Caderno de Encartes Jornal de Natal,
10.01.1994, pág. B 2
CANTO
DE NATAL
Roberto
Monte
O
economista Roberto Monte, secretário-executivo do Centro
de Direitos Humanos e Memória Popular (CDHMP), nasceu
no bairro de Aldeota, Fortaleza (CE), a 24 de agosto de
1955. De uma família de cinco irmãos, morou dois anos em
Recife (PE) e três na cidade de Santo Ângelo (RS), na
região das ruínas de São Miguei, considera-se, contudo,
“um genuíno papa-jerimum”: “Eu sou o único apátrida
estadual lá de casa. O resto tudinho é daqui”.
Estudou
no Externato João XXIIl, Colégio Sete de Setembro,
Atheneu, Ginásio Arquidiocesano e Marista. “Morando
no Tirol, sempre fui para o colégio a pé. Só comecei
a utilizar ônibus depois que fui para a faculdade”. Da
geração pós-AI-5 (Ato Institucional n.º 5),
acha que “abriu a cabeça um pouco tardiamente”.
“Se
eu tivesse nascido num país organizado, talvez eu fosse
teólogo ou filósofo. Mas você ter uma dessas profissões
no Brasil, é uma tentativa de haraquiri, de suicídio.
O curso de Economia foi mais ou menos a junção de muitas
coisas para eu entender mais o mundo e tentar sobreviver
nesta grande selva A partir da Universidade é que eu
comecei a ficar mais inserido nos problemas sociais. Mas
este avanço foi também em cima de uma vertente
familiar: o povo da minha família foi muito ligado a
coisa de igreja (ele é sobrinho do Padre Monte). E eu,
radicalizando, em vez de participar de uma estrutura mais
convencional, fiquei ligado a uma igreja mais popular, a
linha da Teologia da Libertação. Radicalizei e, desde
que terminei a faculdade em 1980, sou um militante super
inserido na questão dos direitos humanos”.
Vê
um traço especial no perfil do natalense, “resultado
dos contatos que teve com o invasor ou invasor dissimulado.
Tende a ser menos conservador devido à influência
estrangeira. Sempre teve gringo por aqui: já foi Nova
Amsterdã, em 1940 chegava o yankee tomando Coca-Cola na
boca; aqui sempre tem uma Barreira do Inferno. A gente
acaba sendo um pouco aberto até para sobrevives”.
Politicamente,
vê necessidade de “uma faxina geral”. “O Brasil
hoje é uma grande cloaca; você tem que botar em
sedimentação. Raimundo Faoro fala que naquela borra,
naquele caldeirão, deve emergir alguma coisa nova. Se você
não acreditar nisso, você está lascado. A gente tem que
ter o poder de acreditar no porvir, no que virá. Acho que
o Brasil, os brasileiros, são ótimos. A classe
dominante, essa sim, é muito da safadinha. A gente tem
que acabar cortar essas amarras com esse Brasil dessas
oligarquias, do compadrio, do arrumadinho. Deus queira que
isto acabe, porque é um atraso”.
Paisagem:
Do
morro da Telern, em Tirol, olhando a cidade. Onde fica a
antena da Embratel. Ali tem uma imagem legal.
Bairro:
O
bairro de Tirol, nas imediações da rua Maxaranguape com
Av. Afonso Pena. Ali foi toda a minha infância. É um
bairro que me marca muito. Na lagoa Manoel Felipe, na época
da Jovem Guarda, tinha um concurso para calouros e a
pessoa que ganhava levava uma lata de Óleo Benedito.
Dica
ao turista:
Dependendo
da cabeça do turista, ele vai ver coisas interessantes. A
dica é ele ficar aberto para ele conhecer a cidade, sem
querer ter regras.
Armadilha
para o turista:
Acho
que uma armadilha muito boa para turista é o morro do
Careca, onde até filho de governador dança, e equipes de
filmagens. O pessoal pensa que aquilo ali é tudo bem
tranquilo e aquilo é urna armadilha pesada. O pessoal
ainda pensa que Natal é uma cidadezinha tranquila, bucólica,
mas tem aquela parte barra pesada.
Off-Natal:
É
São Vicente de Paula, um lugarzinho ali pras bandas de
Canelas (RS) que eu nunca esqueci: era um hotelzinho todo
de madeira, que lembrava muito o lance da Floresta Negra.
É um lugarzinho que eu sempre disse: no dia que eu tiver
uma estafa, vou dar um tempo lá. Nas serras gaúchas, um
lugar extremamente simples.
Praia:
Eu
gosto muito de Muriú, mas vista do mar. Gosto muito de
praia com coqueiros. No Rio Grande do Sul, o povo me
mostrava praias que tinha coníferas. Eu achava aquilo
estranhíssimo. Pra mim, praia tem que ter coqueiro. Acho
legal você ver Muriú, vista de uma jangada, de dentro do
mar para a praia.
Pôr-do-sol:
Gosto
muito do pôr-do-sol visto aqui de cima do Edifício 21 de
Março. Aqui da sede do Cento, é a nossa vivência. Todo
dia, de cinco horas, não precisa planejar muito.
Estação
do ano:
???`?font face="Arial" size="2">Eu
adoro chuva, não muita chuva, porque gosto de ficar numa
rede, de bobeira, dando umas lidinhas. Gosto do cheirinho
de chuva, cheiro de mato.o:p>
Sábado:
Geralmente,
gosto de dar uma lidinha ou tomar conta das minhas
papeladas ou esporadicamente na parte da manhã ir para os
sebos. E também descer de manhã para sair com a
meninada.
Domingo:
Adoro
dormir até mais tarde no domingo. É o dia em que gosto
de deixar rolar; o meu dia mais caseiro. Geralmente, é o
dia em que eu fico de bobeira.
Prédio
que mais gosta:
É
a casa da Viúva Machado. E não só pela localização;
até pelas historinhas que se contam. A casa da Viúva
Machado tem mais esse lance do imaginário. Eu gostaria de
morar lá.
Prédio
que mais detesta:
O
antigo QG (Quartel General do Exercito, atual Memorial Câmara
Cascudo). O antigo QG eu acho horrível. Eu abomino
aquelas coisas que vêm da ditadura militar. E aquela
infeliz daquela mão que botaram, de Câmara Cascudo, é
como diz uma irmã minha, “é tirana”. Aquela mão é
muito horrível.
Cinema:
Se
eu falar de “Cinema Paradiso”, estou falando dos
cinemas de Natal. Digamos (Cine) Rex, acabaram tudo. Foi
parte de nossa infância e adolescência que acabou. Hoje
é muito demodê; os cinemas estão sucateados.
Natal
chique:
Quem
passa e não vê é a Coluna Capitolina. Deve ser muito
chique, uma coisa que Mussolini trouxe e que, algum tempo
atrás, a Natal analfabeta, os pescadores ali no Canto do
Mangue afiavam a peixeira. É uma coisa muito louca:
aquela coluna que viu os Césares passarem, serviu para os
caras amolarem as peixeiras no Canto do Mangue...
Natal
antiga:
Eu
trabalho na Ribeira, e sou o perfil do anti-burocrata.
Quando estou meio atacado no emprego, gosto muito de andar
naquelas ruas da Ribeira, principalmente nas laterais. Tem
algumas que antigamente só eram passagem de cavalos e
carroças. Acho que não passa nem carro. Hoje está
descaracterizado e tem uma certa exacerbação nisto.
Natal
moderna:
Todo
aquele estado de espírito das pessoas hoje que têm uma
consciência mais crítica em relação a tudo que é o
poder público. É o que tem demais brega hoje, são os
poderes públicos. A modernidade passa também pela cabeça.
O que tem de mais moderno hoje é tudo que se contrapõe a
todo esse bolor dos poderes públicos. Se tem uma coisa
hoje antiga em Natal é essa cabeça das oligarquias e de
seus filhotes.
Local
que gostaria de conhecer:
Eu
tinha um projeto de conhecer as raízes da cultura
latino-americana. Cheguei a conhecer Bolívia, Peru, a
questão da formação do Império Inca. Tenho vontade de
conhecer a questão ali do México, a questão da cultura
dos Maias e também a Península Ibérica. É um grande
barato conhecer essas raízes.
Local
que preferia não ter conhecido:
Delegacia
de polícia é o anti-local que você poderia ir. É como
diria o professor Dalmo de Abreu Dallari: “Você
entrando, você já é violado em algum tipo de
direito”. A gente até que vai, mas é um lugar que eu não
gostaria.
Natal
que funciona:
Natal
hoje funciona em função da grana, do capital. Agora a
Natal que funciona em relação a outras coisas é aquele
espiritozinho da província, que tende a ‘dançar’ em
relação a isso. Hoje, você pra pular no meio da rua,
tem que comprar uma mortalha. Agora,
do “espírito do Grande Ponto” alguma coisa tem
que ser preservada.
Natal
que não funciona:
O
grande mal disto aqui é o espírito provinciano ligado ao
esquema das oligarquias. Isso aí emperra qualquer tipo de
negócio. Funciona para coisa que não presta. Uma coisa
é funcionar para quem e para quê. Uma coisa que não
funciona é o poder público trabalhando para que as
pessoas pressionem o exercício da cidadania.
Utopia:
Na
verdade, não é nem uma utopia. E urna meta a ser
perseguida: é a gente procurar uma maior igualdade
social. É implantar realmente um esquema em que as
pessoas possam pelo menos ter sua sobrevivência animal.
Luxo/lixo:
A
relação entre o luxo e o lixo é o seguinte: no momento
em que os sinais estão com hordas de famílias passando
fome, os Mitsubishi e Subaru estão rodando. Acho que a
grande utopia é acabar radicalmente com isso. E isso é
para dizer sem meias palavras. E não é sem utopia: é
utopia acabar com essa safadeza.
Homem
papa-jerimum:
O
Padre Monte; Luiz Gonzaga do Monte. é uma pessoa que,
tendo morrido há 50 anos, de alguma maneira marcou. Eu evoco esse lado familiar e ao
mesmo tempo religioso.
Mulher
papa-jerimum:
Não
vou citar a mulher. Vou citar Nísia Floresta Brasileira
Augusta. De alguma maneira, foi uma figura que dinamitou
muitas convenções. Também citaria Clara Camarão,
figura interessantíssima.
Natal
que espanta:
É
a miséria. Pela situação político-social e econômica
do pais, agravada pela seca, acho que Natal hoje 6 a própria
chaga aberta. Afinal qual é o país que a gente está
construindo? As gerações que virão depois da gente vão
ter um karma muito pesado pra segurar.
Natal
que seduz:
A
tendência é Natal ficar um pouco mais maliciosa e perder
um pouco dessa aparente ingenuidade. o grande lance que
cativa as pessoas. Não sei se isto é bom ou se é ruim,
num mundo totalmente cão.
A
cara de Natal:
São
aquelas brincadeiras da gente na infância no morro Tirol.
É o bairro onde moro até hoje é a antítese, como
bairro burguês, e minha cabeça é o inverso dos valores
ali contidos.
O
canto de Natal:
Tem
três coisas que não lembram bem Natal, mas são o Rio
Grande do Norte: é Praieira, Royal Cinema e Ranchinho de
Palha.
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