Texto da palestra proferida durante
o painel " Como garantir as múltiplas funções da
terra?", dia 29 de janeiro, Eixo I
Andrzej Lipski
Senhoras e senhores eu represento o
Fórum da Agricultura da Europa Central e Oriental e sou membro da
União Solidária. Mas meu principal papel aqui é o de
agricultor. Acredito que seja importante que agricultores
sentem-se, neste Fórum, com professores. Não preparei considerações
acadêmicas, estou certo de que meus companheiros podem fazer isto
melhor do que eu. No entanto, a história que eu vou lhes contar
inclui a maioria dos problemas que devemos discutir nesta sessão.
Para compreender a realidade da Polônia e a mentalidade das
pessoas do meio rural, é necessário compreender o nosso passado.
Assim, eu vou lhes dizer um pouco sobre as três reformas agrárias
que ocorreram durante os últimos 80 anos na Polônia. Vou lhes
contar também sobre os nossos problemas atuais e como
as mudanças políticas e sociais podem se realizar sem vítimas e
sem violência.
A primeira reforma agrária
aconteceu antes da Segunda Guerra Mundial no momento em que havia
alguns proprietários, muitos agricultores pobres e muitas pessoas
sem terras. O ponto principal daquela reforma foi limitar o
tamanho das terras e permitir que os fazendeiros fossem capazes de
comprar e manter suas terras. No entanto, poucos deles tinham
capacidade de gerenciar essas propriedades, e os grandes proprietários
não abriam mão de suas terras com facilidade. Como meu pai, por
exemplo, que era proprietário de mais ou menos 3 mil
hectares, o que era uma propriedade bastante grande, naquela época,
na Polônia. Ele dividiu esta terra em várias partes entre seus
filhos e ainda permaneceu com uma área, que pôs para alugar.
Em seguida, interrompeu-se esse
processo. A Polônia que já havia estado sob ocupação Alemã,
depois da Guerra passou a ser controlada pela União Soviética.
Os comunistas para tornar seu governo mais popular anunciaram,
antes das eleições, uma reforma agrária. Algumas propriedades
foram divididas em pequenas áreas e pequenos fazendeiros puderam
obter fazendas maiores. O tamanho das fazendas era limitado de 50
hectares a até 100 hectares depois da ocupação alemã. Mas
nenhum fazendeiro tornou-se proprietário de terras, mesmo depois
da reforma agrária. Além disso, as pessoas não suportavam o
governo comunista e, depois das eleições, a violência política
começou. As famílias que possuíam mais terras perderam tudo.
Meus dois tios tiveram que emigrar, primeiro para o Brasil, para São
Feliciano, e depois para a Argentina, onde conseguiram pequenas
fazendas de gado.
Pode-se dizer que houve uma espécie
de "justiça histórica", uma compensação por anos de
desigualdades. Porém, os comunistas compreenderam esse processo
de uma maneira muito diferente. Muito breve a coletivização
compulsória começou e os camponeses foram forçados a devolver
suas novas terras para estabelecer cooperativas totalmente
controladas pelo Estado. A luta então começou: os camponeses
tinham de pagar impostos muito altos e tinham que entregar sua
produção ao governo como contribuição. Muitos camponeses foram
presos durante esse processo. Sete anos mais tarde, a liderança
do poder comunista mudou e a coletivização acabou, os camponeses
receberam de volta suas terras e muitas cooperativas foram
desmanteladas. Por isso, desde essa época, a idéia de
cooperativa é a mais odiada da área rural. Até hoje os
camponeses não querem se associar a nenhum tipo de cooperativa ou
a grupos de produtores, nem mesmo a sindicatos. Mas isso gera uma
situação complexa, porque as fazendas são muito pequenas e a
economia de dinâmica neoliberal exige uma produção elevada e de
alta qualidade, algo que um pequeno proprietário, isolado, não
é capaz de atingir.
Mas retomemos o fio da História.
Na década de 1970, as fazendas eram patrocinadas pelo Estado, com
equipamentos modernos. Naquela época meu pai tinha conseguido um
emprego, eu terminei meus estudos e me formei em agronomia. Em
1980, houve um grande movimento social na Polônia, liderada pelos
trabalhadores do Solidariedade, contra o poder comunista, o
sistema totalitário e contra a sujeição à União Soviética.
Eu tive de procurar outro trabalho porque a instituição na qual
trabalhei por 18 anos me dispensou. Lembro-me então das palavras
do meu velho pai: “Andrzej, lembre-se, a terra é o valor maior
que nós possuímos, a coisa mais valiosa que existe”. Deixei a
cidade e fui para o campo. Comprei uma fazenda com 6 hectares e me
tornei agricultor. Isso foi há 20 anos. Em 1989, como resultado
de uma forte mobilização, o Solidariedade subiu ao poder
e estabeleceu-se um regime democrático. Junto com a
democracia vieram a economia de mercado, a política
de concorrência, em suma, as práticas neoliberais.
E essa nova ordem econômica baixou
em um dos poucos países sob domínio soviético em que se
preservaram as pequenas propriedades. Somente na Polônia
mantiveram-se propriedades de 6 ou 7 hectares depois da
Segunda Guerra. Por serem tão pequenas, porém, não estavam
prontas para a economia de mercado. Mas, por outro lado, graças a
elas nosso país preservou sua cultura, sua língua e sua
identidade polonesa. E também o meio ambiente foi
preservado.
E então veio a terceira reforma
agrária. Uma grande privatização ocorreu, na qual os camponeses
foram esquecidos. Do total de terras do País, 75% pertenciam aos
camponeses; e 25%, ao Estado. Estas últimas eram na maioria bem
grandes e bem equipadas, que foram colocadas à venda ou alugadas.
O Estado não facilitou a negociação delas, não parcelou
valores nem vendeu as terras em pequenos blocos. Por isso era
preciso ter muito dinheiro para comprar uma propriedade destas, ou
mesmo alugá-las. As condições para o pagamento dos aluguéis
inviabilizavam a locação para os camponeses. Era preciso pagar
uma grande quantia como adiantamento. Obviamente, só os ricos,
aqueles que obtinham créditos, é que puderam alugar ou comprar
essas terras, apesar de tentativas de forçar o governo a parcelar
a venda ou facilitar o aluguel de propriedades do Estado para os
camponeses ou trabalhadores rurais.
Mas apesar desse estado de coisas
ainda não tivemos problemas com sem-terras na Polônia. Temos um
outro tipo de problema: antigos trabalhadores rurais que perderam
seu emprego em grandes fazendas e esse problema está cada vez se
tornando mais agudo. Por causa de tantos problemas e de tantas políticas
agrárias diversas hoje, na Polônia, está em alta um dito
popular que diz que a melhor política agrária é não ter política
agrária. Atualmente há a possibilidade de algumas fazendas
serem entregues aos camponeses, mas apenas as pequenas e as que
estão em ruínas. As cooperativas não muito grandes foram
desmanteladas e suas terras passaram para as mãos do Estado. O
Governo havia tentado dividir essas terras e alugá-las aos
pequenos produtores, e os sindicatos locais tentaram fazer algo a
favor dessa política. Houve também eleições, e governos democráticos
assumiram o poder em pequenas regiões, os quais apóiam as populações
rurais e os pequenos camponeses. Esta é a situação na Polônia,
hoje: a terceira reforma agrária foi muito útil assim como essa
reforma que acabei de mencionar. Além disso, durante estes anos,
o Estado vem apoiando os camponeses e a área rurais.
A Polônia pode ser considerada
atualmente como um grande país capitalista europeu. O mercado
livre realmente tem sido livre, os pobres perderam, os ricos
ganharam, as políticas neoliberais triunfaram. Mas todo tipo de
desenvolvimento, social e de infra-estrutura, foi assumido
pelos governos locais, como água, estradas, educação, etc.
Depois de 45 anos de regime comunista, de um sistema totalitário,
com uma economia central, as áreas rurais realmente estavam
arruinadas e tudo teve de ser reconstruído do zero. Mesmo alguns
de nossos liberais confirmam que as últimas reformas
governamentais foram as mais bem-sucedidas. Os cidadãos se
envolvem nas discussões sobre essas questões, têm iniciativa.
Ou seja, as coisas estão sendo feitas "de baixo para
cima" e o governo tem sido estritamente controlado, a ponto
de o seu orçamento estar sendo gasto de uma maneira muito útil.
Além disso, a cada quatro anos há eleições democráticas e os
governos precisam ser bem-sucedidos. Há, por exemplo, em nossa
Constituição, uma previsão de que as fazendas familiares são
uma ótima solução para o campo e isso é respeitado pelo
governo há mais de 7 anos.
Porém, apesar desses ganhos,
a Polônia, como dissemos, é um país capitalista, com todas as
suas mazelas. Alguns dos senhores podem se perguntar, mas por que
isso? O que está acontecendo? Porque esse movimento social tão
forte, o Solidariedade, se perdeu? Bem, nós ganhamos a
democracia, a liberdade, os direitos humanos, mas perdemos a luta
contra uma nova ordem econômica. O capital internacional e as políticas
neoliberais vêm sendo mais fortes. Há 20 anos o Solidariedade
era um movimento muito forte, em toda parte se ouviam clamores por
solidariedade, solidariedade, como a alguns dias estamos ouvindo
em Porto Alegre. Há muitos folhetos com inscrição “socialismo
sim”, mas infelizmente para nós do Leste Europeu nem o
socialismo nem o neoliberalismo têm ou tiveram uma face humana.
Hoje, a cada ano, as pessoas se tornam mais desencorajadas e os líderes
dos trabalhadores do Solidariedade rural passaram a fazer
política institucional. Atualmente o Solidariedade apóia
e dá suporte ao governo embora seus líderes rurais ainda lutem
pela reforma agrária, por políticas agrárias e pelo apoio da
população.
Há dois milhões de famílias de
fazendeiros na Polônia, mais de 25% da população, e há muito
tempo eles vêm lutando pela subsistência. Penso que agora eles vão
finalmente se render. Eles são apenas camponeses, são fazendas
familiares de 7 hectares e, em muitas regiões, o tamanho dessas
fazendas é de apenas 4 hectares. E agora soubemos que o número
desses proprietários tem de diminuir. Não poderão ultrapassar a
marca de um milhão de pessoas. Justificam isso, com os exemplos
da Alemanha e da Inglaterra. Mas, e essas pessoas que vão perder
suas terras, o que é que elas farão? Há desemprego nas
cidades e um desemprego camuflado no campo. A pequena propriedade
é uma coisa do passado, hoje o agrobusiness está
crescendo de uma forma espantosa (apesar de os sindicatos dos
agricultores na Polônia não concordarem com esta declaração).
O problema principal é como vender os produtos. Há 20 anos não
havia alimentos na Polônia, hoje existe em excesso. E surgiu, por
isso, um fenômeno muito perigoso nas áreas rurais: a apatia. E a
nossa posição quanto à agricultura familiar é que ela é a
base, as famílias são a base, são o elemento mais eficiente da
estrutura agrícola. Nós queremos forçar o governo a colocar
essas fazendas familiares como ponto principal da política agrária.
Sabemos que a modernização e a concorrência são inevitáveis,
sabemos também que o desenvolvimento do trabalho continua, mas nós
sabemos também e acreditamos profundamente que o mundo deve
pertencer aos seres humanos e que, por isso, deve haver um lugar
para as fazendas familiares, que não são apenas um fenômeno agrícola
e sim um fenômeno cultural, social e uma realidade social.
Na Polônia temos uma definição
de fazenda familiar que, antes de terminar essa comunicação,
quero contar a vocês. Nestes dias aqui em Porto Alegre, ouvi
muitas definições sobre esse assunto. Nossa posição é que a
noção de fazenda familiar e propriedade familiar tem menos a ver
com o tamanho da propriedade, e mais com o trabalho e a renda que
se obtêm dela. Isso significa que se toda a família trabalha na
fazenda e a renda principal é originária dos produtos agrícolas,
a propriedade familiar não é apenas a propriedade de um homem só,
significa que toda a família trabalha e ganha dinheiro, em
parceria, nessa pequena comunidade. Minha mulher e meus filhos
trabalham nesta fazenda de 100 hectares e ainda assim é uma
propriedade familiar.
E a propriedade familiar tem muita
importância diante das questões que aparecerão no futuro, como
as relacionadas à comercialização de produtos, aos temas
sociais que se tornaram o principal problema na área rural,
especialmente em relação ao emprego, que vem sumindo tanto no
meio rural quanto nas cidades. Em relação à preservação de
nossa cultura, durante o governo comunista os poloneses mantiveram
seus costumes e hábitos como meio de resistência ao
totalitarismo comunista, mas eles não sabem como resistir à
globalização e à cultura americana. Talvez a preservação das
propriedades familiares seja uma das saídas.
Para finalizar, quero dizer que o
capitalismo, as políticas neoliberais e a globalização devem
ser vigiados de perto, pois infelizmente destroem a nossa
liberdade. No primeiro dia me perguntaram se eu acreditava em um
mundo melhor, declarei que, depois de alguns dias neste grande
evento, posso dizer certamente que sim. O grande Papa João Paulo
II disse “A liberdade não é dada para sempre, temos que lutar
por ela todo o tempo”. Acho que podemos dizer a mesma coisa
sobre a democracia e sobre os nossos sonhos de um mundo melhor.
Antes da Segunda Guerra havia uma inscrição numa casa de meu avô:
“não deixe esta terra”. Hoje em dia, na "terra de
madeira" onde nós moramos há a mesma inscrição. Caros
amigos eu acredito que em conjunto, com vocês, será possível
para mim e para todos os camponeses do mundo lutar por um mundo
melhor.
Reprodução editada da gravação
da palestra proferida, sem revisão final do expositor.
|