanismo de habilitação para que cada geração possa decidir seu próprio destino, sem, no entanto, estar autorizada a furtar esse mesmo direito às gerações futuras.11

Colocados esses pressupostos, passemos então à análise dos três movimentos que têm provocado o realinhamento das constituições.

3. Constitucionalismo regional

A partir de 1951, com o Tratado de Paris, que estabelecia a Comunidade Européia do Carvão e do Aço, começou a surgir um novo modelo de integração entre Estados. Em sua concepção atual, pós‑Maastricht, esse processo de integração não mais se enquadra nos modelos tradicionais de organização internacional ou confede­ração. Porém, o grau atual de integração não permite afirmar que a União Européia seja um Estado federal, como o americano, brasi­leiro ou alemão. Mas isso não significa que os europeus não este­jam experimentando um processo de constitucionalização, hetero­doxo em termos da dogmática do direito constitucional, mas, sem sombra de dúvida, constitutivo de uma comunidade jurídica. Por­tanto, constitucional no sentido aristotélico.

Os Estados europeus vêm nesses últimos 40 anos transfe­rindo poderes soberanos para a Comunidade e, agora, para a União Européia, por intermédio de um conjunto de tratados, sem que tenha sido realizado um pacto constituinte continental. Esses trata­dos constitutivos do novo sistema jurídico, com poderes de inter­venção direta na vida dos europeus, só foi possível porque as constituições do pós‑guerra expressamente autorizaram a transfe­rência de poderes soberanos para a criação ou fortalecimento de organizações internacionais interestatais ou especificamente para participar da União Européia.12 Como exemplo, cito o art. 24 da Lei Fundamental alemã, que estabelece que “A Federação poderá transferir, mediante lei, competências soberanas a instituições interestatais”. Da mesma forma Itália, França, Portugal e os de­mais países têm autorizado seus parlamentos a fazer transferência de parcelas cada vez maiores de soberania à União. Além disso, um outro fator que tem contribuído imensamente para o surgimento de uma nova ordem constitucional (transnacional) é o Tribunal de Justiça Europeu, a partir da sedimentação de decisões em favor da Comunidade e da União.

Compõem os órgãos de coordenação da Comunidade e da União o Parlamento Europeu, o Conselho de Ministros, a Comissão e a Corte de Justiça. A competência desses órgãos, assim como o âmbito de atuação da União, é predeterminada pelo conjunto de tratados que estabelece a legislação primária. Daí falar‑se em sua constitucionalidade. Embora o Parlamento Europeu tenha recebido maiores atribuições a partir de 1992, a quase totalidade da função executiva e legislativa está centrada no Conselho de Ministros, que representa a vontade dos Estados, e na Comissão, que é o órgão representante da ordem européia.

Ao Tribunal de Justiça ficou a competência para fiscalizar a compatibilidade da legislação comunitária secundária em face dos tratados, assim como fiscalizar a conformidade da legislação doméstica em face da legislação comunitária, inclusive a secundá­ria. Destaque‑se, como se verá a seguir, que essas atribuições não são originárias, mesmo porque não havia previsão expressa de supremacia da legislação comunitária sobre a nacional, como ocorre, por exemplo, na federação americana, onde por intermédio da supremacy clause determina‑se a submissão da legislação dos Estados membros à legislação produzida pela União.

O primeiro elemento constitucionalizante do sistema euro­peu é o fato de que os atos normativos decorrentes da União en­tram diretamente em vigor nos Estados, sem que seja necessário qualquer procedimento de ratificação pelos parlamentos nacionais, no que se convencionou denominar doutrina da efetividade di­reta.13 Essa posição foi firmada pelo Tribunal de Justiça no caso Costa vs. ENEL,14 em que Flaminio Costa contestou a nacionalização da produção e comercialização de energia elétrica e a criação da Ente Nazionale per l’Energia Elétrica (ENEL), em face do Tra­tado da Comunidade Econômica Européia, perante a justiça italiana. O caso foi remetido em primeiro lugar à Corte Constitucio­nal Italiana, que não se manifestou diretamente sobre a posição do tratado em relação à lei italiana e depois submetido ao Tribunal de Justiça Europeu.

Para o Tribunal europeu: “Diferentemente dos tratados internacionais, o Tratado da CEE estabeleceu a sua própria ordem legal, que foi incorporada pelos sistemas legais dos Estados mem­bros no momento em que o Tratado ganhou força e a ele a justiça dos Estados membros encontra-se vinculada. De fato, ao estabele­cer uma Comunidade de duração ilimitada, tendo suas próprias instituições, personalidade e capacidade, a habilidade de ser repre­sentada internacionalmente e, particularmente, poderes reais resultantes de uma limitação da jurisdição dos Estados ou de uma transferência de seus poderes para a Comunidade, os Estados abri­ram mão, ainda que em áreas limitadas, de seus direitos soberanos e assim criaram um corpo de direito aplicável aos seus nacionais e para si mesmos”.15

Os tratados europeus, assim como a legislação secundá­ria16 que deles deriva, passam a ser compreendidos como um di­reito auto-executável, sem a necessidade de mediação do direito doméstico. Não é mais um direito internacional, mas também não se confunde com o direito interno. O direito comunitário é um sistema à parte, que tem fonte própria, e se aplica sobre todo o território dos Estados membros, criando direitos e obrigações para Estados e indivíduos.

Para os monistas a questão da aplicação imediata não é algo que deve surpreender. Mesmo a Suprema Corte americana já havia afirmado, muito tempo antes, que nos Estados Unidos os tratados constituem the law of the land,17 ainda que alguns tratados não possam ser imediatamente executados por falta de condições intrínsecas. Porém a auto-executoridade européia veio atrelada à questão da primazia do direito europeu. Assim, a segunda questão que irá nos interessar nesse processo de constitucionalização hete­rodoxo da Comunidade européia, e que irá também se diferenciar das demais organizações internacionais, é o fato de que os atos normativos produzidos pela União têm primazia sobre os estatais, estabelecendo uma supremacia 18 da legislação comunitária.

Essa questão se coloca em primeiro lugar como um pro­blema de ordem constitucional interno, visto que em alguns países, como Alemanha e Itália, o direito internacional tradicionalmente foi recepcionado como de mesma estatura ou hierarquia que as normas ordinárias. A França, entre outros países, estabeleceu a partir da Constituição de 1958 que “tratados e acordos devida­mente ratificados e aprovados, com a sua publicação, têm autori­dade superior àquela da legislação...”.19 A Constituição holandesa, por sua vez, dá estatura supraconstitucional aos tratados de que o país se torne parte. Porém, com a proposição do Tribunal de Jus­tiça de que o direito europeu não pode ser confundido com o di­reito internacional, o que se deve indagar é se há um lugar especial para o direito europeu que não dependa da vontade constitucional de cada um dos Estados, mas da própria autoridade européia.

Os diversos tratados que vêm constituindo o sistema euro­peu não dispõem de uma supremacy clause, no sentido emprestado pelo constitucionalismo americano, onde numa situação de con­flito entre o direito estadual e o federal este último deve prevalecer sobre aquele. Por outro lado, não há uma divisão estrita de com­petências, como no constitucionalismo brasileiro, onde qualquer conflito deve ser refutado como um conflito meramente aparente, pois após uma verificação mais detida da divisão de poderes entre os entes da Federação chegar-se-á à conclusão sobre a quem per­tence a referida competência. Porém, no próprio caso Costa v. ENEL, acima citado, como no caso Simmenthal, o Tribunal de Justiça, ainda que de forma não explícita, estabeleceu uma dou­trina da supremacia da legislação européia. Na esfera de aplicação do direito comunitário, portanto, qualquer norma, seja um artigo do Tratado, seja um regulamento dele decorrente, deve se sobrepor à legislação doméstica, tenha ela sido produzida antes ou depois da norma comunitária.

O problema reside então em compreender o modo como foram distribuídas as competências entre a Comunidade e os Esta­dos. Os poderes europeus foram delegados pelos tratados. O fato, porém, é que com a evolução e ampliação dos campos de ação da Comunidade e da União, novas competências foram sendo encam­padas, sem que todas elas decorressem de delegação expressa. O Tribunal de Justiça passou a entender, a partir dos anos 70, que a Comunidade poderia fazer uso de suas competências implícitas para levar a cabo sua missão. Diferentemente dos tratados interna­cionais que devem ser interpretados de forma a minimizar as limi­tações sobre a soberania nacional, no caso europeu decidiu-se pela concessão dessa liberdade . Assim, estabeleceu o Tribunal que há competências exclusivas e concorrentes, nestas últimas a legisla­ção domestica só prevalece enquanto não houver regulamentação comunitária.20 Mais do que isso, quando avocadas pela União tor­nam-se suas competências exclusivas. É o que se conhece como doutrina da preempção ou apropriação.21

O que permite confirmar ainda mais a idéia de supremacia do direito europeu é que o tribunal responsável por julgar o con­flito de competência entre a União e os Estados é o Tribunal de Justiça Europeu, situado em Bruxelas, e não as cortes constitucio­nais nacionais. Em última instância esta sob a responsabilidade da União, ainda que por intermédio de seu órgão jurisdicional, definir quais são suas competências e quais permanecem com os Estados.

Tem-se, assim, uma ordem jurídica que vincula direta­mente condutas dentro do Estado, sem qualquer necessidade de atos domésticos de ratificação ou regulamentação. Essa ordem encontra-se numa posição de superioridade em face da ordem jurí­dica doméstica, não apenas naqueles Estados em que as constituições expressamente autorizam isso, mas também naqueles onde a Constituição é silente ou determina a equiparação da ordem européia à sua legislação ordinária. Essa supremacia se dá em função da jurisprudência do Tribunal de Justiça Europeu, que tem enten­dido que em sua esfera de competência prevalece a lei comunitá­ria, sendo que dentro da obscura divisão de competências determi­nada pelos tratados o sistema jurídico europeu tem avançado em função da doutrina da preempção, também estabelecida pelo Tri­bunal de Justiça Europeu.

Isso não tem se dado sem resistências e críticas, mesmo porque há um grande déficit democrático22 que há muito vem sendo apontado por diversos críticos do processo de unificação européia. No caso Solange I, de 1974, o Tribunal Constitucional alemão exerceu seu poder de controlar a constitucionalidade de atos normativos decorrentes da Comunidade, em face da Lei Fun­damental de Bonn. De acordo com o Tribunal, enquanto a Comu­nidade não dispusesse de um sistema de proteção de direitos com­patível ou equiparável àquele assegurado pela Lei Fundamental, o Tribunal se veria obrigado a garantir os direitos de seus cidadãos em face da legislação comunitária.23

Essa decisão levou a que a Comunidade adotasse uma resolução conjunta em 5 de abril de 1977, confirmando a vigência dos direitos fundamentais no âmbito da Comunidade. Em 1992, o Tratado de Maastricht incluiu uma obrigação expressa de se ob­servar os direitos fundamentais, como se encontram 24 “garantidos pela Convenção Européia para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais, firmada em Roma em 4 de novembro de 1950 e como resulta das tradições constitucionais comuns dos Estados Membros”.25

Após a determinação da Comunidade de alargar seu es­pectro de proteção dos direitos fundamentais, o Tribunal Constitu­cional entendeu por bem rever a sua posição anterior e retirou-se do âmbito de controle da constitucionalidade dos atos normativos produzidos pela esfera da Comunidade, sob o seguinte argumento: “como as Comunidades Européias, especialmente seu Tribunal de Justiça, garantem uma proteção eficaz aos direitos fundamentais frente ao seu poder soberano, que basicamente pode equiparar-se à proteção inalienável outorgada pela GG (Lei Fundamental), so­bretudo porque garante com caráter geral o conteúdo essencial dos direitos fundamentais, o Tribunal Constitucional deixa de exercer sua jurisdição sobre a aplicação do direito Comunitário derivado, considerando-o como referência jurídica de atuação para as autori­dades e tribunais no território da República Federal...” .26 O Tribu­nal Constitucional alemão, no entanto, não abriu mão de even­tualmente controlar o processo de unificação, quando isto colocar em risco os direitos e princípios fundamentais da Lei Fundamental, como se verá a seguir.

Com o objetivo de facilitar a compatibilização entre o Tratado de Maastricht e o direito constitucional alemão, em face da transferência de largas parcelas de soberania, houve por bem o constituinte reformador emendar a Lei Fundamental, estabele­cendo, em seu art. 23, que “para a concretização de uma Europa unida, a República Federal da Alemanha deve participar no desen­volvimento da União Européia, que é limitada pelos princípios da democracia, Estado de direito, social e federativo e pelo princípio da subsidiariedade, que garantem a proteção dos direitos básicos essencialmente compatíveis com a Lei Fundamental. Para este propósito a federação poderá transferir poderes soberanos por in­termédio de lei com a concorrência do Bundesrat...”. Essa emenda teve sua constitucionalidade questionada, em 1993, junto ao Tri­bunal Constitucional alemão, por atentar contra os limites mate­riais ao poder de reforma, estabelecidos pelo art. 79 (3) da Lei Fundamental.

Para os autores da ação, ao transferir poderes soberanos, como o de legislar, para uma organização destituída de legitimi­dade democrática, o constituinte reformador estava rompendo com o princípio democrático, que é reconhecido como uma cláusula intangível da constituição alemã. Embora o Tribunal Constitucio­nal tenha recusado a pretensão dos autores, sob o argumento de que a União Européia não derive sua força normativa diretamente do povo europeu, mas dos Estados partes, estes Estados continua­vam sendo os “mestres do Tratado”. Portanto, se estaria abrindo mão da soberania do povo alemão. Mais do que isso, o Tribunal Constitucional, a qualquer momento, se reservava o poder de de­clarar inconstitucionais as transferências de soberania feitas, se estas colocassem em risco o cerne irreformável da Constituição. Neste sentido a “Alemanha preservou a qualidade de país soberano no seu próprio direito e status de soberano, em igualdade com outros Estados, dentro do sentido estabelecido no art. 2 (1) da Carta das Nações Unidas”.27

Há assim um processo de integração regional que a cada momento mais se aproxima de um processo de constitucionalização da Europa, por muitos propalado. O fato, porém, é que juridi­camente as constituições e a cidadania nacional continuam a ser a fonte de legitimidade dos sistemas jurídicos europeus e da própria União. Por outro lado, ninguém pode desprezar o fato de que a União tem conquistado poderes cada vez mais amplos e não tem se abstido em exercê-los, sem que corresponda a estes poderes uma legitimidade mais só1ida do que a atualmente existente. Está é a importância da decisão do Tribunal Constitucional alemão, nos casos Solange I e II e no caso do Tratado de Maastricht, onde sem bloquear o processo de integração européia pautou o seu direcio­namento da perspectiva do respeito dos valores constitucionais.

Neste sentido, me parece correto concluir que no caso da integração regional não está ocorrendo apenas uma internacionali­zação do direito constitucional, mas também uma constitucionali­zação do sistema regional sem, no entanto, a mesma força e inten­sidade, uma vez que o fortalecimento deste último não vem sempre acompanhado da sua conformação aos princípios constitucionais domésticos. Destaque-se que enquanto a União européia não resolver o seu problema de déficit democrático não se estabelecerá como um autêntico Estado constitucional.

4. Cosmopolitismo ético dos direitos humanos

O segundo movimento verificado no processo de globali­zação, que envolve o direito constitucional, está associado aos direitos humanos. Assim como no processo de regionalização constitucional vislumbrado no continente europeu, trata-se tam­bém aqui de uma via de duas mãos, em que ocorre uma interna­cionalização do direito constitucional na mesma medida em que temos uma constitucionalização do direito internacional.

A idéia de que todos nós, pelo simples fato de sermos hu­manos, temos uma série de direitos inalienáveis é tão antiga quanto controvertida. O próprio cristianismo originou um processo de globalização de direitos, fundado na idéia de igualdade e digni­dade de todos, enquanto filhos de Deus. O jusnaturalismo raciona­lista também reclamava teoricamente direitos universais, uma vez que decorrendo esses direitos da condição de humanidade, todos os seres humanos, por esta simples condição, deveriam ter sua dignidade reconhecida e protegida por um conjunto de direitos.28 O projeto do iluminismo gerou um enorme impacto na engenharia institucional de um grande numero de nações. Após as revoluções americana e francesa não foram poucos os países a adotar consti­tuições que tinham por objetivo fundamental a proteção desses direitos tidos como naturais ou inerentes à pessoa humana. Mas será apenas após a Segunda Guerra que os direitos humanos in­gressarão num forte processo de internacionalização e as constituições nacionais passarão a se acomodar a esse novo cosmopolita­nismo ético.

O holocausto e as outras barbáries do período, como os campos soviéticos de trabalho forçado e mesmo a bomba atômica, causaram um profundo choque na comunidade internacional. Foi como reação a essa demonstração de irracionalidade e da capaci­dade do homem de se autodestruir que surgiu a idéia contemporâ­nea de direitos humanos. Trata-se de uma resposta, ainda que filo­soficamente não bem resolvida, ao vazio ético deixado pelo desencantamento29 que favoreceu o nazismo e todas as atrocidades por ele realizadas.

Assim é que surgiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos, com o objetivo de estabelecer um novo horizonte ético, a partir do qual a relação dos Estados com seus cidadãos pudesse ser julgada por um paradigma externo ao próprio direito de Estado. A Declaração, é bom que se diga, não surgiu com a pretensão de transformar-se em direito internacional, como uma hard law. Em­bora seja o principal instrumento e certamente o mais conhecido dos documentos de direitos humanos produzidos na esfera das Nações Unidas, não é um tratado internacional, mas uma simples declaração decorrente de uma resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas. Não sendo um tratado, não pôde ser ratificada e, portanto, não tinha originalmente pretensão de obrigar os Estados juridicamente. Mas, sim, de servir como paradigma moral.

O fato é que a Declaração ocupou um papel tão importante no imaginário da comunidade internacional após a Segunda Guerra, e exerceu um papel tão importante no processo de descolonização e mesmo na luta de resistência contra os regimes autori­tários nas mais diversas partes do mundo, que deixou de ser um mero instrumento retórico e passou a ser incorporada pelos Esta­dos enquanto direito em suas constituições.30 Basta olharmos o exemplo da África, onde dezenas de constituições foram promul­gadas a partir da concepção de direitos humanos proposta pela Declaração, o que jamais significou o respeito incondicional a esses direitos. Países na América Latina que se reconstitucionali­zaram nesse período, quase todos incorporaram a estrutura e a 1ógica da Declaração dentro de suas constituições. Talvez a Cons­tituição brasileira de 1988 seja um ponto exemplar, não só de reprodução da 1ógica da Declaração e dos demais instrumentos internacionais de proteção da pessoa humana, mas de uma ampliação e atualização de seus ideais. A nossa Constituição é generosa e criativa em termos da confecção do mapa ético segundo o qual a nossa sociedade deve se organizar. Além de sua pormenorizada carta de direitos, abre, por força do § 2° do art. 5°, suas portas para que uma série de direitos decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados e dos tratados internacionais dos quais o Brasil seja parte passe a ingressar em nosso ordenamento numa posição privilegiada.31

A Declaração Universal é, porém, apenas um primeiro passo nesse processo de constitucionalismo globalizado que vem sendo propulsionado pelos direitos humanos. Há hoje diversas esferas internacionais de proteção à pessoa humana. Em nível glo­bal temos o sistema das Nações Unidas, fundado na Carta da ONU, de 1945, na Declaração Universal de 1948 e nos diversos tratados de proteção específica, onde se inclui também a proteção dos refugiados; há também sistemas regionais de proteção dos direitos humanos, sendo os mais evoluídos aqueles que se encon­tram em funcionamento nos continentes europeu e americano; por fim, deve-se destacar o direito internacional humanitário, estabele­cido a partir das Convenções de Genebra, de 1949, que buscam dar proteção às pessoas que se encontram submetidas a conflitos ar­mados.

O primeiro passo no sentido da constitucionalização do di­reito internacional foi a inclusão, na Carta das Nações Unidas, do respeito e da observância dos direitos humanos como uma das obrigações da própria ONU e dos Estados membros (arts. 55 e 56 da Carta). Neste sentido, o Estado que se torna parte das Nações Unidas, aderindo à Carta, passa, no plano jurídico, a reconhecer os direitos humanos como uma obrigação internacional, que não mais pode ficar restrita a esfera doméstica das nações.

A Carta, no entanto, não explicitou o conteúdo dos direitos humanos, o que só se deu com a Declaração três anos depois. Como já se mencionou, a Declaração não nasceu com pretensão de vincular juridicamente a conduta dos Estados. Foi a partir do seu amplo reconhecimento pela comunidade internacional que esta se transformou, ou pelo menos alguns de seus dispositivos se trans­formaram, em direito internacional costumeiro, portanto tecnica­mente vinculante das condutas dos que participam da comunidade internacional.32 Para outros, a força da Declaração decorreu do fato de ela constituir uma interpretação autêntica da Carta da ONU.

O sistema global de proteção aos direitos humanos passou a ter mais consistência, no entanto, com a adoção da Convenção Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais e a Con­venção Internacional de Direitos Civis e Políticos, ambas de 1966. Esses quatro documentos formam o International Bill of Rights, o cerne desse processo global de constitucionalização. Com conteú­dos distintos, a primeira Convenção incorpora aqueles direitos que decorrem da tradição socialista, estabelecendo obrigações positi­vas aos Estados. Seu grande defeito, semelhante a muitas consti­tuições nacionais, foi dar caráter programático ou progressivo a esses direitos.33 A Convenção de Direitos Civis e Políticos, por sua vez, abriga direitos decorrentes do movimento liberal e democrá­tico, já reconhecidos pelos constitucionalismos nacionais desde o século XIX, dando-lhes eficácia imediata. Criou este tratado um Comitê de Direitos Humanos, que, entre outras funções, analisa relatórios preparados pelos Estados, assim como denúncias indivi­duais de violação dos direitos estabelecidos pela Convenção.34 Diversas outras convenções foram adotadas pelas Nações Unidas nestes últimos 50 anos. Cada uma delas voltada a tutelar direitos específicos ou grupos determinados de pessoas. Trazem também mecanismos próprios de fiscalização e monitoramento. O sistema da ONU, no entanto, padece de grande fragilidade, posto que a própria Carta das Nações Unidas determina que a Organização seja ciosa com a esfera de soberania dos Estados, tal como reco­nhecido pelo art. 2° da Carta.

Nos anos 60, por intermédio das resoluções n. 1.235 e n. 1.503, do Conselho Econômico e Social, estabeleceu-se que a partir de denúncias que “aparentemente revelam um padrão con­sistente, repulsivo e confiavelmente atestado de violações de di­reitos humanos...”, ou seja, “graves violações de direitos huma­nos”, o Estado estaria violando obrigações contraídas com a Carta e poderia, assim, sofrer investigações, repreensões e mesmo sanções por parte da comunidade internacional.

Houve, nos últimos anos, bastante progresso, especial­mente a partir da Conferência Mundial de Direitos Humanos reali­zada em Viena, em 1993. Entre esses citaria a criação de um Alto Comissariado para Direitos Humanos, que tem por função articular as ações das Nações Unidas nesta esfera e do Tribunal Internacio­nal Criminal, a partir das experiências dos Tribunais de Ruanda e da ex-Iugoslávia. Dessa forma o sistema global, que até 1998 não contava senão com parâmetros normativos e agências fiscalizató­rias (comitês e comissões), passou a poder também contar com uma instância jurisdicional, ainda que em moldes bastante distin­tos daqueles existentes nos sistemas regionais de direitos huma­nos.35 Ao menos para o crime de genocídio, os crimes contra a humanidade e os crimes de guerra, o sistema das Nações Unidas se fortaleceu nesse último ano.

Os sistemas regionais europeu e interamericano, porém, são melhor estruturados e tecnicamente mais viáveis, aproxi­mando-se ainda mais de um sistema internacional de caráter cons­titucional. Como o sistema ONU, esses dois sistemas regionais são fundados a partir de tratados internacionais, que não apenas dão o parâmetro normativo, criam sistemas de monitoramento, mas tam­bém estabelecem instâncias jurisdicionais de proteção dos direitos humanos, que já se encontram em funcionamento.

No continente americano o sistema passou a se desenvol­ver a partir da adoção, pela Organização dos Estados Americanos, da Declaração dos Direitos e Deveres do Homem, em 1948. Assim como a Declaração Universal, não é a Declaração Americana um tratado internacional. Em 1959, sob os auspícios da OEA e dentro de sua estrutura constitucional, foi criada a Comissão Interameri­cana, com a função primordial de implementar os direitos huma­nos no continente. Somente em 1969 é que surgiu a Convenção Americana de Direitos Humanos, com força jurídica de tratado internacional. Essa Convenção, que só entrou em vigor em 1978, reconheceu direitos de ordem civil, política e social, estes últimos apenas de forma “progressiva”.36

A Convenção também estabeleceu uma Corte Interameri­cana de Direitos Humanos e deu um novo status à Comissão, que passou a funcionar como órgão da Carta da OEA e órgão da Con­venção, para aqueles países que desta se tornarem parte. As com­petências comuns da Comissão, tanto como órgão da Carta como da Convenção, são bastante genéricas. Nos anos 70 isso permitiu que a Comissão de forma bastante criativa desempenhasse um papel tremendamente importante na denúncia das violações que eram cometidas pelos regimes militares então no poder. Já sob o mandato da Convenção, a Comissão passou a ter funções mais concretas, como receber denúncias individuais, representá-las junto à Corte Interamericana,37 fazer investigações no local, ou solicitar informações dos governos.38

A Corte Interamericana de Direitos Humanos é um autên­tico tribunal, que pode exercer, para aqueles Estados partes que reconheçam sua jurisdição, uma prestação jurisdicional de caráter contencioso, relativo a todos os casos concernentes à interpretação e aplicação da Convenção Americana, ou outros tratados de prote­ção à pessoa humana, na esfera da comunidade interamericana. A Corte só poderá ser provocada em sua jurisdição contenciosa pela Comissão ou pelos Estados partes que aceitem a sua jurisdição. Suas decisões podem fazer cessar uma situação de lesão aos direi­tos protegidos pela Convenção, como a tortura, prisão ilegal, ou mesmo buscar a suspensão de uma norma que viole os dispositivos da Convenção, exercendo, assim, uma espécie de judicial review dos ordenamentos jurídicos domésticos em face da Convenção. Isso pode ser feito ainda de forma preventiva, através da jurisdição não-contenciosa da Corte.39 Por outro lado, a Corte também pode determinar que os Estados indenizem as vítimas ou os seus fami­liares. O que ocorreu pela primeira vez no caso Velasquez, onde o governo de Honduras, responsável pelo seu desaparecimento, foi condenado ao pagamento de uma indenização à família.40 Neste aspecto ocorre um dos pontos de maior proximidade entre o sis­tema interamericano e os sistemas domésticos. De acordo com o art. 68 da Convenção “a parte da sentença que determinar a inde­nização compensatória poderá ser executada no país respectivo pelo processo interno vigente para a execução de sentenças contra o Estado”. Assim, a decisão da corte não tem força de sentença estrangeira, mas de uma sentença judicial como outra qualquer, numa perfeita integração com os sistemas domésticos.

A importância do sistema interamericano tem aumentado à medida que os países passam voluntariamente a se submeter à sua ordem. Embora mecanicamente o sistema não apresente grandes falhas, o que o fragiliza é o fato de a maior potência do continente, os Estados Unidos da América, até o presente momento, continuar marginal ao sistema, postura, aliás, semelhante à do Brasil até há pouco. Porém, com a estabilização dos regimes democráticos no continente, a integração entre as ordens jurídicas interna e regional tem aumentado. A Constituição argentina, por exemplo, expressa­mente assegura status constitucional aos direitos previstos nos tratados internacionais. No Brasil a doutrina, e uma jurisprudência embrionária, tem dado a mesma interpretação ao § 2° do art. 5° da Constituição Federal.41 Isto, portanto, caracteriza o caminho in­verso, de internacionalização do direito constitucional.

O sistema europeu de proteção dos direitos humanos, por sua vez, tem sido um dos pilares do processo de constitucionaliza­ção da Comunidade, assegurando parâmetros que devem limitar não apenas os Estados, em suas relações com os seus cidadãos, mas também a Comunidade no embate com os nacionais de cada Estado.

O sistema europeu foi estabelecido pelo Conselho da Eu­ropa, que determina em seu estatuto que “todos os Estados mem­bros do Conselho da Europa devem aceitar os princípios do Estado de Direito e a fruição por todas as pessoas dentro de suas jurisdições dos direitos humanos e liberdades fundamentais...”.42 A Con­venção Européia de Direitos Humanos, de 1950, entrou em vigor três anos após a sua adoção. Reconhece basicamente direitos de ordem civil. Logo em seu preâmbulo estabelece que o objetivo do sistema europeu é dar eficácia àqueles direitos elencados na Decla­ração Universal de 1948, embora a Convenção deixe de lado direitos de ordem social e econômica. Essa lacuna foi parcialmente preenchida em 1961, com a adoção da Carta Social Européia. Digo parcialmente, pois assim como os demais documentos internacio­nais que tratam de direitos sociais, a Carta estabelece obrigações vagas e que devem ser perseguidas nos limites dos meios existen­tes e como política governamental.

Três são os órgãos responsáveis pela implementação da Convenção. A Comissão de Direitos Humanos, que funciona em Estrasburgo, tem por função básica receber denúncias de Estados e indivíduos, de acordo com o art. 25 da Convenção. A maior parte dos Estados reconhece a competência da Comissão para receber tais denúncias. Há um processo bastante rigoroso que avalia a admissibilidade das petições individuais. Sendo aceitas, inicia-se uma nova fase em que a Comissão buscará a realização de um acordo amigável com os Estados. Caso esse acordo não seja alcan­çado, a Comissão poderá encaminhar o caso ao Conselho de Mi­nistros ou à Corte de Direitos Humanos. Em geral devem seguir para a Corte os casos dos Estados que aceitam sua jurisdição. Os demais devem ser encaminhados para o Conselho de Ministros para que seja tomada uma decisão política, ainda que balizada pelo direito. O fato porém é que a decisão de qualquer uma dessas ins­tâncias terá força obrigatória para os Estados partes, ou seja, surge uma obrigação internacional dos Estados em se conformarem a ela. Isso tem criado um sistema paralelo de controle da compatibi­lidade da legislação doméstica aos parâmetros estabelecidos pela Convenção Européia de Direitos Humanos. O Conselho de Minis­tros sempre paira como uma instância de monitoramento da im­plementação das decisões da Corte ou dos acordos realizados pela Comissão.

Por fim, deve-se destacar que na maioria dos Estados eu­ropeus a Convenção ingressa automaticamente no ordenamento jurídico, com status de lei ordinária, podendo ser invocada direta­mente ante os tribunais nacionais. Na Holanda o status da Conven­ção é supraconstitucional. Há alguns países,43 no entanto, onde a Convenção exige atos parlamentares para que os direitos ali reco­nhecidos possam ser reclamados junto ao judiciário. Paulatina­mente, no entanto, os magistrados desses países têm se permitido olhar para a Convenção como direito auto-aplicável.

Concluindo, os direitos humanos constituem o melhor exemplo do processo de constitucionalização da ordem internacio­nal. Isso não significa que as relações internacionais deixaram de ser regidas prevalentemente pela realpolitik e hoje se submetem aos parâmetros da lei dos direitos humanos. Mas cada vez mais esse leque de normas e princípios tem desempenhado um papel mais significativo na relação entre as nações e, sobretudo, no con­trole internacional da ação dos Estados em relação aos seus nacio­nais.

O maior sinal do sucesso do direito internacional dos di­reitos humanos, no entanto, tem sido sua capacidade de influenciar o direito doméstico, mais especificamente o direito constitucional dos diversos países que se reconstitucionalizaram nestes últimos 50 anos. Portanto, em relação aos direitos humanos, essa via de mão dupla deve ser estimulada, para que aumente a eficácia dos sistemas de proteção dos direitos humanos domésticos e interna­cionais.

A grande dificuldade hoje apresentada na esfera dos di­reitos humanos, no entanto, é superar o discurso construído pelos países centrais e inclusive por muitos de seus intelectuais e orga­nismos da sociedade civil, que exclui da pauta de reivindicações os direitos de ordem econômica e social. Pois sem que se atinjam padrões mínimos de dignidade e para isso uma adequada distribui­ção de recursos entre as nações,44 os direitos de ordem civil e polí­tica, por mais importantes que sejam, dificilmente conseguirão ser preservados.

Como se verá a seguir, a 1ógica da globalização econômica age contra esses direitos de ordem social. Daí a absoluta necessi­dade de se rearticular um discurso e uma ação conseqüentes sobre os direitos humanos a partir do ponto de vista dos excluídos, onde os direitos de ordem econômica e social não podem ficar num segundo plano.

5. A economia constitucional

Terminarei minha análise pelo impacto que a globalização econômica e o neoliberalismo tem provocado no constituciona­lismo contemporâneo. Essa tem sido, sem a menor dúvida, a maior fonte de pressão sobre nosso direito constitucional e a que deve nos preocupar intensamente. Ao invés de fortalecer direitos, ou integrar nações historicamente competitivas e artificialmente con­trapostas, muitas dessas reformas poderão lançar países como o Brasil numa perversa competição internacional, onde o aparente sucesso será alcançado ao custo de uma supressão de conquistas sociais. Deve-se destacar que o resultado desse processo pode ter impacto ainda mais devastador sobre países marcados pela desi­gualdade como o Brasil, que embora se encontre entre as dez maiores economias do mundo, fica em 62° lugar no Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas (IDH/98), am­pliando, assim, nossos altos índices de exclusão social. Portanto, é aqui que o cuidado deve ser redobrado.

A Constituição brasileira de 1988 é uma das representan­tes mais típicas do que se conhece como constitucionalismo diri­gista ou de caráter social, que se iniciou com a Constituição mexi­cana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919. Sofreu ainda forte influência do modelo alemão do segundo pós-guerra, assim como da Constituição portuguesa, adotada depois da derrubada do regime salazarista, nos anos 70. Diferentemente das constituições liberais que buscavam delimitar e sobretudo limitar a esfera de atuação do Estado, assegurando amplo espaço para a realização da liberdade individual, especificamente do mercado, as constituições sociais estabelecem obrigações positivas para o Estado na área social, buscam regulamentar as atividades econômicas, assim como configuram órgãos para a implementação de suas políticas públicas, que podem inclusive constituir agentes econômicos di­retos.

A Constituição de 1988, embora elaborada num momento de reflorescimento das idéias de limitação da atuação do Estado e mesmo de redução dos direitos de caráter social, adotou o figurino do Estado de bem-estar social, o que é absolutamente compreensí­vel numa sociedade marcada por profundos padrões de desigual­dade e que teve reprimidas suas demandas básicas por um longo regime de exceção. Trata-se, portanto, de uma Constituição pre­tensiosa o que não significa, de forma alguma, algo negativo, principalmente no que se refere a amplitude dos direitos funda­mentais. Há, no entanto, muitos dispositivos incorporados pelo texto constitucional, fruto de interesses meramente corporativos, que não precisavam e sequer deveriam estar ali. Como sustenta Elster, uma constituição que busque estender a sua rigidez sobre muitos temas pode gerar a necessidade de rupturas constantes.

Formulada num ambiente de efervescência democrática, sob uma participação da sociedade civil jamais verificada em toda a história brasileira e também sob forte influência corporativa, a Constituição de 1988 se configurou num compromisso entre os diversos setores articulados que detinham parcelas de poder na­quele momento. Um compromisso maximizador, onde cada setor organizado, através de um largo processo de barganha, alcançou a constitucionalização de seus interesses substantivos. Isso a princí­pio não seria nenhum problema: antes o contrário, pois afinal para que serve o sistema democrático senão para a realização dos inte­resses individuais e coletivos de uma comunidade? Mas no caso das constituições, os compromissos maximizadores são sempre problemáticos e isto por várias razões. Se todos ganham, o que é sempre algo ilusório, a sociedade não foi capaz de tomar uma de­cisão, de assumir uma direção, o que perpetua certas disputas que deveriam ser resolvidas no momento constitucional.

Ao incorporar na Constituição diversos temas tradicional­mente deixados à legislação ordinária, o constituinte quis dirigir a atuação dos futuros responsáveis por administrar o país, o que também não parece uma pretensão sem sentido, tendo em vista a enorme frustração da sociedade brasileira com seus legisladores, especificamente com o desprezo em relação à implementação de direitos constitucionais. Mas a extrema constitucionalização do direito tem um efeito colateral, que dificilmente pode ser evitado, que é o envelhecimento precoce do texto. Pois se ele garante rigi­dez, e portanto perenidade a uma infinidade de assuntos, quando as circunstâncias mudarem e for necessário atualizar esses temas será imprescindível uma mudança na constituição.

Neste contexto é que a onda neoliberal pegou o constitu­cionalismo brasileiro no contrapé. Se os anos do segundo pós-guerra foram de confiança nos Estados enquanto mecanismos de propulsão e intervenção na economia, assim como de construção de uma rede de seguridade social, a partir dos anos 80 esse con­senso passa a ser substituído por uma profunda desconfiança na capacidade dos Estados nacionais, enquanto agentes econômicos e sociais. A ação dos Estados é vista ainda como bloqueio ao livre desenvolvimento das forças do mercado, que gera a ineficiência e coloca esses mercados em desvantagem em face da competitivi­dade do sistema internacional. Mais do que isto, argumenta-se, o Estado intervencionista tende a gerar desequilíbrio fiscal, agra­vado, nos países em desenvolvimento, pela contração de enormes empréstimos internacionais destinados a saldar esse débito. Com o aumento dos juros, especialmente nos Estados Unidos, a dívida dos países em desenvolvimento passou a se expandir rapidamente. Como salienta Joseph Stiglitz, vice-presidente do Banco Mundial, o resultado de altos níveis de gasto público somados a uma retratação na base tributária foi o aumento dos índices de inflação.45

Nos anos 80, com a vitória de governos conservadores na Grã-Bretanha, Estados Unidos e em diversos países centrais, arti­culou-se um forte discurso sobre a necessidade de restrição da atuação do Estado, seja no seu aspecto social, intervencionista e mesmo regulador. O objetivo declarado é liberar a economia das ingerências normativas do poder público e equilibrar o orçamento interno dos Estados, criando condições mais adequadas ao bom funcionamento do mercado.

A linha de análise acima exposta, assim como o receituá­rio neoliberal voltado a pôr fim à referida crise, foram basicamente incorporados no que veio a ser conhecido como Consenso de Washington, onde um grupo de economistas do governo norte-americano, do Banco Mundial e do FMI estabeleceu um conjunto de medidas voltadas a debelar a inflação e estabilizar os sistemas econômicos nacionais. Esse consenso é, sobretudo, uma resultante dos diversos fatores de ordem econômica e política, especialmente a expansão da atuação das empresas transnacionais e a pressão dos governos centrais para a estabilização econômica dos países em desenvolvimento.

Sem dúvida, a afinidade entre as medidas ali propostas e o sentido das reformas que vêm sendo levadas a cabo não apenas no Brasil, mas em diversos países em desenvolvimento, não consti­tuem uma mera coincidência. No Brasil, em face da amplidão normativa de nossa Constituição, a quase totalidade desse pro­grama neoliberal tem levado o governo a propor um realinhamento da Constituição.

As reformas e propostas de reformas constitucionais vol­tadas a adequar o sistema econômico brasileiro a esse cardápio representado pelo Consenso de Washington têm por finalidade reformar o Estado, flexibilizando a administração pública, reorga­nizando o sistema previdenciário, assim como o judiciário; redefi­nir o conceito de empresa nacional, permitir o fim dos monopó1ios estatais e assegurar um amplo processo de privatização em todas as esferas da Federação; e reformar o sistema tributário, o que ainda não está muito bem configurado.

As reformas liberalizantes tiveram início no governo Collor. Como o caminho escolhido para as mudanças não foi o constitucional, mas no mais das vezes fez-se uso abusivo das me­didas provisórias, muitas dessas medidas foram contestadas ante o judiciário, que produziu milhares de liminares, que embora não tenham servido para barrar o arbítrio que marcou aquele governo, contribuíram para sua deslegitimação. Aprendeu-se, no entanto, que o judiciário, especialmente os juízes e tribunais inferiores, poderia ser um empecilho para qualquer reforma futura. Estabele­ceu-se, assim, por força da Emenda de n. 3, de 3/3/1993, a ação direta de constitucionalidade. Por intermédio dessa nova ação foi dado ao Presidente da República, às mesas da Câmara e do Senado e ao procurador-geral da República o poder de requerer direta­mente ao Supremo Tribunal Federal a declaração de constitucio­nalidade de um dispositivo legal. Essa declaração de constitucio­nalidade do dispositivo deverá vincular as instâncias inferiores, evitando um conflito entre a base e a cúpula do judiciário, como ocorreu no governo Collor.46 Reduziu, assim, a liberdade de ação do judiciário para obstaculizar as reformas propostas pelo governo. Há ainda uma série de propostas na esfera do judiciário, como a súmula vinculante, que também tem a função de estabelecer um maior controle da base do judiciário, por sua cúpula. O objetivo é fazer com que nosso sistema judiciário se ajuste as demandas de segurança jurídica e eficiência, visando a contribuição do “custo Brasil”,47 nas palavras do próprio governo, e conseqüentemente na atração dos investidores internacionais.

O governo Fernando Henrique Cardoso, diferentemente do governo Collor, tem buscado realizar as reformas por intermédio de um vasto conjunto de emendas à Constituição, acompanhado de medidas legislativas e uma profusão de medidas provisórias. Como já foi dito, o objetivo fundamental é reduzir a participação do Estado na atividade econômica, flexibilizar a administração e o sistema previdenciário e equilibrar o orçamento.

As Emendas nº 5, 6, 8 e 9 referem-se à questão do con­ceito de empresa de capital nacional e aos monopó1ios. A Emenda n. 5, de 15/8/1995, libera os Estados membros para conceder a empresas privadas a exploração e os serviços de gás canalizado. A Emenda n. 8, também de 15/8/1995, e n. 9, de 9/11/1995, farão coisa semelhante com a exploração das telecomunicações e do petró1eo. Isso tudo depois de o constituinte reformador ter extir­pado o art. 171 do Texto de 1988, que estabelecia o conceito de empresa brasileira e empresa brasileira de capital nacional, o que eliminou a possibilidade de um tratamento privilegiado destas empresas sobre as chamadas multinacionais.

Embora a União continue a ter monopó1io sobre as diver­sas atividades relacionadas com o petró1eo, gás e minerais nuclea­res, as empresas privadas podem ser contratadas para realizar as atividades antes reservadas às estatais. No que se refere às teleco­municações, a Emenda de n.8 permitiu que se iniciasse um amplo processo de privatização, que tem redundado na saída de cena das empresas públicas, substituídas por empresas privadas nacionais e internacionais de comunicação.

Depois de ampliada a participação do setor privado em es­feras antes limitadas ao Estado e suas entidades, houve um se­gundo bloco de reformas voltadas a flexibilizar a administração pública, em especial a redução dos custos com pessoal e previden­ciário, que hoje consomem cerca de 70% do orçamento das diver­sas esferas públicas brasileiras. De acordo com o argumento do Governo, “reformar o Estado significa rever a estrutura do apare­lho estatal e do seu pessoal, a partir de uma crítica não apenas das velhas práticas patrimonialistas ou clientelistas, mas também do modelo burocrático clássico, com o objetivo de tornar seus serviços mais baratos e de melhor qualidade”.48 Nesse sentido, a pri­meira mudança foi acrescentar o “princípio da eficiência” entre aqueles que devem reger a administração pública, em todos os seus níveis (art. 37, caput da CF), com a finalidade de possibilitar uma transição para a chamada administração gerencial. A reforma também rompeu com o regime único para os servidores, flexibili­zando as regras do funcionalismo, extinguiu a isonomia, estabele­cendo que a fixação de vencimento deverá corresponder a critérios como a peculiaridade do cargo, a natureza, o grau de responsabili­dade e a complexidade dos cargos componentes de cada carreira (art. 39 da CF e incisos). Ainda no que se refere à flexibilização, autorizou-se a perda do cargo “mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho” (art. 41, III), a colocação do fun­cionário excedente em disponibilidade, com vencimentos agora proporcionais ao seu tempo de serviço. Houve ainda mudanças no direito de greve e nos planos de carreira.

Assim como na maior parte dos países que dispõem de sistema de seguridade social, o Brasil também aprovou uma ampla reconfiguração do sistema previdenciário, por intermédio da Emenda de n. 20, de 15/12/1998. A previdência brasileira vive uma crise profunda, em que unindo os déficits da União, Estados e Municípios chega-se a um rombo de cerca de R$ 34 bilhões anuais. Estruturada nos anos 50, quando a proporção entre jovens que contribuíam e idosos que recebiam era de 8 para 1, vê-se hoje alterada em face de uma mudança demográfica pela qual temos 2 ativos para cada 1 inativo. Mais do que isso, é um sistema profun­damente injusto, à medida que privilegia alguns setores do funcio­nalismo público em detrimento dos demais.

Nesse sentido, entre as diversas mudanças feitas pelo constituinte reformador, o novo art.40 da Constituição passou a determinar que os servidores têm direito ao “regime previdenciário de caráter contributivo, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial”, ou seja, a conta da previdência não será mais fixa nas saídas, independentemente do que tenha sido arrecadado. Portanto, também aqui, houve uma grande flexi­bilização. Outro ponto relevante tocado pela reforma refere-se ao estabelecimento de uma idade mínima para a aposentadoria, que deve ser combinada com o tempo de serviço, de forma que os fun­cionários passem a se aposentar com cerca de 60 anos. Hoje a média de idade para aposentadoria é de 50 anos para funcionários públicos (art. 40, III, a e b).

Por fim, há ainda uma reforma tributária por vir. Como, no momento de redação deste texto, os seus contornos ainda não esta­vam bastante claros, resta apenas apresentar os objetivos expressos pelo governo, que são alcançar maior simplicidade, neutralidade e generalidade no conjunto das normas; eliminação das desvanta­gens da produção nacional em relação à internacional; harmoniza­ção de nosso sistema tributário, tanto internamente como em relação à comunidade internacional, sobretudo na esfera de mercado de capitais; e criação de condições para uma maior efetividade do sistema.49 Entre as propostas mais importantes encontra-se a subs­tituição do atual ICMS estadual, por um imposto sobre valor agre­gado federal, o que certamente contribuirá para uma maior centra­lização tributária.

Todas essas reformas têm sido feitas sob o argumento de que é necessário buscar adaptar o Estado brasileiro às demandas da globalização. Porém não é segredo que decorrem fundamental­mente da imposição das economias centrais, das agências intergovernamentais de financiamento, como o FMI e o Banco Mundial, e das empresas de caráter transnacional. De acordo com a retórica da globalização, o capital internacional só irá se interessar por investir num determinado território se houver um conjunto de condições adequadas, que vão no sentido da desregulamentação, da flexibili­zação da legislação social, da ampla liberdade de movimentação de capital, previsibilidade e minimização dos custos fiscais e da estabilidade monetária, que por sua vez exige redução dos gastos públicos e equilíbrio fiscal. Esta a cartilha. Como no Brasil muitas destas questões encontram-se na Constituição, esta a direção das reformas.

O impacto dessas mudanças ainda não pode ser medido do ponto de vista de sua eficiência. Mesmo porque há tantos outros componentes na atual crise brasileira, que essas reformas parecem ter sido utilizadas muito mais para sinalizar que o País esta se­guindo as determinações internacionais do que efetivamente pro­vocar uma alteração no padrão de atuação do Estado. Obviamente que as reformas da administração e da previdência ainda exigem uma carga infra-constitucional de regulamentação para que possam ser efetivadas. Por outro lado, o que tem se apresentado sob o ró­tulo de reforma fiscal é apenas um ajuste e tem o objetivo de am­pliar a arrecadação, que hoje já gira em torno de 30% do PIB, visando estabelecer um equilíbrio nas finanças do Estado. Nesse passo, a alteração constitucional que mais trouxe mudanças refere-­se à privatização. Nos últimos quatro anos o Brasil privativo mais do que a Inglaterra em 11 anos do governo conservador de Margarete Thatcher. Poucos, porém, foram os benefícios palpá­veis, visto que uma grande parte do que resultou das privatizações foi consumida com o custo dos juros, juros estes insuflados para seduzir capitais, financiar a dívida interna e manter o equilíbrio da moeda.50

Diferentemente dos demais fenômenos da globalização, não temos neste caso a já mencionada via de duas mãos. Há apenas uma assimilação dos padrões internacionais, sob a pers­pectiva de que são essenciais para se participar do processo de globalização. No entanto, se aceitarmos os argumentos de Galbraith já mencionado e de Hirst,51 de que a retórica de um ca­pitalismo globalizado, onde o capital se encontra absolutamente desvinculado de pátria e que se bem trabalhado pode beneficiar a todos, apenas encobre a realidade de uma expansão do capitalismo internacional, nossos esforços reformistas têm que ser repensados. Se o capital tem pátria e se a sua expansão gera benefícios inco­mensuravelmente maiores às economias centrais do que àquelas que tem servido de fonte de mão-de-obra e infra-estrutura baratas, as reformas têm que ser redirecionadas, de forma a satisfazer os interesses da sociedade brasileira. Isso significa manter nas mãos do Estado mecanismos, ainda que mais limitados do que no pas­sado, de governabilidade econômica. Aceitar incondicionalmente a retórica da globalização e promover as reformas por ela exigida é cometer um suicídio político.

Evidente que as constituições importam para o desenvol­vimento econômico, à medida que elas conseguem promover esta­bilidade, credibilidade e responsabilidade (accountability).52 Essa é uma missão para a qual as constituições devem se adaptar para colaborar com o desenvolvimento econômico. Estabilidade e cre­dibilidade são fundamentais para que se possa investir a mais longo prazo, sem medo de mudanças da vontade dos governos. Ao assegurar direitos individuais, como o direito à propriedade e esta­belecer limitações ao sistema tributário, indica-se ao investidor que seus investimentos não ficarão à mercê das paixões de maio­rias eventuais ou de minorias extremamente poderosas que consi­gam converter suas vontades em vontades governamentais. Por outro lado, a responsabilidade do governo em face da lei e seus cidadãos aumenta a confiança no sistema, pois se torna possível retificar violações a direitos e quebras de compromissos.

Como norma mais rígida do que as demais, as Constituições favorecem esses valores que estimulam a economia. Porém, as constituições têm muito mais a fazer do que simplesmente ser um equipamento econômico, que deve se amoldar para atender aos interesses do mercado. As constituições, se pretendem ter algum sentido, devem ser formuladas, sobretudo, como parâmetro de justiça da comunidade. Sem que sejam capazes de articular regras éticas, por intermédio de uma carta de direitos e de um conjunto de procedimentos para a tomada de decisões democráticas, as constituições perdem a sua finalidade. Como se optássemos por viver num mundo governado única e exclusivamente pelo princípio da utilidade e da eficiência.53 Porém, se partirmos do pressuposto moral básico de que todos são iguais e portanto devem ter suas esferas de dignidade protegidas ante a comunidade, a constituição não pode abrir mão desse papel de mecanismo de proteção dessa esfera moral.54 Mesmo que ela não venha a ocupar o papel de norma superior na organização de um rule of law do futuro, a ela caberá realizar a travessia de uma forma segura para esse novo modelo.

A economia e o poder do Estado, portanto, não podem ser apresentados como fins em si, mas como instrumentos para a rea­lização da dignidade exigida para todos. A constituição tem por função estabelecer os parâmetros éticos aos quais devem se sub­meter a economia e o poder do Estado e não o inverso. Evidente que se ao estabelecer regras de justiça distributiva, a constituição provocar uma profunda ineficiência de caráter econômico, que inviabilize qualquer forma de justiça, essas regras serão de pouca utilidade. Assim, as constituições devem salvaguardar regras bási­cas de justiça, política e economia e, na medida do possível, favo­recer os critérios de eficiência e utilidade. Este o desafio que se nos apresenta.

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(*) Este trabalho é dedicado ao Professor Celso Antônio Bandeira de Mello; agradeço mais uma vez a Beatriz pela leitura e críticas.

 

Nota: Publicado sob autorização do autor, este artigo está inserido no capítulo 1 da Parte I do livro Direito Global. SP, Editora Max Limonad, 1999, p. 15-48, organizado por VIEIRA, Oscar Vilhena, e SUNDFELD, Carlos Ari.

 

1. Tomei essas três expressões emprestadas de Boaventura de Sousa Santos; isto não signi­fica, porém, que as esteja usando com a densidade dada pelo autor, in Toward a New Common Sense, New York, Routledge, 1995. p. 281 e ss.

2. De acordo com John Kenneth Galbraith, “nós americanos inventamos este conceito para dissimular nossa política de entrada econômica em outros países. E para tornar respeitáveis os movimentos especulativos de capital, que sempre são causas de grandes problemas”, Folha de S. Paulo, 7/11/1997, apud Globalização: o Fato e o Mito, Rio de Janeiro, Ed. UERJ, 1998 p. 7.

3. Edmund Burke, Reflexões sobre a Revolução em França, Brasília, Universidade de Brasília, 1982.

4. Jean-Jacques Rousseau, O Contrato Social, Rio de Janeiro, Ediouro, 1982.

5. Karl Marx, A Questão Judaica, São Paulo, Ed. Moraes Ltda., 1991, p. 41 e ss.

6. Jon Elster, Constitucion Making in Eastern Europe, Public Administration, 71, 1993; Samuel Huntington, The Third Wave, 1991, p. 3 e ss.

7. Francisco Lucas Pires, Introdução ao Direito Constitucional Europeu, Coimbra, Almedina, 1997, p. 8.

8. Immanuel Kant. “Perpetual Peace", in Reiss, Kant Political Writings, Cambridge, University Press, 1996, p. 102 e ss.

9. Jürgen Habermas, Between Facts and Norms, Cambridge, The MIT Press, 1996, p.82 e ss.

10. Jon Elster, Precommitment and the Paradox of Democracy, Columbia University Materials, 1995, p. 1.

11. Oscar Vieira, A Constituição e sua Reserva de Justiça, São Paulo, Malheiros Editor, 1999.

12. J. H. H. Weller, “ The Transformation of Europe”, The Yale Law Journal, vol. 100:2403, 1991.

13. J. H. H. Weller, ob. cit., p. 2.413.

14. Court of Justice of the European Communities, case 6/64, 10 Rec. 1143 (1964).

15. Idem.

16. O art. 189, § 2º do Tratado, estabelece que “regulamentos devem ter aplicação geral. Eles devem vincular todos os Estados partes e ser diretamente aplicáveis em cada Estado membro”.

17. Foster vs. Nelson, 27 U.S. (2 Pet) 253, 313- 14(1829), com redação do Chief Justice Marshall.

18. Francisco Lucas Pires, ob. cit., p. 26.

19. Art. 55.

20. J. H. H. Weiller, ob. cit., 2.416/7.

21. Francisco Lucas Pires, ob. cit., p. 26.

22. Para uma discussão deste tema ver Jürgen Habermas. Citizenship and Nacional Identity in ob. cit., p. 500 e ss.

23. BVerfGE, p. 271 e ss.

24. Werner von Simon e Jorge Schwarrze, "Integración Europea y Ley Fundamental. Mastrique y sus Consecuencias para el Derecho Constitucional Alemá”, in Manual de Derecho Constitucional, Benda et al., IVAP, 1996, p. 38 e ss.

25. Art. F. 2.

26. BVerfGE 73, 339,340, apud Werner von Simon e Jorge Schwarrze, ob. cit., p. 40.

27. BVerfGE de 12/10/1993, apud Oscar Vieira, ob. cit.

28. Jack Donnelly, “What are Human Rights”, in Introduction to Human Rights, USIA, 1998, p. 3.

29. Max Weber, Economía y Sociedad, Fondo de Cullura, México, 1984, p. 172.

30. Oscar Vieira, “A Constituição Brasileira, os Tratados Internacionais e os Mecanismos de Defesa dos Direitos Humanos”, in Direitos Humanos no Brasil NEV/USP, São Paulo, 1993. p. 13.

31. Para uma interpretação desse dispositivo ver Oscar Vieira, O Supremo Tribunal Fede­ral: Jurisprudência Política, Revista dos Tribunais, São Paulo, 1994, p. 88; e o detalhado trabalho de Flávia Piovesan, Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, São Paulo, Max Limonad, 1996, p. 82 e ss.

32. Para uma análise da formação do direito internacional costumeiro ver Louis Henkin, Pugh, Scharter e Smit, International Law, St. Paul, West Publishing Co., 1987, p. 37 e ss.; ver também Theodor Meron, Human Rights and Humanitarian Norms as Costumary Law, Oxford, Claredon Paperbacks, 1989, p. 79 e ss.

33. Art. 2º (CIDESC/1966) “Cada Estado parte na presente Convenção compromete-se a adotar medidas... que visem assegurar progressivamente... o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto...”.

34. Isso quando o Estado expressamente acatar a jurisdição do Comitê, por intermédio, do Protocolo Adicional à Convenção.

35. Para uma precisa análise ver José Francisco Sieber Luz Filho, “Perspectivas para a Corte Internacional Permanente”, in Revista do ILANUD, n. 12, São Paulo, 1998.

36. Art. 26, caput (CADH/1969), “Desenvolvimento Progressivo”.

37. Quando os Estados expressamente consentirem com está hipótese, conforme o art. 62 da referida Convenção.

38. Art. 41 (CADH/1969).

39. Para uma análise do papel da Corte ver Thomas Burguenthal, “The Inter-American System for the Protection of Human Rights”, in Theodor Meron, Human Rights in International Law: Legal and Policy Issues, Oxford, Claredon Press, 1989, p. 460 e ss.

40. Sobre o caso Velasquez consultar Juan Mendes e José Miguel Vivanco, “Disappearences and the Inter-American Court: Reflexions on a Litigation Experiences”, Hamline Law Review, v. 13, n. 3, summer 1990.

41. Flávia Piovesan, ob. cit., 82 e ss.; e Carlos Weis, Direitos Humanos Contemporâneos, São Paulo, Malheiros Editor, 1999, cap. 1.

42. Thomas Burguenthal, International Human Rights, St. Paul, West Publishing Co., 1988.

43. Basicamente a Inglaterra e os países escandinavos.

44. “Todos têm direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente declaração possam ser realizados”, art. 38 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

45. Joseph Stiglitz, vice-presidenle e economista-chefe do Banco Mundial, conferência proferida em Helsinque, em janeiro/1998.

46. Para uma análise mais detalhada dessa emenda ver Oscar Vilhena Vieira, ob. cit, 1999.

47. Recomendação de 20/9/1996, sobre a Reforma do Poder Judiciário, firmada pelo ex­-Ministro, Maílson da Nóbrega, Presidente do Conselho de Reforma do Estado, MARE, 1996.

48. Luiz Carlos Bresser Pereira, A Reforma do Estado e a Constituição Brasileira, Textos para Discussão, n. 1, ENAP, Brasília, 1995.

49. Justificativa da Proposta de Reforma Tributária preparada pelo Ministério da Fazenda.

50. Como salienta Celso Antônio Bandeira de Mello, os esforços têm sido infrutíferos, uma vez que “a dívida mobiliária elevou-se cinco vezes. Passou de R$ 60 bilhões para R$ 310 bilhões (9/1998). 0 ‘déficit’ de transações correntes cresceu de US$ 1,7 bilhão pare USS 30,9 bilhões (11/98): mais de 18 vezes. A dívida externa privada, dantes de US$ 54,3 bilhões, elevou-se a US$ 118 bilhões (10/98): acima do dobro... O déficit público, de 1,1% do PIB, elevou-se quase sete vezes, representando mais de 7% dele”, A Reconhecida Competência do Dr. CHF, Folha de S. Paulo. 19/1/1999, p. 3.

51. Paul Hirst e Graham Thompson, Globalização em Questão, Petrópolis, Editora Vozes, 1998, p. 271 e ss.

52. Jon Elster, The Impact of Constitutions on Economic Performance, Proccedings of the World Bank Annual Conference on Development Economics, 1994, p. 206 e ss.

font size="1">53. Para uma criativa imagem do que seria esse mundo, ver Steven Lukes, “Five Fables About Human Rights”, in On Human Rights, Stephen Shute and Susan Hurley (ed.), the Oxford Amnesty Lectures, New York, Basic Books. 1993, p. 21 e ss.

54. John Rawls, Theory of Justice, Cambridge, Harvard University Press, 1979.

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