Democracia,
Igualdade, Diferença e Tolerância
Fábio F. B. de Freitas ****
"(...)as pessoas e os grupos sociais
têm o direito a ser iguais
quando a diferença os
inferioriza,e o direito a ser diferentes quando
a igualdade os descaracteriza."
Boaventura de Souza Santos
As reflexões em torno da atualidade da
Declaração Universal dos Direitos Humanos,
aprovada em 10 de dezembro de 1948, têm motivado o aprofundamento
do debate em torno da idéia e da vigência
da democracia, entendida como o regime político
que melhor protege e promove os direitos humanos.
Sem dúvida, podemos definir democracia
como o regime político fundado na
soberania popular e na separação e desconcentração de poderes, com
pleno respeito aos dire?????t????z?????itos humanos.
Esta breve definição tem a vantagem de agregar democracia
política e democracia social; isto é, reúne as liberdades civis, a
separação e o controle sobre os poderes, a
alternância e a transparência no poder, a
igualdade jurídica e a busca da igualdade social, a exigência da
participação popular na esfera
pública, a solidariedade, o respeito à diversidade e a tolerância.
A associação imediata entre democracia e
direitos humanos na sociedade contemporânea,
e especialmente no Brasil, não decorre de um consenso. Pelo contrário.
É corrente a afirmação de que estamos "em plena
democracia", uma vez que temos
voto universal e eleições periódicas, que os poderes constitucionais
funcionam e não existe censura nem presos
políticos. Quanto aos direitos humanos, é
conhecida a manipulação do conceito, visando a identificá-los como
"direitos dos bandidos".
Pretendo, neste texto, contribuir para o
debate a partir de algumas questões
que considero cruciais: * Professor
junto ao Centro de Humanidades da UFPB,nas áreas de Teoria e Filosofia
Política e Direitos Humanos.Prof do
Curso de Especialização em Direitos Humanos do CCHLA/UFPb..2 •
o que são direitos humanos, com
especial destaque para a questão da
?????t????z?????igualdade;
• •
a polêmica em torno da oposição virtual entre universalidade de
direitos humanos e o direito à cultura,
ou à diferença;
• a
educação para a democracia, como saída para se enfrentar a
discriminação e o preconceito por
intermédio de uma nova "cultura democrática".
Parto, ainda, de uma inquietação que
vem sendo crescentemente espicaçada:
até que ponto os direitos humanos, vinculados a princípios e valores
tidos por "universais", respondem
às necessidades de reconhecimento da legitimidade
de particularidades, seja em termos do direito à cultura, seja em
termos de especificidades
biológico-culturais, como as questões de gênero. Para essa questão
adianto apenas algumas considerações, pois entendo que persistem ainda
muitas dúvidas e perplexidades, sobretudo
referentes às chamadas políticas de ação
afirmativa — em relação às quais, no caso brasileiro, tenho uma
posição em princípio favorável.
Direitos humanos e a questão da
igualdade
Direitos humanos são aqueles direitos
comuns a todos os seres humanos, sem
?????t????z????? distinção de raça, etnia, nacionalidade, sexo, orientação sexual,
nível socioeconômico, religião,
instrução, opinião política e julgamento moral, e que têm como
pressuposto óbvio o direito à vida. Decorrem do reconhecimento da
dignidade intrínseca a todo ser
humano e diferem dos direitos do cidadão — embora estes estejam,
em grande parte, aí incluídos —, porque os direitos humanos
extrapolam as condições legais e as
fronteiras, as quais definem a cidadania e a nacionalidade.
A ausência de cidadania jurídica,
por exemplo, não implica ausência de direitos humanos,.
Para fins didáticos e de compreensão
histórica, costuma-se classificar os direitos
humanos em três gerações, as quais, de certa forma, corresponderiam
àqueles ideais da Revolução Francesa:
liberdade, igualdade e fraternidade. A primeira
geração, englobando os direitos civis e políticos e as liberdades
individuais, é fruto da longa marcha
das idéias liberais e tem sua inserção histórica marcada.3 pelas
conquistas da "democracia americana". A segunda geração,
correspondente aos direitos
econômicos e sociais — basicamente vinculados ao mundo do trabalho
—, permanece associada às lutas
operárias e socialistas na Europa, e sempre referidas
ao ideal da igualdade.?????t????z????? A terceira geração, entendida como o conjunto
de direitos decorrentes do
ideal da fraternidade e da solidariedade (alguns falam até em "solidariedade
planetária") corresponde ao direito à autodeterminação dos
povos e passou a incluir, mais
recentemente, o direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito
ao meio ambiente saudável, ao usufruto dos bens qualificados como
"patrimônio comum da humanidade".
Em relação ao conteúdo de cada
geração vale lembrar que determinadas sociedades,
mesmo se afirmando democráticas, enfatizam prioridades ou simplesmente
recusam certos direitos — o que já compromete a
"universalidade". Os
liberais conservadores, por exemplo, apegam-se aos direitos da primeira
geração e denunciam sua violação
por parte dos regimes autoritários, mas sempre tiveram sérias
dificuldades para aceitar, como direitos fundamentais, os de segunda
geração, os direitos sociais. Até hoje os
Estados Unidos, enquanto Estado, recusam tal
associação — o que explica, em parte, a ênfase americana na
expressão "direitos civis"
e não "direitos humanos" — e, em decorrência, excluem as
prestações positivas no campo
social, como saúde e previdência, por exemplo, no velho estilo hoje
renom?????t????z?????eado, entre nós, de neoliberal.
Em termos de direitos universais, a
liberdade corresponde aos direitos e garantias
para o exercício das liberdades individuais ou coletivas; inclui do
direito à integridade física e
psíquica aos direitos de expressão e de organização política. A
igualdade corresponde aos direitos à
igualdade diante da lei, mas também em relação
a necessidades básicas, como saúde, educação, habitação, trabalho
e salário justo, seguridade e
previdência etc. A solidariedade, que os franceses chamaram
de fraternidade, corresponde ao direito e ao dever de
co-responsabilidade pela busca do bem
comum, o que implica participação na vida pública.
É preciso destacar o direito-dever da
solidariedade, sobretudo num país como
o nosso, pois comumente a palavra assume, entre nós, significados
próximos à idéia de caridade,
assistencialismo, boa vontade. No entanto, se aceitamos a premissa
da igualdade na dignidade humana, a solidariedade deve ser entendida em
várias acepções: 1) a coesão entre
diferentes indivíduos e grupos é indispensável à.4 manutenção
do todo social, pois cada qual traz ao conjunto uma contribuição
insubstituível; 2) os indivíduos ou grupos
que se acham em situação de fraqueza ou defic?????t????z?????iência,
devem ser amparados pelos outros. Todos têm igual direito a uma vida
digna,sem privações do que é
razoavelmente considerado essencial (Comparato 1993).
Justificam-se aqui, por exemplo, os programas de renda mínima, já
aprovados em países do Primeiro Mundo e em
implementação em nosso Distrito Federal
e em algumas outras cidades.
Outro ponto a ser destacado é a
relação, muitas vezes vista como dilemática,
entre igualdade e liberdade. Se os direitos civis e políticos exigem
que todos gozem da mesma liberdade,
são os direitos sociais que garantirão a redução das
desigualdades de origem; caso contrário, a falta de igualdade pode
acabar gerando, justamente, a falta
de liberdade. Por sua vez, não é menos verdade que a liberdade
propicia as condições para a reivindicação de direitos sociais.
É preciso entender claramente o significado
de igualdade contido na proposta da
cidadania democrática. É evidente que não se supõe a igualdade como
"uniformidade" de todos os seres
humanos — com suas saudáveis diferenças de raça,
etnia, sexo, ocupação, talentos específicos, religião e opção
política, cultura no sentido mais
amplo. O contrário da igualdade não é a diferença, mas a
desigualdade, que é socialmente
constr?????t????z?????uída, sobretudo numa sociedade tão marcada
pela exploração classista. As diferenças não significam,
necessariamente, desigualdades, isto
é, não existe uma valoração hierárquica inferior/superior na
distinção entre pessoas diferentes. Homens
e mulheres são obviamente diferentes, mas
a desigualdade estará implícita se tratarmos essa diferença
estabelecendo a superioridade
masculina, por exemplo. O mesmo pode ser dito das diferenças culturais
e étnicas.
Em outras palavras, a diferença pode ser
enriquecedora, mas a desigualdade
pode ser um crime. É nesse sentido que se entende porque, no Direito
contemporâneo (inclusive na legislação
brasileira), manifestações de discriminação ou
racismo — no trabalho, no acesso a bens e serviços, nas diversas
formas de expressão social — são
tipificadas como crime, em alguns casos insuscetíveis de fiança
ou prescrição. No entanto, as desigualdades sociais, tão evidentes no
Brasil — com sua herança da
escravidão sempre presente —, não são ainda entendidas como
crime, mesmo quando decorrem de políticas ostensivamente excludentes..5
A igualdade é sempre uma dimensão social,
não individual. Ao contrário da
liberdade, ela ocorre sempre dentro de um grupo social, ou entre grupos
sociais, e não entre
indivíduos isoladamente considerados. Podemos identificar quatro
dimensões da igualdade democrática:
• a igualdade diante da lei; é um
pressuposto da aplicação concreta da lei,
quer proteja, quer puna. É o que os gregos chamavam de isonomia;
• a igualdade do uso da palavra, ou da
participação política; é o que os gregos
chamavam de isegoria;
• a igualdade que decorre, num paradoxo
apenas aparente, do direito à diferença,
ou seja, o direito que todos igualmente têm de preservar sua identidade,
bem como exigir tratamento específico em atendimento a necessidades
singulares dessa identidade (no caso, por exemplo, dos direitos
específicos das mulheres);
• a igualdade de condições
socioeconômicas básicas, para garantir a dignidade
humana. Desconhecida dos gregos antigos, é o resultado das
revoluções burguesas mas, principalmente, das lutas do movimento
operário e socialista nos séculos XIX e XX.
Fábio Comparato (1993) insiste, com razão,
em que essa quarta igualdade não
configura um pressuposto, mas uma meta a ser alcançada, não só por
meio de leis, mas pela correta
implementação de políticas públicas. Pois a desigualdade aqui
????t????z?????font face="Arial" size="2">considerada é a que afeta as classes,
grupos ou o gênero inferiorizados, isto é, que/font> possuem
menos força ou capacidade de autodefesa na sociedade.
As classes ou grupos
sociais inferiorizados têm direito ao exercício, pelo Estado, de uma
política de integração social.
Para Aristóteles a democracia seria o
regime fundado na idéia de que os homens
são iguais em tudo, e a oligarquia, aquele fundado na idéia de que os
homens são desiguais em tudo. Na verdade, a
democracia é o regime em que todos têm,igualmente,
direito a cultivar seus próprios valores e modos de vida, desde que isso
não importe em subordinar ou oprimir outros grupos e pessoas (Comparato,
1993).
A tríade
liberdade-igualdade-solidariedade é a base do regime democrático..6
Direitos universais e direitos à
diferença: o relativismo cultural
A discussão atual sobre direitos humanos
tem provocado muita polêmica sobre a
relação entre a universalidade dos direitos e a crescente
reivindicação pelo reconhecimento
da diversidade cultural, em todos os sentidos. Aqui discutem-se o
significado da tolerância — um dos
valores essenciais da democracia — e do r?????t????z?????econhecimento
de que direitos humanos tornaram-se "um tema global".
O que significa tratar direitos humanos
como um "tema global"? Significa reconhecer
que já existe, em âmbito mundial, a adesão a um campo comum de
valores que — independentemente de
quaisquer variáveis, individuais ou coletivas, decorrentes
de sexo, raça, etnia, nacionalidade, religião, nível de instrução,
julgamento moral, opção política e classe
social — definem a humanidade, a dignidade
de todo ser humano. Tais valores transcendem, hoje, o quadro histórico
do anticolonialismo e do anti-racismo
(embora os incorporem, é evidente), além dos direitos
e das liberdades consagradas no liberalismo clássico, para abranger o
direito à paz, ao desenvolvimento,
à cultura, ao reconhecimento do direito às diferenças e particularidades,
mantendo-se a premissa da igualdade, a postulação de uma nova ordem
política e econômica mais solidária.
Tratar direitos humanos como um tema
global não é, evidentemente, a mesma
coisa que falar em "globalização" dos direitos humanos. A
globalização do Direito pode
significar, por exemplo, a extensão ultrafronteiras de um determinado
interesse — como a defesa do meio ambiente
ou o acesso ao patrimônio cultural e cie?????t????z?????ntífico
da humanidade. Falar em direitos humanos como tema global também não
significa priorizar determinados interesses
internacionais, mesmo os mais nobres, mas
colocar em primeiro plano a abrangência — global — de valores
éticos enraizados nas noções de
justiça e igualdade. Volta-se, assim, aos ideais, não concretizados
na maior parte do mundo, da Revolução Francesa e da Declaração
Universal de 1948.
Deve ser lembrado, ademais, que a
Conferência Internacional de Direitos Humanos,
em Viena ( ONU, 1993), consagrou como
consenso básico o reconhecimento da unidade
do gênero humano — o que lhe confere a dignidade —, apesar de
manter a ênfase no respeito e na
tolerância à diversidade das nações, das regiões e dos grupos
sociais em seus aspectos históricos, culturais e religiosos..7
O conteúdo da terceira geração de
direitos humanos vem despertando especial
polêmica, pois muitos estudiosos — todos do primeiríssimo mundo,
ciosos de sua hegemonia econômica e
cultural — apontam para a imprecisão e a heterogeneidade
do elenco de direitos, além de problemas no plano jurídico para
sua efetivação. A principal dificuldade
jurídica reside no fato de que tais direitos, de fruição
também coletiva, contrariam o?????t????z????? entendimento mais corrente sobre o
"individualismo" em que se baseia
a conceituação tradicional de direitos humanos, na
ótica do Ocidente. Vale lembrar, no entanto, o avanço conseguido em
Viena, no sentido de que o direito ao
desenvolvimento, além de concebido como de titularidade
individual e coletiva (ou seja, para todas as pessoas e para todos os
povos) foi reforçado como um direito
universal e inalienável e parte integrante dos direitos
humanos fundamentais.
Mas a questão crucial diz respeito à
virtual oposição entre a universalidade dos
direitos humanos e o relativismo cultural. A polêmica é tão mais
intensa porque não apenas envolve
questões teóricas, muito caras aos antropólogos, por exemplo, como
— e sobretudo — envolve delicadas questões de ordem política.
Estas, no plano mundial, tendem a
opor conceitos diversos do que sejam "civilizações" e a
fomentar acusações de etnocentrismo, o
qual visaria especificamente uma possível "dominação
cultural do Ocidente".
Boaventura de Souza Santos (1997) entra
fortemente na polêmica afirmando que
"enquanto forem concebidos como direitos humanos universais, os
direitos humanos tenderão a operar como
localismo globalizado — uma forma de ????t????z?????font face="Arial" size="2">globalização
de-cima-para-baixo. Serão sempre um instrumento do choque de/font> civilizações,
ou seja, como arma do Ocidente contra o resto do mundo".
E propõe, como tarefa central da
política emancipatória de nosso tempo "a transformação
da idéia e da prática dos direitos humanos de um localismo globalizado
num projeto cosmopolita". Como Santos insiste na excelência da
abordagem marxista — aquela, segundo ele,
que enfatiza a igualdade no plano socioeconômico,
em detrimento da abordagem liberal, que apenas defenderia a igualdade
no plano político —, vale a pena conhecer melhor suas teses. Por
todas as considerações até agora
feitas, não estou convencida de que apenas a versão marxista
considera a questão da defesa dos direitos humanos com ênfase na
igualdade social; a versão da democracia
radical, por mim adotada, enfatiza exatamente
a urgência dessa igualdade, sobretudo num país como o Brasil..8
No plano interno das nações, o
reconhecimento do direito dos povos a sua cultura
tende a exacerbar reações centralizadoras do Estado face às
"minorias", bem como as
reivindicações específicas de grupos por um certo tipo de
"políticas compensatórias"
(mulheres, negros, pobres) tende a levantar outros tipos de discriminação.
Como foi amplamente divulgado pela imprensa, na época, esse tema
provocou intensos debates em Viena, tendo
sido veementemente questionado pelos países
asiáticos e africanos e os de religião islâmica. A própria
associação entre direitos humanos e
desenvolvimento econômico começou a ser contestada em função
do que seria entendido como imposição de um determinado
"modelo" de desenvolvimento,
o qual pode significar "progresso" para os países ricos às
custas da exploração de
mão-de-obra proletarizada dos pobres. Por outro lado, a extinção
de uma determinada cultura, devido ao
"progresso" da ciência ou da tecnologia, pode
ser considerada um atentado às liberdades fundamentais.
O relativismo cultural representa uma
faca de dois gumes: pode, sem dúvida,
significar proteção às minorias, quando são respeitados os elementos
de configuração das identidades.
Mas pode significar, também, a complacência com costumes
que atentam contra a dignidade do ser humano (mutilações rituais ou
castigos degradantes, por exemplo,
especialmente graves no caso de agressão às mulheres)
ou, no outro extremo, a escalada de conflitos étnicos e do fundamentalismo
religioso que, além de atingir o conjunto das populações envolvidas,
ainda significam maior violência contra as mulheres, como na história
recentíssima do Afeganistão e da Argélia.
O debate sobre o relativismo cultural
leva à discussão do multiculturalismo,
tema candente sobretudo na área da educação. Pelo que se tem observado,
sem qualquer pretensão de aprofundamento, até os movimentos políticos
de esquerda tendem a refutar teses radicais sobre o multiculturalismo,
bem como sobre qualquer política
pública de "ação afirmativa", como as que existem nos
Estados Unidos para negros, mulheres,
hispânicos, deficientes. Muitos estudiosos consideram
que a oposição entre universalidade dos direitos humanos e direito à
cultura encerra um dilema. Considero, no
entanto, que a única saída é defender, em todas
as situações, que é possível reconhecer um consenso em torno da
hierarquia dos princípios e das
normas, no qual predomina o direito à vida e à integridade física
e psíquica de todo ser humano. Nesse
sentido, o direito à cultura deve estar condicionado
também ao princípio da liberdade individual: cabe ao adulto escolher.9
livremente sua identificação cultural
— ou não escolher, ou desistir da escolha, em qualquer
época. Tal discussão obriga ao
redimensionamento do alcance e dos limi?????t????z?????tes da virtude
cívica da tolerância, essencial às democracias. Em
primeiro lugar, é claro que essa tolerância não significa levar ao
extremo o temor do etnocentrismo e, daí,
bloquear todo julgamento ético e político em
nome do relativismo cultural. O respeito à diferença não significa
esterilidade de convicções. Não se
trata de uma simples virtude passiva, de aceitação ou de passividade,
mas reúne dois sentidos, estreitamente vinculados aos demais valores
democráticos da igualdade e da liberdade: a
tolerância como respeito às diferenças e
à variedade da criatividade cultural e a tolerância como o
reconhecimento pleno da igualdade em
dignidade de todos — indivíduos ou grupos — apesar das diferenças.
A tolerância democrática opõe-se ao
autoritarismo e ao dogmatismo sob todas
as suas formas — políticas, sociais, morais e científicas. Para a
consciência democrática a
tolerância não será empecilho para denunciar e repudiar o
intolerável, como a discriminação
e a agressão aos diferentes, que leva ao racismo, ao sexismo, ao
fundamentalismo religioso, às diferentes formas do nazi-fascismo; o
recurso irresponsável da busca de
soluções violentas dos conflitos; a falta de ética nas relações
profissionais e na política.
É evidente que a definição do que seja
"intolerável" vai variar na mesma medida
que variam identidades culturais, com suas noções próprias de dever,
direito, justo e injusto, amigo, inimigo. A
melhor discussão que encontrei, no meio acadêmico,
sobre o tema, é a desenvolvida por Celi Pinto (1997). Essa autora
levanta questões fundamentais: até que
ponto se admite a diferença? Todas as diferenças
devem ser incorporadas como passíveis de convivência? É possível um
mundo de diferenças absolutas? A
autora discute como "os entusiastas da diferença e de um multiculturalismo
ingênuo tendem a ver toda construção de identidade e toda a manutenção
da diferença como conquistas. Entretanto, deve-se chamar a atenção
para o fato de que um considerável número
de identidades se constituiu não pelos sujeitos
que, por meio delas, foram enunciados, mas pelo seu contrário, pelo
dominador. Negros, mulheres, índios,
imigrantes, minorias étnicas das mais diversas,
todos foram nomeados pelos brancos, homens etc. Características.10
associadas à cor da pele, ou ao sexo, à
condição social ou à localização espacial, têm-se
constituído historicamente como formas de dominação".
Estamos diante de um problema, continua,
que só pode ser resolvido pela tolerância
— e mal resolvido, na medida em que tolerar identidades é, ao mesmo
tempo, congelá-las e não as integrar. Por
outro lado, a inclusão de uma determinada diferença
em um dado cenário de forças, em uma dada comunidade, não é um
fenômeno simples. A inclusão não é a
eliminação da diferença, mas o reconhecimento
da diferença; a exclusão, essa sim, é o não-reconhecimento do
outro (Pinto, 1997). Celi Pinto conclui
retomando os elementos do quadro dominante/dominado:
"Devemos redirecionar a discussão no
sentido de buscar formas de redistribuição
de poder na sociedade, que tenham como resultado o fim da necessidade
de alguns grupos identitários dependerem da tolerância para garantir
até mesmo suas vidas".
É difícil não concordar com ela.
Educação para a cidadania e em direitos
humanos
A violação sistemática de direitos
humanos em nosso país, em todas as áreas, é incompatível com
qualquer projeto de cidadania democrática. É fato inegável que, no
Brasil, os direitos políticos sempre antecederam os direitos sociais.
Criamos o sufrágio universal — o que
é, evidentemente, uma conquista — mas, com ele,
criou-se também a ilusão do respeito pelo cidadão. A realização
periódica de ????t????z?????font face="Arial" size="2">eleições convive com
o esmagamento da dignidade da pessoa humana, em todas as/font> suas
dimensões. A constatação desse quadro sombrio nos leva a refletir,
conforme Paulo Freire, sobre a
importância da educação como transformação no sentido da construção
de uma sociedade democrática.
O artigo 13 do Pacto Internacional das
Nações Unidas, relativo aos direitos econômicos,
sociais e culturais (ONU, 1966), reconhece não apenas o direito de
todas as pessoas à educação, mas que esta
deve visar ao pleno desenvolvimento da
personalidade humana, na sua dignidade; deve fortalecer o respeito pelos
direitos humanos e as liberdades
fundamentais; deve capacitar todas as pessoas a participar
efetivamente de uma sociedade livre. Temos aí, portanto, um marco
jurídico importante para a reivindicação
da educação para a cidadania..11
Outro importante marco jurídico de
abrangência mundial é a Convenção para
a eliminação de todas as formas de discriminação contra mulheres
(ONU, 1979). Em seu artigo 5º
estabelece que os Estados membros devem tomar as medidas
necessárias para "modificar os padrões sociais e culturais na
conduta de homens e mulheres, visando
a eliminação de preconceitos e práticas derivadas da crença
na inferior?????t????z?????idade ou superioridade de um dos sexos". No artigo 10º
estabelece que devem ser tomadas
todas as medidas para implementar programas de educação
mista, garantindo direitos iguais às mulheres e promovendo revisão nos
textos didáticos preconceituosos e na
própria metodologia do ensino. Nos dois casos trata-se
de estimular iniciativas de educação para a democracia, nos termos
aqui defendidos.
É preciso deixar claro que aqui
identificamos especificamente a educação para
a cidadania democrática. Essa ressalva parece óbvia, mas ela se
justifica quando lembramos que a
formação de cidadãos sempre foi preocupação de regimes totalitários,
no sentido da mobilização e da inculcação de valores de submissão
à pátria e ao culto à
personalidade, de exaltação das ações militares e do nacionalismo
xenófobo, da discriminação dos considerados "diferentes ou
inferiores", da padronização absoluta
de opinião, religião, comportamento etc.
Os trágicos exemplos do nazismo, do
stalinismo e dos fascismos deste século são eloqüentes;
seus governantes investiram eficientemente na educação de cidadãos
comprometidos com valores radicalmente
contrários à democracia.
A educação para a cidadania
democrática consiste na formaçã?????t????z?????o de uma consciência
ética que inclui tanto sentimentos como razão; passa pela conquista de
corações e mentes, no sentido de mudar
mentalidades, combater preconceitos e discriminações
e enraizar hábitos e atitudes de reconhecimento da dignidade de todos,
sejam diferentes ou divergentes; passa pelo aprendizado da cooperação
ativa e da subordinação do
interesse pessoal ou de grupo ao interesse geral, ao bem comum.
Se falamos em ética, trata-se de confirmar valores; nesse sentido, a
educação para a democracia inclui o
desenvolvimento de virtudes políticas decorrentes
dos valores republicanos e democráticos.
Por virtudes republicanas entendem-se:
a) o respeito às leis, vistas como
"educadoras", no sentido da autonomia, isto
é, leis decididas em processos regulares e amplamente
participativos;.12
b) o respeito ao bem público, acima do
interesse privado e patriarcal, típico de
nossa tradição doméstica;
c) o sentido da responsabilidade no
exercício do poder, com a consciência dos
males coletivos que resultam do descumprimento dos deveres próprios de
cada um, nas diferentes esferas de
atuação do cidadão.
Por virtudes democráticas entendem-se:
????t????z?????font face="Arial" size="2">a) o reconhecimento da igualdade e o
conseqüente horror aos privilégios;/font>
b) a aceitação da vontade da maioria
legalmente formada decorrente de eleições
ou de outro processo democrático, porém com constante respeito aos
direitos das minorias. No Brasil, como é
sabido, as grandes maiorias — do ponto de vista
socioeconômico — permanecem alijadas da participação política,
apesar de votarem nas eleições. O
desafio democrático para a construção da cidadania é, justamente,
a transformação dessa maioria social em maioria política;
c) o respeito integral aos direitos
humanos.
Os direitos implícitos nos valores são
definíveis intelectualmente, mas é evidente
que o seu conhecimento não será suficiente para que eles sejam respeitados,
promovidos e protegidos. Os direitos são históricos: é preciso
entendê-los nas suas origens, mas
também no seu significado atual e universal, assim como é
mister compreender as dificuldades políticas e culturais para sua plena
realização.
Em outros termos, democracia, cidadania e
direitos estão sempre em processo de
construção. Isso significa que não podemos congelar, para uma determinada
sociedade, uma lista fechada de direitos. Tal lista será sempre historicamente
?????t????z????? determinada. Como assinalou Hannah Arendt (1988), o que permanece
inarredável, como pressuposto básico, é o direito a ter direitos.
O processo de construção democrática,
lembra Marilena Chauí (1984), implica
a criação de espaços sociais de lutas (movimentos sociais, sindicais
e populares) e a definição de
instituições permanentes para a expressão política, como
partidos, legislação e órgãos dos poderes públicos. Distingue-se,
portanto a cidadania passiva
— aquela que é outorgada pelo Estado, com a idéia moral da tutela
e do favor — da cidadania ativa, aquela que institui o cidadão como
portador.13 de direitos e deveres,
mas essencialmente criador de direitos para abrir espaços de participação
e possibilitar a emergência de novos sujeitos políticos.
A escola pode ser um locus excelente para
a educação para a cidadania.
Alguns programas de formação de
professores em direitos humanos assim o indicam.
Mas existem outros espaços para a educação para a cidadania —
eleições, partidos, associações
profissionais, sindicatos, movimentos sociais e populares, mecanismos
institucionais de democracia direta (como o plebiscito, o referendo, a
iniciativa popular legislativa, o mandato
imperativo, a revogação de mandatos, os conselhos
populares, o orçamento participativo et?????t????z?????c.).
Além das iniciativas de partidos e
movimentos, cabe reivindicar a implementação
das propostas de educação para a cidadania, como aquelas previstas
no Programa Nacional de Direitos Humanos, apresentado pelo Ministério
da Justiça e com o apoio explícito da
Presidência da República, em maio de 1996.
Cabe, igualmente, discutir e aprofundar
os novos "Parâmetros Curriculares", do Ministério
da Educação, que prevêem a educação para a cidadania por meio de
"temas transversais" nas escolas
de primeiro, segundo e terceiro graus. Deve ser lembrado,
ainda, o recente Programa Estadual de Direitos Humanos, do governo de
São Paulo. São propostas públicas, em
relação às quais a cidadania democrática deve
se manifestar — eventualmente para criticar e transformar.
Finalmente, na discussão de direitos e
valores democráticos nunca será demais
enfatizar a solidariedade como uma virtude política ativa — por isso
difícil de ser cultivada —, pois
exige uma ação positiva para o enfrentamento das diferenças injustas
(que, por serem injustas caracterizam desigualdades) entre os cidadãos.
Assim, não basta educar para a
tolerância e para a liberdade, sem o forte vínculo estabelecido
entre igualdade e solidariedade. Esta implicar?????t????z?????á o despertar dos sentimentos
de indignação e revolta contra a injustiça e, como proposta
pedagógica, deverá impulsionar a
criatividade das iniciativas tendentes a suprimi-la, bem como levar
ao aprendizado da participação popular nos processos decisórios, em
função não apenas de prioridades
sociais, como também para a reivindicação e o reconhecimento
efetivo das diferenças e das particularidades..14
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