Texto da palestra proferida durante
o painel “ Como garantir o caráter público dos bens comuns à
humanidade, sua desmercantilização, assim como o controle social
sobre o meio ambiente?”, dia 27 de janeiro, Eixo II
Marcel Mazoyer
Gostaria de falar um pouco sobre as
trocas agrícolas internacionais e sobre os mecanismos de
empobrecimento do campesinato em geral, sobre os mecanismos de
exclusão decorrentes do livre comércio mundial e sobre a
apropriação privada dos recursos genéticos do planeta.
Em primeiro lugar, é preciso
relativisar de forma clara o que são as variedades vegetais, as
raças animais obtidas por pesquisadores privados ou públicos,
tanto no hemisfério Norte como no hemisfério Sul (principalmente
no Norte, e muitas vezes por pesquisas privadas). Não são os
pesquisadores de hoje que criaram os recursos genéticos que
manipulam nos laboratórios. A Terra já tem 4,5 bilhões de anos
de existência e a vida na Terra, 3,5 milhões de anos. A evolução
das espécies vivas tem, portanto, 3,5 bilhões de anos e já
produziu mais de 150 milhões de espécies vegetais (em inúmeras
variedades) e mais de 1 bilhão de espécies animais.
De 2 mil anos para cá, desde a época
neolítica, os agricultores da América – do México, primeiro,
depois do Peru e do vale do Mississipi – começaram a cultivar e
a criar plantas e animais. A mesma coisa aconteceu no Oriente Médio,
na Europa, na Ásia, na África, em Papua Nova Guiné: cultivavam
plantas criavam animais, essas plantas e esses animais foram sendo
domesticados e esses camponeses os levaram para toda parte. Ao
longo desse percurso, essas plantas foram se adaptando a
diferentes regiões e os camponeses as selecionaram durante
milhares de anos. Os camponeses também adaptaram às condições
de trabalho, suas ferramentas, seus modos de produção e suas
necessidades. Isto representa, inevitavelmente, 999 de cada 1.000
espécimes do patrimônio genético das plantas cultivadas e
animais domésticos.
As variações genéticas que os
pesquisadores hoje introduzem – pesquisadores que nunca
produziram um recurso genético novo, mas que modificaram muitos
deles – representam somente 1 em cada 1.000 genes. Portanto, se
quisermos nos apropriar de um produto de trabalho de seleção genética,
temos o direito de nos apropriarmos de 1 por 1.000, nunca mais do
que isso, da variedade ou da espécie que pretendemos possuir e da
qual pretendemos manter e auferir lucro comercial durante vinte
anos. Tudo que for além de 1 por 1.000 é roubo, é ilegítimo, não
corresponde a nada no que se refere à biologia.
É possível certificar uma
variedade vegetal obtida por alguém que está selecionando por
meio de manipulação genética. É possível dar a essa pessoa um
certificado de obtenção de um vegetal e esse certificado vai
autorizá-la a explorar a sua variedade comercialmente durante
vinte anos. Isso existia e ainda existe, pois há 40 países que
participam da União Internacional pela Obtenção das Variedades
Vegetais e a modalidade do que eu chamo de certificado de obtenção
vegetal autoriza quem a obteve – o que não quer dizer que a
produziu a fazê-lo por um período de vinte anos. Dessa forma,
ele poderá pagar seu investimento material, seu trabalho
intelectual etc. Mas o certificado de obtenção vegetal de que
estou falando respeita o fato de que a base genética a partir da
qual foi obtida a nova variedade pertence a toda a humanidade.
Um camponês que compra uma semente
certificada, depois da primeira colheita tem o direito de semear
essa variedade outra vez, indefinidamente. Paga pela semente uma
vez e depois pode utilizá-la não comercialmente, mas para fins
pessoais, de forma não discriminatória. Isso se chama o privilégio
do camponês. Depois, outro pesquisador, ou uma instituição de
pesquisa, podem usar essa variedade para produzir outras
variedades. Chamamos a isso o privilégio ou direito dos
pesquisadores e selecionadores. Em outras palavras, o certificado
de obtenção vegetal nunca é uma apropriação da totalidade, da
variedade que foi criada, é somente uma proteção, por um período
de vinte anos, do direito de comercializar e não o direito de
multiplicar essa variedade ao infinito... O direito de multiplicar
é do camponês e o direito de tirar novas variedades desta
variedade é dos pesquisadores.
Tudo mudou a partir de 1930, quando
surgiu, nos Estados Unidos, a Lei da Variedade de Plantas. Era uma
lei totalmente diferente, pois essa ação legislativa dos EUA
inaugurava uma nova patente vegetal, que passava a ser um direito
exclusivo, não só de comercializar a nova variedade, mas também
de a reutilizar para qualquer finalidade. Quer dizer, os
camponeses não têm o direito de semear de novo e os
pesquisadores também não têm o direito de usar, a não ser que
comprem ou paguem por essa variedade para obter outras. Uma
patente de tipo industrial sobre variedades cultivadas torna-se
negação de que o material vegetal é um bem comum da humanidade.
A partir do momento em que essa legislação de patentes começou
a avançar nos EUA e em outros países, colocou-se a pergunta: se
vocês vão pegar uma planta na Bolívia, no Peru, ou na Índia, e
se manipularem um pouquinho a planta para obter uma nova variedade
e fizerem publicidade, vai haver um grande lucro para os países
do hemisfério Sul, assim como para os outros, e os camponeses vão
dizer: “Espere aí, e nós? Nossos avós e nosso tataravós
trabalharam durante milhares de anos para produzir a espécie doméstica,
que é a variedade básica a partir da qual vocês fabricaram essa
variedade milagrosa. Nós também queremos ser remunerados!” O
que é totalmente justificado. Atualmente, nas negociações
internacionais, é claro que alguns países e grupos privados
fazem a maior pressão em favor do sistema de patentes de tipo
industrial. É a negação do direito comum que todos temos, uns
um pouco mais, outros menos: o direito de propriedade sobre os
recursos genéticos que nasceram da evolução e do trabalho de
gerações de camponeses.
Diante disso, acho que devemos traçar
uma estratégia muito clara. Não devemos dizer que não sabemos
muito bem a proporção dos lucros que devem ir para as firmas de
seleção vegetal e o que se deve destinar ao país ou aos
camponeses. Sempre é nessa arapuca que agente cai. Quando dizemos
que não sabemos avaliar, estamos negando a situação objetiva
dos recursos genéticos tal como foram produzidos pela evolução,
pela história agrícola. Quer dizer: lançamos uma névoa sobre a
coisa, tornando incompreensível a situação, e depois vamos
oferecer um cavalo de raça para as empresas e um pardalzinho para
os camponeses do hemisfério Sul. Não é assim que devemos fazer.
Devemos lutar com toda a clareza e com os seguintes objetivos:
primeiro: tornar a divulgar a consciência da realidade dos
recursos genéticos. De onde vieram? O que custaram e a quem
custaram? Custaram pouco aos que querem lucrar com ele.
Se não o fizermos, as alternativas
são claras e simples – ou voltamos ao Certificado de Obtenção
Vegetal, quando a semente é vendida ao camponês e ele tem o
direito de semeá-la todas as vezes que quiser, e trocar com os
vizinhos, desde que não comercialize os grãos em lugar do
pesquisador; ou todos os pesquisadores do mundo poderão usar essa
semente que pertence à humanidade em 999 casos entre 1.000. Esse
é o princípio do Certificado de Obtenção Vegetal que dominou a
questão durante décadas até esta incrível ofensiva a favor das
patentes industriais e da propriedade exclusiva.
Acrescentaria que também é
indispensável, para que esse direito seja real e realmente
preservado, proibir a comercialização de variedades híbridas,
cujos descendentes são quase estéreis ou inutilizáveis. Devem
ser proibida a comercialização de variedades geneticamente
modificadas, transgênicas, em que tiver sido incluído um gene
que as torne estéreis. Deve ser proibida a comercialização de
variedades tratadas quimicamente para serem férteis durante uma só
geração, e depois, estéreis. Tornar uma variedade estéril é
um crime contra a humanidade. É terrível, é uma injúria à
natureza e aos milhões de camponeses que, durante milhares de
anos, fizeram esse trabalho gratuitamente. É uma vergonha! Os
autores desses crimes devem ser banidos da sociedade, não se deve
comprar nada deles. Nem a variedade que eles vendem, nem os cafés
que fabricam, nem os carros. Eles devem ser etiquetados. Aliás,
foi uma alegria quando algumas pessoas protestaram e eles mudaram
as do setor especializado na produção de transgênicos por terem
vergonha. Temos que boicotar essas empresas! E também temos que
ir à justiça contra elas pois quando fazem uma coisa dessas, a
humanidade inteira está sendo roubada por elas.
Embora complicado, acredito que o
Certificado de Obtenção Vegetal é uma maneira de preservar o
direito de todos. Há outra solução, talvez mais difícil, que
é de dar ao centro de pesquisa público, de âmbito nacional ou
internacional, a exclusividade de direitos de divulgar qualquer
nova variedade. Mesmo que se venha a comprar uma nova variedade
das mãos de um selecionador particular, pagando-se o preço, ou
seja, um milésimo do valor, 1 por 1.000 de pesquisa, e 999 por
1.000 de evolução histórica. Se as patentes vierem a triunfar,
a nossa luta tem que ser a seguinte: todos os países com espécies
originais, silvestres ou domésticas, devem exigir imediatamente
999 por 1.000 de benefícios, lucros e direitos futuros. Quem sabe
essas empresas, passando a receber somente um milésimo, passem a
se interessar por outras coisas? Seria uma outra maneira de
limitar as suas ambições no campo em questão.
Reprodução editada da gravação
da palestra proferida, sem revisão final do expositor.
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