Trabalho
Escravo
no Brasil, até quando
?
Fr.
Xavier Plassat*
Antes
de qualquer conceituação – por certo, indispensável - o
trabalho escravo, para nós da Comissão Pastoral da Terra,
é uma realidade de carne e osso. São rostos humilhados de
trabalhadores privados de sua elementar liberdade, mantidos em
condições degradantes de trabalho por meios que os confinam,
longe das vistas da sociedade, sob a prisão física e moral da dívida
crescente, ou a chantagem da retenção de documentos ou de salários,
ou o cativeiro violento da vigilância armada, quando não
simplesmente do isolamento geográfico.
No
passado, só tínhamos acesso à sua realidade por meio de denúncias,
raramente possíveis de se comprovar. Os flagrantes das
autoridades competentes, nesses últimos anos, deram consistência
à denúncia de uma prática que até governantes, inclusive no
Pará, se atreveram a negar. Segundo os números do Serviço de
Inspeção do Trabalho (SIT), foram resgatados 1.834 trabalhadores
em situação de escravidão, de 1995 até o 30/06/2000. Porém,
os números reais continuam um enigma: há três trabalhadores em
cativeiro para cada trabalhador resgatado como afirma o Ministério
do Trabalho? Ou serão cinco, dez? Ninguém sabe ao certo. Mas
podemos afirmar que, enquanto houver estruturas e mecanismos que
permitam a continuação deste crime, obstaculizando o flagrante,
amenizando a punição e entravando a real erradicação,
estaremos denunciando.
Há
anos, A CPT está empenhada no combate ao Trabalho Escravo (TE).
Como CPT Nacional, temos mantido constantemente em alerta o Fórum
Nacional contra a Violência no Campo. Como CPTs da grande região
Norte, vimos organizando desde 1998 uma Campanha permanente de
combate ao TE envolvendo os estados do Maranhão, Tocantins, Mato
Grosso e Pará, além dos respectivos agentes das equipes locais
da CPT na Amazônia, no Sul e no Nordeste do país. Apoiados nessa
experiência concreta, tentaremos demonstrar alguns impasses
atuais da política brasileira de repressão ao TE e sugerir soluções.
Requisitos
de um combate efetivo ao trabalho escravo
Uma
ação eficiente contra o trabalho escravo exige, no mínimo, três
componentes: uma fiscalização extremamente ágil e absolutamente
independente; uma efetiva punição dos culpados; uma abrangente
política de prevenção, dissuasão e geração de alternativas
de trabalho rural.
Pela
ambição que traduzia e pela estratégia que encarnava, foi
recebida positivamente, há cinco anos, a decisão governamental
de criar o GERTRAF e o Grupo Móvel de Fiscalização, diretamente
ligado ao SIT, em Brasília. Um dispositivo desse tipo já era uma
exigência antiga do Fórum Nacional Permanente Contra a Violência
no Campo, defendido
pela CPT, tendo em vista a ineficiência quase total da fiscalização
até então praticada. Ao criar o Grupo Móvel, o Governo
reconhecia a necessidade imprescindível de se ter uma estratégia
repressiva totalmente isenta às pressões das oligarquias locais.
Daí surgiram quatro características
fundamentais do sistema
implantado: comando
único vinculado ao
SIT em Brasília; seleção rigorosa dos funcionários, com base
no voluntariado; sigilo total das operações; integração entre
Polícia Federal e Ministério do Trabalho na efetivação das
operações.
O
comando único garante a unidade e agilidade na decisão e,
sobretudo, tira a mesma do nível estadual, o qual tem demonstrado
sua fácil exposição às influências dos próprios infratores.
A seleção dos funcionários resulta num corpo de fiscais
dispostos e experientes, sempre escolhidos em estados diferentes
daqueles que estão sendo fiscalizados, dispondo portanto da
independência indispensável para enfrentar essa difícil problemática
(inclusive em vista de sua própria segurança pessoal). O sigilo
total das operações inviabiliza o vazamento das informações do
qual os infratores têm se beneficiado para dissimular suas práticas
criminais. O sigilo implica necessariamente no respeito absoluto
do efeito surpresa. Por isso, ao lançar uma fiscalização não há
como estabelecer contatos prévios com as autoridades locais ou
estaduais. Por fim, a estreita integração entre Polícia Federal
e Ministério do Trabalho, além da eventual presença do Ministério
do Meio Ambiente, em tese possibilita uma ágil ação de repressão,
nos vários aspectos: administrativo, trabalhista, ambiental e,
sobretudo, criminal. Resumindo: a força do Grupo Móvel tem sido
sua total autonomia e efetiva agilidade.
A
seriedade e a eficiência demonstradas pelo Grupo Móvel nas operações
de fiscalização são amplamente reconhecidas. Nas dezenas de
fazendas fiscalizadas desde 1995, centenas de peões escravizados
foram resgatados e tiveram seus direitos trabalhistas acertados.
Em alguns casos, no sul do Pará, os próprios fiscais chegaram a
assumir posteriormente, perante o Ministério Público Federal, o
papel de testemunhas, possibilitando a rápida agilização do
processo criminal contra os infratores, fazendeiros, empreiteiros
ou “gatos” e pistoleiros.
Desvirtuamento
do sistema
No
fim de 1999, a Coordenação da Campanha da CPT contra o Trabalho
Escravo manifestou suas preocupações sobre os vários obstáculos
que vinham se contrapondo à firme atuação do Grupo Móvel:
quebra do sigilo das operações de fiscalização; ruptura da
rigorosa centralização do comando; demora na articulação das
operações (principalmente por falta de recursos, especialmente
de meios de transporte adequados como carros e helicópteros),
culminando na não-realização de certas operações essenciais
de resgate, mesmo insistentemente solicitadas, pondo em risco a
situação dos informantes, geralmente fugitivos mantidos sob
proteção em condições precárias.
Ao
mesmo tempo, apontávamos para pontos fracos no dispositivo de
repressão, tais como o caráter irrisório das sanções nas
pouquíssimas ações penais e trabalhistas levadas a cabo,
estimulando a reincidência, bem como o simulacro de punição dos
autores através da eventual desapropriação da fazenda flagrada,
porém com indenização escandalosamente superfaturada (caso Flor
da Mata, no sul do Pará).
Compromissos
e descompromissos
Depois
de uma audiência da CPT com o Ministro do Trabalho, Sr. Francisco
Dornelles, na presença dos deputados
federais Valdir
Ganzer e Paulo Rocha,
em 08/12/99, a
Dra. Vera Olímpia, Secretária de Inspeção do Trabalho, assumiu
publicamente, em 10/02/00, o compromisso de tomar todas as providências
para que os obstáculos evidenciados fossem superados e o Grupo Móvel
voltasse a ter uma atuação ágil e eficaz no combate ao trabalho
escravo.
Três
exemplos recentes:
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Em
relação à fiscalização realizada no mês de julho deste ano,
na região do Alto Xingu conhecida como Irirí (município de São
Félix do Xingu), quatro denúncias da CPT haviam sido
encaminhadas ao Grupo Móvel entre 23 de abril e 26 de maio,
referentes às fazendas conhecidas como, respectivamente, Fazenda
do Edmar, Fazenda do Tide, Fazenda Bom Jardim e Fazenda do
Joaquim. Mais de dois meses foram necessários para viabilizar, de
forma bastante insatisfatória, a chegada do Grupo Móvel. Devido
à falta de logística apropriada, não foi possível derrubar os
obstáculos interpostos pelo infrator no caminho da Fazenda do
Tide. A fazenda Volta da Serra, cuja denúncia ocorreu quando da
presença dos fiscais em São Félix, não pode ser fiscalizada
porque a Polícia Federal já tinha recebido ordem de encerrar sua
missão de apoio.
Em
conseqüência dessa demora, informantes acabam aguardando em vão
um hipotético desfecho, colocando em perigo tanto sua vida quanto
a de quem os protege. No caso da fazenda Forkilha (Santa Maria das
Barreiras-PA), com ficha farta nos registros da SIT, o trabalhador
Edvan sofreu tentativa de homicídio por parte do proprietário,
Jairo Andrade e fugiu para Marabá onde prestou depoimento na Polícia
Federal (04/09/00). Em 6 de setembro, foi trazido pela PF
para a CPT de Xinguara, de onde, no mesmo dia, um pedido de
intervenção do Grupo Móvel foi encaminhado. Outros 20
trabalhadores estavam retidos na fazenda onde, segundo Edvan,
havia cerca de 15 pistoleiros. Apesar do Delegado da PF de Marabá
ter se prontificado a acompanhar a operação, o Grupo Móvel só
chegou em 18 de setembro, não encontrando mais ninguém no local.
Durante este período, Edvan ficou sob a proteção da CPT, em
local próximo a Redenção, onde poderia obter notícias de sua
mulher, que havia sido retida na fazenda com os filhos. Três
homens chegaram a arrombar a casa onde ele se encontrava e, em
18/09, um homem bastante suspeito procurou Edvan na residência
dos agentes da CPT em Xinguara.
Ainda
este ano, no mês de setembro, sete trabalhadores foram espancados
ao cobrar seu salário, em uma fazenda localizada entre Dom Eliseu
e Paragominas, no Pará. Eles haviam sido contratados para a
colheita de pimenta, junto com mais de 500 pessoas. O Grupo Móvel
foi avisado imediatamente e, depois de prometer ação imediata,
passou a alegar falta de veículos disponíveis na DRT-PA e pediu
prazo de 25 dias para realizar a investigação. Nenhuma fiscalização
ocorreu até hoje.
Sigilo
quebrado
Com
a demora na agilização das operações, não há como evitar o
vazamento das informações. Isso vem de encontro com outro
problema, nunca sanado apesar do formal compromisso assumido em
fevereiro passado pela Secretária da SIT, Dr Vera Olímpia, de
por fim à prévia informação às autoridades locais das operações
planejadas pelo Grupo Móvel.
De
fato, em 1999, vários exemplos haviam mostrado que fazendas e
empresas agropecuárias tiveram conhecimento da iminência da
fiscalização, deixando gerentes e “gatos” à vontade para
tomar as elementares providências no sentido de esconder os
trabalhadores ou descaracterizar as infrações. Em ocasião da
espetacular operação de fiscalização realizada pelo Grupo Móvel
na fazenda Maciel II, em São Félix do Xingu-PA, em abril de
1999, com o resgate de 186 peões escravizados, o Governador do
Pará, Sr. Almir Gabriel, denunciou a “interferência do Governo
Federal no [seu] Estado” e protestou veementemente por não ter
sido avisado com antecedência sobre a operação. A partir daí,
operações de fiscalização passaram a ser divulgadas pela
imprensa antes mesmo de serem iniciadas, levando ao absurdo de várias
fazendas já saberem da fiscalização antes mesmo da chegada dos
fiscais.
Vale lembrar que, na reunião do Fórum Contra a Violência no
Campo, em 30/09/99, a representante da Procuradoria Geral do
Trabalho manifestou também sua preocupação sobre o vazamento
das informações em operações contra o trabalho infantil.
Depois
da operação Maciel II, os responsáveis pelo Grupo Móvel
receberam a orientação de informar o delegado da DRT das operações
a serem iniciadas, assim como as Coordenadoras de Fiscalização,
além de só poderem requisitar veículos na DRT do próprio
Estado a ser fiscalizado, sem, portanto, nenhuma garantia nem de
sigilo nem de priorização na programação. No início da
fiscalização móvel, podia-se requisitar carro de qualquer DRT
do país.
A
inoperância do Grupo Móvel tem gerado desânimo entre os funcionários
e frustração entre os trabalhadores, os quais são vítimas
dessa morosidade. O trabalho cauteloso e mesmo assim arriscado,
assumido por agentes da Campanha da CPT, para acolher fugitivos,
identificar locais de trabalho, encaminhar denúncias e acompanhar
seu desfecho, esbarra hoje na inércia de um sistema desvirtuado
de seus princípios.
Impunidade
Consideramos
que a política atual garante a impunidade e incentiva a reincidência.
O bom trabalho do Grupo Móvel no passado, além de ser hoje
desvirtuado como demonstramos, continua sendo colocado em xeque
pela impunidade das infrações e dos crimes encontrados. A
reincidência sistemática das práticas culposas em muitas
fazendas aponta para o fracasso do sistema repressivo, além da
pouca vontade de resolver a questão.
Por
várias vezes alertamos às autoridades e à opinião pública
sobre a ausência de eficácia, portanto a ausência de qualquer
efeito dissuasivo, das sanções aplicadas nos crimes flagrados
bem como nas infrações trabalhistas. O valor das multas
aplicadas, quando pago, continua insignificante. E continua mais
lucrativo prosseguir com a prática do trabalho escravo, pagando
de vez em quando as multas de praxe.
Como
sanção, a desapropriação da terra também tem se revelado
ineficiente pois, ao indenizar, o Estado está, no mínimo,
premiando o dono do imóvel. A indenização ofertada pelo INCRA
compensa amplamente a perda da terra. O caso da Flor da Mata, no
município de São Félix do Xingu, ficou com caricatura do escândalo,
apontando com toda evidência para a necessidade do confisco em
tais casos.
Por
sua vez, são desconhecidos os efeitos das inúmeras ações civis
públicas impetradas pelo Ministério Público Federal do
Trabalho.
Os
processos criminais por trabalho escravo raramente chegam à
condenação efetiva, tanto na Justiça Federal quanto no sistema
local. Os processos são geralmente tão demorados que acabam
arquivados por prescrição. Pela primeira vez, em 1998, dois
fazendeiros foram condenados por trabalho escravo, mas acabaram
beneficiados com sursis. A pena aplicada se restringiu à
mera entrega de cestas básicas.
A
ineficácia do sistema e da prática das sanções é provada pela
reincidência: apesar das fiscalizações realizadas em 1996, 1997
e 1998, as multas aplicadas e mesmo os processos criminais
encaminhados, as fazendas Primavera (município de Curionópolis-PA),
Boca Quente (Bannach-PA), Forkilha (Santa Maria das Barreiras-PA)
e Estrela de Maceió (Santana do Araguaia-PA) foram novamente
flagradas com peões em regime de trabalho escravo nos meses
seguintes. A fazenda Maciel II, flagrada em abril 1999, é quase
vizinha da fazenda Flor da Mata, flagrada em 1997 pelo Grupo Móvel.
Seu caso teve grande divulgação na mídia nacional e regional.
Isso não impediu que cinco meses depois, em setembro de 1999, a
fazenda São Salvador, no mesmo município, fosse flagrada pelo
Grupo Móvel por prática de trabalho escravo.
Federalizar
a competência
Diante
desta alarmante situação, apresentamos um conjunto de propostas
construtivas, coerente com a linha adotada em 1995, por ocasião
da instituição do GERTRAF. Em razão da falta de coordenação e
da divisão do comando, da dispersão da competência e da inoperância
da repressão, sugerimos que o combate ao trabalho escravo seja
assumido como questão de âmbito federal. No campo da fiscalização,
isso significa:
1.
O Grupo Móvel de fiscalização deve ter sua competência
reforçada. Ou seja, sua competência e responsabilidade devem se
tornar exclusivas em questão de combate ao TE. Todas as informações
relacionadas com TE e colhidas por DRT, polícia, ministério público,
etc., devem obrigatoriamente ser encaminhadas para o SIT. Todas as
operações de fiscalização devem ser montadas e executadas sob
a coordenação do comando único, centralizado, do Grupo Móvel.
2.
O Grupo Móvel deve ter ampliados seus recursos, efetivos e
meios logísticos, não dependendo de programações concorrentes,
e dispondo de meios próprios, exclusivos e permanentes.
3.
A Polícia Federal deve constituir também seu próprio
‘Grupo Móvel’, ou seja, um corpo específico, preparado, orçado,
equipado e disponibilizado para este papel. Deve haver uma integração
das equipes da PF e MTb.
No
campo da repressão, isso significa que:
1.
Deve ser afirmada a competência exclusiva da Justiça
Federal para todos os processos relativos a TE, pelo menos
enquanto não houver possibilidade de julgar na Justiça do
Trabalho os crimes contra a organização do trabalho.
2.
A aprovação das diversas propostas de lei e de emenda
constitucional em tramitação no Congresso sobre TE deve ser
agilizada, principalmente a Lei de Expropriação (ou confisco,
sem indenização, das terras flagradas com TE).
3.
A essa proposta de lei de expropriação de terra deve se
acrescentar a definição de um rito sumário específico.
4.
A prática iniciada pelo MPF de Marabá, de chamar como
testemunhas os agentes da fiscalização, deve ser generalizada.
Essas
medidas são urgentes. O TE é a realidade trágica de uma
humanidade negada. Uma prática intolerável, principalmente no
limiar do terceiro milênio.
*
Fr. Xavier Plassat é
membro da coordenação da campanha da CPT contra o trabalho
escravo.
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