Texto da palestra proferida durante
o painel “ Quais os limites e possibilidades da cidadania planetária”,
dia 28 de janeiro, Eixo III
Hillary Wainright
Ao refletir sobre o país de onde
venho, a Inglaterra, julgo mais importante falar sobre as limitações
do que sobre as possibilidades. As derrotas sofridas com o
liberalismo, principalmente na era de Margaret Thatcher, devem-se,
parcialmente, ao fato de o movimento operário inglês ser um dos
mais fortes do mundo. Sua força, no entanto, tinha uma visão
paroquial e nacional.
Seattle foi muito importante para nós
porque começou a dispersar as nuvens da nossa derrota e a quebrar
o feitiço da senhora Thatcher: mostrou que há uma alternativa ao
neoliberalismo. O nosso sucesso em Seattle, Washington e Praga
levantou questões estratégicas. As perguntas que me parecem as
principais são: qual o papel que vemos para a sociedade? Quais são
as metas ? Não, metas no sentido das nossas exigências concretas
– cancelamento da dívida externa ou salário mínimo digno para
todos – mas que tipo de poder queremos para a sociedade, que
poder queremos criar?
Em primeiro lugar, vamos ver o tipo
de poder que já criamos no âmbito global. O poder de dizer “Não!”,
o poder de interromper coisas, o que é muito importante. É um
poder que força as pessoas a dizerem: “Esperem um minuto! O que
há de errado aqui?”. As pessoas precisam dar nome ao problema.
Na Inglaterra, o anticapitalismo já é uma palavra que se começa
a ouvir no noticiário. O capitalismo já começa a ser visto como
um problema, e não somente como uma solução. Isso já
representa um desafio à noção de que não existiam
alternativas, pois se há um problema, tem que haver uma
alternativa. Portanto, há um poder de desafiar a legitimidade do
capitalismo global e suas instituições globais.
Tivemos o poder de criar espaços
para pensar em alternativas, começamos a criar confiança para
engendrar alternativas. Os efeitos de Seattle têm sido de criar
confiança entre os servidores públicos, para começar a dizer
“Não!” às privatizações e começar uma alternativa baseada
na democratização do setor público. Mas qual é o papel dos
movimentos na sociedade civil? Historicamente, o papel dos
movimentos sociais no período que vai da década de 20 à de 50,
foi o de pressionar o Estado e os partidos políticos. De uma
certa maneira, os movimentos se viam nesse período quase como uma
maneira de expressar a nossa dor, expressar o problema. Depois a
solução seria entregue para os partidos políticos.
Há uma teoria de conhecimento por
trás desse pensamento. A idéia tradicional de movimentos sociais
previa que o conhecimento existisse somente no topo do Estado, não
nos partidos políticos. Hoje já se admite que existe um
conhecimento a nível local e a nível nacional. O Estado
social-democrata não entendia as necessidades do povo, não tinha
um conhecimento prático. Infelizmente, e tragicamente, o
neoliberalismo é que tem explorado o espaço dessa noção
tradicional do conhecimento. Aquela velha noção de conhecimento,
aquela velha forma de socialismo, que presumia que o conhecimento
residia apenas na mente dos especialistas. O neoliberalismo tem
comemorado o conhecimento prático do empresário, visto enquanto
indivíduo. Sabemos que nas empresas o conhecimento é
incrivelmente organizado, embora não sendo democrático.
Os movimentos sociais têm buscado
uma alternativa com esse conhecimento prático, socializando-o,
desafiando a noção de que só funcionaria no plano individual.
É possível ver formas de poder econômico no desenvolvimento das
cooperativas, no desenvolvimento de alternativas de comércio
exterior justo, em formas de economia solidária e sem fins
lucrativos. Em termos de poder social, é possível ver a importância
do feminismo, um feminismo moderno, não pressionado pelos
partidos políticos, tentando impor as necessidades das mulheres
na agenda política. O feminismo não esperou por governos ou pela
revolução. As mulheres criaram alternativas nas suas vidas
cotidianas, assim como em termos de novas instituições públicas
– como, por exemplo, as creches. Houve uma série de novas
instituições que foram desenvolvidas como resultado da ação
das mulheres. Juntas, em torno de seu conhecimento prático,
abriram caminhos para alternativas aqui, agora e no futuro.
Com o seu desenvolvimento, vimos os
movimentos populares transformarem-se em uma nova fonte de poder
político. Esse é um fator da importância de Porto Alegre, uma
cidade onde está emergindo, nos últimos 15 anos, um novo modelo
de democracia, muito mais profundo, em que as pessoas controlam o
Estado. Não delegam, simplesmente, ao Estado, o papel de as
representar. Exercem um controle sobre o Estado, nas operações
do dia-a-dia, através do orçamento participativo, através dos
comitês de bairro, que elegem delegados para negociar um orçamento
que atenda às necessidades do povo. Isso é um modelo sobre o
qual devemos refletir.
Como poderíamos desenvolver esse
tipo de modelo no plano nacional, ou no plano global? Atualmente,
o poder que estamos tentando ampliar é poder econômico das
cooperativas, de um comércio justo, essas alternativas do
feminismo. Mas também vemos surgir um certo movimento como conseqüência
da desistência Estado-nação, que abandonou as suas
responsabilidades democráticas e sucumbiu ao poder das empresas
multinacionais. Os movimentos sociais têm preenchido o vácuo
democrático para garantir direitos humanos fundamentais com relação
à proteção da natureza, ao controle popular, apenas para
mostrar que na prática existe uma alternativa. O desenvolvimento
de uma alternativa está se tornando um fator cada vez mais
urgente, à medida que enfrentamos a realidade de termos uma
recessão no poder mundial que vai acabar afetando todos os outros
países.
De certa forma, os movimentos
sociais estão na liderança global em torno da democracia. Não há
nenhum partido político amigável em âmbito mundial, ou Estado
amigável, não existe um poder global democrático. Para garantia
desse papel altamente responsável, temos que ter consciência das
nossas limitações na medida em que estamos no seu estágio
inicial. Talvez o mais importante seja sermos autocríticos e ter
auto-consciência. Seria a maneira de reduzirmos as desigualdades
da sociedade que buscamos libertar. Apenas para pensar um pouco,
vejamos o caso das desigualdades que existem entre os hemisférios
Norte e o Sul. Sendo do Norte, estou ouvindo mais as pessoas do
Sul, para refletir sobre minhas próprias experiências. As ONG do
Norte tendem a assumir a liderança, mas o fazem de uma maneira
paternalista. Embora a noção de solidariedade esteja embutida na
esquerda do Norte, é muito importante, é fundamental, que haja
uma mudança de comportamento, de modo a garantir a auto-confiança
e firmeza dos movimentos do hemisfério Sul. O Norte tem muito a
aprender com os movimentos do Sul. Descobri isso por minha própria
experiência, com a democracia participativa, por exemplo. Aprendi
muito mais do que se fossem só experiências do Norte. Por uma série
de razões, relacionadas às desigualdades da luta, à forma pela
qual se desenvolveram as lutas na América Latina, vêm surgindo
novas instituições com as quais os movimentos do Norte têm
muito a aprender. A noção de solidariedade precisa evoluir para
uma noção de aprendizado e compreensão.
Também é muito importante
refletir entre as desigualdades do Leste e do Oeste. Os movimentos
do Leste são diferentes e não estão sendo discutidos neste
Forum. As pessoas do Leste têm sofrido muito com o FMI e as suas
políticas. Sofrem materialmente, em termos da pobreza a que foram
levados, e também no sentido de ver esmagadas as cooperativas que
existiam. Temos que fazer um esforço para atrair movimentos e
organizações do Leste Europeu para o nosso processo mundial.
Outra desigualdade social que tem o
perigo de ser refletida em nossos movimentos é a desigualdade de
classes. Apesar do internacionalismo estar embutido em sua tradição
histórica, o internacionalismo proletário foi enfraquecido. A lição
é que os movimentos dos trabalhadores vão além do sindicalismo
tradicional (defender o trabalhador no local de trabalho),
passando às questões sociais, atingindo a comunidade, envolvendo
grupos que não são tão facilmente organizados no local de
trabalho, trabalhadores temporários e também as organizações
de trabalhadores de âmbito nível internacional.
O terceiro elemento é a
desigualdade de gêneros. A esquerda é muito complacente com a
luta das mulheres, pelo menos os movimentos sociais. A maioria dos
painéis deste Forum só tem uma mulher, ao contrário deste, que
só tem um homem. É interessante notar que é sobre a rede civil,
e é dominado por mulheres, pois são as mulheres que na verdade
estão desenvolvendo os movimentos populares. Temos que prestar
mais atenção e ter mais consciência do trabalho das mulheres.
Atualmente, existe uma rede muito forte de trabalhadores domésticos
pensando em como organizar a forma de trabalho. Essas redes fazem
parte das alternativas democráticas, em termos da economia.
Acho que são estas três áreas
que temos que pensar criticamente. Finalmente, para resumir,
existe um poder emergindo aqui. O poder que neste momento desafia
as instituições neoliberais, colocando-as em julgamento. Este
encontro marca historicamente o nosso passo adiante para
desenvolver as alternativas ao neoliberalismo. Penso que existem
duas lições que devemos tirar: a primeira é que se nós
queremos a paz, em uma nova forma de democracia, temos que
espalhar o espírito de Porto Alegre por outras cidades do Brasil
e temos que criar instituições que não apenas possam controlar
um Estado, mas, a nível global, quebrar o controle do mercado, as
multinacionais. Teremos que construir a nossa sociedade civil
global, instituições globais paralelas, encobrindo as instituições
já existentes do capitalismo global? Não. Temos que revezar os níveis
de poder que significa quebrar estas instituições. Se o formos
fazer isto, teremos que ser enormemente auto-conscientes e autocríticos.
Teremos que viajar por todo o mundo, teremos que nos manter no chão,
não ficarmos voando apenas, temos que ter chão. O conhecimento
prático e o poder existem para criar uma alternativa: ter os pés
no chão.
Reprodução editada da gravação
da palestra proferida, sem revisão final da expositora.
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