Texto da palestra proferida durante
o painel "Como construir cidades sustentáveis", dia 29
de janeiro, Eixo II
Ermínia Maricatto
Vou apresentar números que são
principalmente brasileiros, e de São Paulo, mas, pelo que
conhecemos, refletem o que está acontecendo na América Latina.
Talvez pudéssemos incluir nessas tendências a África do Sul e
alguns países asiáticos, mas os dados serão mais específicos.
Entre 1995 e 1999, tivemos a produção
de 4,4 milhões de moradias no Brasil. Destas, 700 mil foram
feitas dentro do mercado. O que significa isso? Significa que 700
mil moradias em 4,4 milhões tiveram a planta aprovada na
prefeitura, fazendo parte, portanto, do cadastro da prefeitura,
tendo o projeto feito por um engenheiro ou por um arquiteto. A
maioria delas contou com financiamento. O restante, com uma
pequena margem de erro, foi feito fora da lei.
Esse dado tem muitas conseqüências.
A primeira delas é que mostra tratar-se de uma sociedade em que
uma série de necessidades fundamentais sociais não são
resolvidas pelo mercado. Em segundo lugar, nas grandes cidades,
isso significa um amontoado de casas em algum lugar que podemos
chamar de não-cidade. E muitas vezes não-casas.
Vamos extrair algumas ilações
dessa evidência. Vamos falar um pouco da metrópole na periferia
do capitalismo. Temos as ilhas de primeiro mundo, que são
submetidas aos códigos de obra, às leis de zoneamento, de
parcelamento do solo, toda a abundante regulação que temos. E
temos um mercado residencial restrito, do qual está excluída a
maioria da população. A maioria da produção das nossas
moradias, portanto das nossas cidades, tem uma estrutura produtiva
pré-moderna. Trata-se de territórios sem leis. Não são apenas
territórios sem leis urbanísticas. São territórios sem leis
para a produção da cidade, mas para a resolução de conflitos,
para as relações de trabalho, são verdadeiras bombas sócio-ecológicas.
Não há regras para as relações sociais ou para a ocupação do
espaço. Quantas pessoas, nas nossas sociedades latino-americanas,
estariam nessa situação? Estamos perto de dizer que é a
maioria.
Temos também, como conseqüência
dessa sociedade sem mercado, efeitos na representação ideológica
das cidades. Os planos diretores são feitos para a cidade do
mercado, para a cidade oficial. E a cidade oficial é a representação
da cidade na universidade, na sociedade e na mídia. Por isso
temos territórios absolutamente esquecidos. Temos uma
flexibilidade radical na periferia das nossas cidades, para nenhum
neoliberal botar defeito. E temos uma fantástica agressão
ambiental. A que tem acesso a população excluída do mercado
imobiliário formal, privado e legal? Às áreas que o mercado não
quer. Quais são elas? As áreas de proteção ambiental. Essas áreas,
protegidas por lei e desprezadas pelo mercado imobiliário, vão
ser priorizadas pela população pobre para loteamentos ilegais e
para a invasão de terras. A invasão de terras, no nosso país,
é uma absoluta regra nas cidades, ao contrário do campo, quando
uma invasão promove tanta celeuma.
Vamos verificar o percentual da
população de algumas metrópoles brasileiras que mora em
favelas, definindo as favelas como terras ocupadas ilegalmente. Ou
seja, não há direito nenhum da população lá permanecer: pode
até estar numa casa de alvenaria de boa qualidade, mas não tem
qualquer direito perante a lei. No Rio de Janeiro, mais ou menos
20%; Fortaleza, 28%; Belo Horizonte, 20%; Salvador, 33%; Porto
Alegre, mais ou menos 20%; Recife, 40%; e São Paulo, seguramente,
acima de 20%. Se temos 2 milhões de pessoas morando em favelas na
cidade de São Paulo, portanto em áreas invadidas, não podemos
dizer que a invasão de terras não é admitida em nosso país -
pelo menos nas cidades. Por esses dados, vê-se que quase 80% da
população moradora de favela está situada em nove regiões
metropolitanas.
Não nos cabe desenvolver quais são
os condicionantes históricos de uma desigualdade que eu digo que
é estrutural. Existe, nas nossas sociedades latino-americanas, o
patrimonialismo. São sociedades marcadas pelo patrimonialismo,
pelo poder político e econômico dos proprietários. Durante um
período, proprietários de escravos, depois proprietários de
latifúndios, e hoje dividindo aí com outros setores. O
patrimonialismo levou alguns à cidadania. Alguns têm direitos,
estão sob a proteção da lei. Outros, não. Outra característica
da nossa sociedade é a universalização da relação de favor.
Todo mundo deve alguma coisa a um político, a uma autoridade. Então,
temos um clientelismo, um caudilhismo, um neocoronelismo, ou seja,
figuras que comandam Estados brasileiros que têm importância
nacional em alianças com os yuppies de Harvard...
A industrialização com baixos salários
leva a que a reprodução da força de trabalho não se faça
totalmente no mercado. Um operário da Volkswagen pode morar na
favela, pois o salário que ele ganha não é suficiente para uma
habitação digna. Há muita crítica, por parte dos setores
conservadores, aos eletrônicos na favela. Mas é muito mais fácil,
no nosso país, comprar um equipamento eletrônico e plugá-lo
simplesmente na corrente elétrica, do que construir um banheiro,
que precisa de um eletricista, de um encanador, de um pedreiro, de
uma ligação na rede de esgoto. Estamos numa sociedade que tem
acesso ao bem eletrônico de última geração e não tem acesso a
um banheiro e a uma moradia digna. Não garantimos o mínimo
necessário, e as cidades mostram isso com muita clareza e
radicalidade. Temos a aplicação arbitrária da lei, e muita distância
entre discurso e prática. Temos instrumentos urbanísticos
suficientes para fazer uma reforma urbana. Temos planos
abundantes. O que não temos é uma correlação de forças para
implantá-los. O desenvolvimento urbano nos países
latino-americanos, como destacaram Florestan Fernandes, Celso
Furtado e Caio Prado, é a modernização com a reprodução do
atraso. As cidades são modernas? São. São industrializadas? São.
Mas carregam uma herança de arcaísmo, herança que pesa cada vez
mais, se formos ver o crescimento das periferias nas nossas
cidades.
O tema que nos traz ao Fórum é o
pacto da reestruturação produtiva nas metrópoles. Eu gostaria
de falar da fragilização dos Estados nacionais, com a decantada
autonomia e aumento de importância dos poderes locais. A importância
da guerra fiscal, e as ideologias que vêm de Barcelona, no caso
da América Latina, e têm nome muito preciso: a cidade como ator.
A cidade onde as divergências internas se acabaram, a cidade
corporativa que deve lutar para ser competitiva. Quais são as
conseqüências dessa sociedade que não se baseia no mercado?
Enchentes, desmoronamentos, poluição dos recursos hídricos.
Estamos nos acostumando com uma coisa que considero extraordinária
e escandalosa. Os nossos rios são canais de esgoto, todos eles,
os lagos, as praias. Por que? Porque menos de 40% do esgoto é
coletado, e menos de 8% tratado. O destino dos esgotos da nossa
população urbana é a rede hídrica. Aí, vêm as conseqüências.
Epidemias que não tínhamos desde o começo do século estão de
volta, há a questão da violência, que era desconhecida pelas
nossas sociedades nessa escala até a década de 80.
Um dado bem interessante é a
pesquisa do Metrô de São Paulo, que vem sendo feita há três décadas
e comprova a tese do professor Milton Santos, sobre o exílio na
periferia. O gráfico mostra as viagens a pé por faixas de renda.
Nas rendas mais baixas se fazem muito mais viagens a pé. Quase
50% das viagens feitas na cidade de São Paulo em um dia, são
feitas a pé pela população que ganha menor renda. O que isso
significa? É uma população que mora em bairros muito pobres e
pouco equipados. Essa é a tese do exílio. A população pobre e
das favelas sai pouco de seus bairros porque não conta com um
transporte público eficaz e barato. Então, há uma guetização
e uma condição de exílio.
No que se refere ao crescimento de
favelas, infelizmente, não dá para a gente se fiar nos números
do IBGE. A prefeitura de Porto Alegre mostrou isso com um
levantamento muito bom de favelas, que mostra que o IBGE mede
menos de 50% dos moradores. Em São Paulo, idem. Nós não
conhecemos as nossas cidades, não temos números precisos para
fazermos planos. E precisamos conhecê-las e tomar consciência
sobre elas. Vemos o crescimento de favelas na cidade de São
Paulo, cidade que tradicionalmente não era uma cidade onde as
favelas constituíam uma população muito significativa - como
Recife, Salvador, Rio de Janeiro. Vemos que a população passou
de 1% para 20% no ano 2000. São 2 milhões de pessoas, só na
cidade de São Paulo, morando em favelas.
Passando para o que fazer, gostaria
de fazer uma crítica, digamos, amistosa, à agenda Habitat 2.
Evidentemente, as grandes conferências da ONU são muito
importantes, conscientizam, de alguma forma, a população mundial
sobre a gravidade dos problemas sociais, mas nós precisamos tomar
cuidado muito com a cooptação que se faz das nossas ONGs, dos
nossos movimentos, das nossas prefeituras e dos nossos países
para esse discurso que também é global. Pergunto qual é o lugar
da esquerda nessas grandes agendas, pois fiquei muito espantada,
em Istambul, com as bandeiras da esquerda que todos os governos
brandiam - inclusive, a delegada da Turquia, país que massacra os
curdos, impedindo-os de participarem da conferência Habitat 2. O
que se viu lá? Elogio à participação social, elogio à
descentralização e, pasmem, elogio à autogestão da população
sobre serviços, produção de moradia etc. Elogio às parcerias e
às ONGs, e muita crítica à incompetência dos governos e ao
desperdício e à corrupção dos governos. Elogios à autonomia
do poder local. Resumindo, acho que essa agenda nos leva a
fundamentar algumas das colocações do pensamento único. A
cidade competitiva, a cidade empresa, a cidade pátria, a cidade
mercadoria, a cidade que muitos consultores internacionais, como
os catalães, apresentam com um discurso de esquerda e vendem com
um projeto de direita... Boa parte da esquerda latino-americana, e
mesmo de governos, acaba entrando nessa cantilena.
Para terminar, e para não dizer
que sou muito radical e sectária, vamos analisar uma proposta da
Habitat 2 que considero bem interessante: o Plano de Ação, que o
nosso governo não fez, para levar a Istambul. O Plano de Ação
pode ser uma ótima proposta para as nossas cidades. Por que?
Porque a nossa tradição, em planejamento urbano, é o
planejamento normativo, é um projeto de lei. Extremamente
detalhado e complexo para a população entender, e que muitas
vezes fica nas prateleiras, pois os investimentos não seguem os
planos diretores... Em São Paulo, tivemos um exemplo fantástico
de obras que quebraram a cidade, endividaram a cidade, e que
contrariam o plano diretor. O plano diretor vai para um lado e o
desenvolvimento da cidade vai para o outro. Porque, mais do que o
plano, os investimentos definem o desenvolvimento da cidade. A
proposta é de que haja uma lei normativa universal, ou seja, se
aplique à cidade toda. Segundo: que oriente os investimentos.
Terceiro: que oriente a gestão, para que não haja distância
entre plano e gestão, entre discurso e prática, entre lei e ação.
E, finalmente, a fiscalização, que vai ser um problema sério.
Como é que vamos fazer cumprir as leis de proteção ambiental
nas cidades? Se fizéssemos cumprir as leis ambientais nas
cidades, teríamos uma guerra civil. Teríamos que desalojar 2
milhões de pessoas na cidade de São Paulo. Tirar de uma bacia de
manancial 600 mil pessoas que ali moram ilegalmente. Como é que
vamos cumprir a lei? Só ampliando o mercado e fazendo políticas
sociais.
E, finalmente, o controle público.
Precisamos enfrentar, na América Latina, a questão fundiária
urbana. A questão fundiária urbana é um nó, tanto quanto a
questão rural. Se até hoje não causou a comoção que causa no
campo é porque a invasão de terras nas cidades tem sido
permitida - desde que se trate de terras não valorizadas pelo
mercado. Temos que enfrentar, através da correlação de forças,
não só governos, ONGs, parlamentares, todos nós, a questão
fundiária urbana, ampliando os impostos sobre a propriedade
imobiliária, que na América Latina inteira é um mito, e
raramente se aplica. E finalmente compreender que nós podemos dar
um outro caminho e achar um outro modelo para o desenvolvimento
das nossas cidades.
Reprodução editada da gravação
da palestra proferida, sem revisão final da expositora.
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