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Texto da palestra proferida durante o painel " Como garantir o caráter público dos bens comuns à humanidade, sua desmercantilização, assim como o controle social sobre o meio ambiente?", dia 27 de janeiro, Eixo II


Ernesto Ladrón Guevara

A Via Campesina é um agrupamento de organizações, de 65 países, e nos vemos obrigados, pela política neoliberal, a participar dos foruns internacionais e defender nossos pontos de vista diante das políticas e atividades relativas a nossa vida cotidiana.

Gostaria de me referir a cinco pontos relativos ao tema: primeiro, como garantir que a biodiversidade do mundo esteja em boas mãos; segundo, o papel das empresas transnacionais; terceiro, a segurança alimentar; quarto, o direito dos camponeses sobre os recursos genéticos (rejeição às patentes e direito à propriedade intelectual); e quinto, a luta contra os organismos transgênicos.

O ponto fundamental sobre a biodiversidade é reconhecer que somos diferentes e que a base da biodiversidade é a diversidade humana. Aceitamos que parte da diversidade é biológica, mas a diversidade vai muito além das plantas, da fauna e dos ecossistemas: é fundamental que se respeite e reconheça a diversidade de cultura existe no mundo, as diversas formas de ser, de governar e de se organizar. A luta pela biodiversidade é a luta por continuar existindo, frente a essa política de homogeneização que o liberalismo tem implantado. Essa é a nossa principal preocupação: a defesa da biodiversidade, reconhecer que a luta pela biodiversidade é conservar as formas de vida que existem no mundo inteiro. Felizmente, a diversidade biológica está concentrada nas regiões tropicais, o que nos coloca em uma situação de vantagem, pois os países desenvolvidos estão fora dos trópicos e acreditamos que podemos defender nossa riqueza biológica. Dizemos que a biodiversidade é uma forma de garantir a segurança alimentar, na medida em que conserva as formas de produção dos cultivos tradicionais. Não temos confiança, nem acreditamos, que a solução esteja no transporte de alimentos de um país para outro. O importante é que cada povo tenha a possibilidade de se alimentar com seus próprios recursos.

Há um aumento da pobreza e da fome no mundo. Fala-se em 240 milhões de pessoas sem condições de se alimentar. Acreditamos que estamos construindo uma via diferente ao dizermos que a biodiversidade poderá solucionar os problemas da fome no mundo. Nossa opção é diferente daquela das companhias transnacionais. Quem se tem beneficiado da globalização são algumas empresas que controlam 80% do comércio de alimentos no mundo e destroem nossos sistemas de produção. Entram em competição com a nossa produção, enviando alimentos subsidiados - mais baratos, mas sem a mesma qualidade - para outros países.

Gostaria de enumerar algumas idéias a respeito dos recursos genéticos e da luta para manter o caráter público dos bens da humanidade. Temos defendido, em diversos foruns internacionais, os direitos das comunidades sobre os recursos genéticos. Eles foram criados através da história da agricultura: são mais de dois mil anos de atividade agrícola, através de gerações que vão transmitindo os conhecimentos. Não são apenas as sementes, mas toda a cultura do conhecimento que está associada a esses produtos. Quando a produção de sementes começou sendo uma atividade lucrativa, as empresas transnacionais começaram a crescer e registraram títulos e patentes. Em muitos acordos internacionais, porém, tem sido dito que os recursos genéticos são patrimônio da humanidade.

Houve uma norma internacional e os recursos genéticos foram tirados das comunidades e levados para centros de pesquisa, onde supostamente seriam melhorados para resolver o problema da fome. Infelizmente, nos últimos anos, os centros de pesquisas, com mais de seis milhões de amostras, agora estão entregando os recursos para empresas que fazem alguma melhora e depois registram a patente a semente. Consideramos isso injusto, pois eles lucram com uma atividade que é a nossa produção. Apresentamos à FAO uma relação de onze pontos sobre os direitos do agricultor e das comunidades, camponesas e indígenas, com relação aos recursos genéticos. Esses onze pontos baseiam-se em vários acordos internacionais - os acordos da FAO, a Convenção 169 da OIT e a cláusula 8J do Convênio de Biodiversidade, incluída no acordo 1460 da Agenda 21, que foi reconhecida pela maioria dos chefes de Estados do mundo, com exceção dos EUA. Consideramos que esta é uma forma de dar garantir que os recursos genéticos continuem sendo patrimônio da humanidade.

O primeiro ponto da proposta é que se reconheçam os direitos das comunidades, que existiam muito antes das patentes e de outras formas de propriedade. Acreditamos e exigimos que esse direito seja reconhecido. O segundo ponto reivindica que os direitos do agricultor sejam reconhecidos, incluindo os recursos e conhecimentos a eles associados, que muitas vezes têm sido patenteados. O terceiro ponto é que se reconheça o direito ao controle e à decisão sobre o futuro dos recursos genéticos. O quarto elemento refere-se a direitos com um caráter mais coletivo, que são os direitos das comunidades. Muitas vezes, os recursos genéticos que não são criados por um indivíduo, mas por um trabalho através das gerações, e pelos povos. O quinto elemento exige que os direitos devam ser aplicados nacionalmente, constar da legislação de cada país, especificados na legislação nacional. O ponto seguinte trata do direito de participar na definição, elaboração e execução das políticas e programas relacionados aos recursos. Um outro elemento é o direito à tecnologia apropriada. As tecnologias não são um elemento novo, mas as empresas transnacionais se apropriaram, na prática, do conceito de biotecnologia. Fala-se de empresas biotecnológicas, mas a biotecnologia é tão antiga como a existência dos próprios camponeses. Prova disso é que o melhor produto da biotecnologia é o milho (já foi demonstrado que sem a intervenção do homem não existiria). Não aceitamos, portanto, que se apropriem da biotecnologia como sendo um elemento criado pelas as empresas transnacionais. Outro ponto é o direito aos benefícios derivados dos recursos genéticos. O último elemento, e talvez o mais importante da nossa proposta, é que todas as comunidades tenham o direito de utilizar, escolher, armazenar e trocar livremente os recursos genéticos. Enfatizamos isso porque as normas das políticas de patentes impedem a troca livre de recursos. Os recursos genéticos foram desenvolvidos precisamente por essa troca, por essa relação de poder emprestar, de poder doar, de poder trocar. Apresentamos essa proposta à FAO e defendemos que os direitos sobre os recursos genéticos sejam instituídos e disseminados para ter o apoio da sociedade.

As patentes são uma forma de monopólio sobre o conhecimento e a humanidade criou o conhecimento em seu próprio benefício. Seria incorreto, portanto, considerá-lo um monopólio. Consideramos que não pode nem deve existir propriedade intelectual sobre qualquer tipo de forma de vida vegetal, animal ou humana. As patentes geraram uma grande concentração do conhecimento e de riquezas. Só para exemplificar, 95% das patentes de alimentos pertencem a apenas sete países e os outros 5% são divididos entre os demais. Até pouco tempo atrás, a informação era de que em toda história dos EUA haviam sido feitos três milhões de pedidos de patentes. Só nos últimos três anos, entretanto, foram pedidos mais de três milhões. Também é reconhecido que 74% das patentes sobre medicamentos têm como fonte o conhecimento das comunidades, e não o do laboratório farmacêutico. As patentes afetam o nosso desenvolvimento porque a cada ano as sementes tem que ser compradas novamente. Veja-se o caso o gene Terminator, que é estéril e que não permite a reprodução da semente (este gene foi produzido pela empresa Monsanto. Leia, de Jean-Pierre Berlan e Richard C. Lewontin, "La menace du complexe génético-industriel", Le Monde diplomatique, dezembro de 1998).

Por último, a questão dos alimentos transgênicos. Tem havido um crescimento muito grande no uso de transgênicos e pouca informação para o agricultor sobre o significado desse tipo de cultivo. Nem o consumidor tem a informação sobre o que são os produtos transgênicos. Nos Estados Unidos, Canadá e Argentina, existem de 34 a 37 milhões de hectares cultivados com transgênicos, matéria-prima para uma grande quantidade de alimentos, especialmente a soja. Gostaríamos de destacar que muitos desses alimentos têm como base o uso de vírus, que vão gerar resistência aos antibióticos. Recentemente foi reconhecido que a produção do milho de 17 Estados norte-americanos tinha sido contaminada. O milho tinha sido autorizado para o alimento animal, mas foi detectado que uma quantidade importante dele, para consumo humano, também estava contaminado. As empresas dizem que não sabem para quantos países esse milho foi enviado.

No México, as maiores companhias transnacionais associaram-se para formar um monopólio - Novartis, Tupan, Monsanto, Pulsar - e o governo deu um subsídio de 90% para a compra de sementes transgênicas, além da assistência técnica para que essa semente possa ser consumida no nosso país. Um outro elemento de grande risco no uso de transgênicos é o impacto no meio ambiente. Fundamentalmente, o risco da contaminação genética da transmissão dos genes para espécies familiares tem implicações muito fortes e há o risco de que constituam pragas, sobretudo os que são resistentes aos herbicidas. E o mais grave é que o impacto sócio-econômico do uso de transgênicos em nosso país aumenta nossa dependência termológica e econômica. Quando usamos esses produtos, temos que comprar dessas companhias e são essas companhias que normalmente fazem os contratos e vendem os insumos relativos ao uso dessas sementes. Enfrentamos uma série de problemas jurídicos em nosso país, pois as transnacionais reclamam que não se estão comprando as sementes.

As empresas também iniciaram a produção de transgênicos para substituir produtos dos países tropicais em desenvolvimento. Em vários cultivos, estão incorporando um elemento que substitui a cana de açúcar. É um substituto da manteiga de cacau. São poucos os chocolates consumidos no mercado que têm a manteiga de cacau, que é a base fundamental do chocolate. Uma grande parte do milho transgênico originário dos EUA, agora está sendo convertido em frutos, um corante que substitui a cana de açúcar. Enviaram 500 mil toneladas desse corante - e nós temos 800 mil toneladas de açúcar que não sabemos como vender. Também estão falando em variedades transgênicas para o café, que resistiriam no clima frio. Isto significaria um risco para as áreas indígenas produtoras de café.

Agora, estão falando daquilo que chamam de terceira geração dos transgênicos. A primeira geração produzia uma variedade que resistia a herbicidas. Tentaram induzir o uso dessas sementes no EUA e Canadá, mas os consumidores a rejeitaram. Com a segunda geração, tentaram seduzir os consumidores da União Européia, mas a rejeição foi muito forte. A terceira geração seria a de produtos que eles consideram melhorados. Falam do arroz com vitamina A, e dizem que irá resolver o problema da fome e da cegueira no mundo. Também falam de uma variedade de vacinas, como a banana com a vacina contra o cólera. No futuro, é previsível que as grandes companhias se irão apresentar como a solução para o problema da fome e vão tentar seus produtos transgênicos aos países mais pobres.

Temos quatro propostas com relação aos alimentos transgênicos: primeiro, uma moratória para a liberação de produtos transgênicos e seus derivados e que seja aplicado o princípio de precaução e prevenção da Agenda 21 (que os países tenham o direito de não autorizar os organismos, na medida em que não exista uma evidência total de que não há riscos); a segunda proposta é de que todo o uso, manejo e liberação de um transgênico teriam que ser submetidos a uma consulta e à participação da sociedade, pois rejeitamos que a decisão seja tomada apenas por parte das transnacionais ou unicamente pelo governo ou supostos acadêmicos e pesquisadores científicos, pois a contaminação genética é irreversível; a terceira proposta é a de avaliar os riscos de uma forma integral. Que sejam considerados na avaliação os efeitos no meio ambiente, os efeitos na saúde e os efeitos sócio-econômicos, pois a cultura dos transgênicos pode afetar a produção e a economia de várias comunidades e regiões. Tem que ser garantida a segurança alimentar, de acordo com um princípio de previsões e das políticas comerciais; a última proposta é a de definir responsabilidades. Têm que ficar claras as responsabilidades sobre quem pagará pelos impactos ambientais e sobre fatos negativos que ocorrerem pelo uso dos transgênicos; quem pagará pela contaminação, quem pagará aos nossos países pelas variedades que vão afetar e podem contaminar a nossa produção e a saúde da população.

A nossa proposta é que esta luta seja levada para toda a sociedade.

Reprodução editada da gravação da palestra proferida, sem revisão final do expositor.

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