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Texto da palestra proferida durante o painel " Como garantir o caráter público dos bens comuns à humanidade, sua desmercantilização, assim como o controle social sobre o meio ambiente?", dia 27 de janeiro, Eixo II


Nilo César M. Diniz

Tentarei apresentar, resumidamente, a atual situação e o trabalho que vem sendo feito no sentido de garantir o caráter público dos bens comuns à humanidade, especificamente na área da biodiversidade e da biotecnologia: a conservação das florestas, das espécies e a relação entre as questões ambientais e as questões sociais no Brasil, país que detém cerca de 22% das espécies vegetais da flora, principalmente silvestre, de todo o mundo. Um tema de importância muito grande, não só pela biodiversidade das florestas, mas pelo clima e os sumidouros de carbono. Além do que temos cerca de 20% da água potável distribuída no mundo concentrada no Brasil. Há um interesse crescente, por parte de empresas do setor biotecnológico e farmacêutico, pelo acesso a essa grande matéria-prima, a esse patrimônio que temos.

Atualmente, são movimentados mais de 40 bilhões de dólares por ano, por empresas farmacêuticas, em produtos a partir de componentes originários de florestas tropicais. É um valor muito alto e de importância muito grande. Segundo o Ibama, a biodiversidade brasileira hoje vale mais do que quatro vezes o PIB nacional. Ou seja, mais de quatro trilhões de reais. No Brasil, estamos no meio de um conflito entre privatização do acesso a esses recursos genéticos, a essa biodiversidade riquíssima, e uma tentativa de amplos setores políticos e sociais, inclusive da comunidade científica nacional, de defender o controle público, o interesse público, a conservação e o uso sustentável desse patrimônio biológico. É uma luta que está sendo travada em todos os níveis, dentro da universidade e no mundo empresarial, inclusive porque há empresas que também estão tentando se adequar, até do ponto de vista ético, a esse desafio que é de interesse público.

Existem muitos fatos que ilustram como esse conflito se está dando. Por exemplo, um estudante brasileiro nos procura, a partir dos EUA (onde está estudando Biologia de Mamíferos), dizendo que está muito preocupado porque não sabe como o trabalho irá prosseguir, pois não entende como vai acessar recursos e material de componentes do Brasil. Ao mesmo tempo, duas grandes empresas - a Novartis e a Glaxowelcom - entraram recentemente em contato com a organização social Bioamazônica e com uma pequena organização particular, do Rio de Janeiro, qAue é a Strakter, para fazer contratos diretos de acesso a milhares de cepas de micro-organismos do Brasil, sem qualquer tipo de controle legal, sem que se tenha um instrumento legal capaz de regular esse acesso, de garantir o interesse público. Um terceiro elemento que ilustra esse conflito de interesses refere-se às comunidades indígenas da Amazônia, que estão decidindo fechar a entrada de pesquisadores em suas áreas pois não desconfiam que estes venham a registrar patentes dos vegetais, gerando lucros para as empresas e roubando conhecimentos seculares de que dependem não só as comunidades indígenas, mas as comunidades de agricultores. Isto significa que pesquisadores honestos, que têm compromisso com o conhecimento, também estão sendo impedidos de pesquisar por conta dessa falta de uma de regulamentação, de um controle público.

Em 1995, um ano depois que o Congresso ratificou a Convenção da Biodiversidade, um grupo composto por várias organizações não governamentais e cientistas apresentou um projeto de lei, em nome da senadora Marina Silva, propondo a regulamentação do acesso a recursos genéticos. Esse projeto foi aprovado à custa de uma pressão muito grande, mas felizmente com inúmeros debates e audiências públicas envolvendo a comunidade científica e representantes de movimentos sociais, inclusive indígenas. A idéia não era só a de aprovar uma lei, mas pautar a sociedade brasileira, pautar o Estado, pautar as instituições para a importância da regulamentação do controle público ao acesso à biodiversidade e para a defesa dos direitos das populações tradicionais sobre o conhecimento A que detêm.

Infelizmente, o nosso maior inimigo são as grandes empresas transnacionais que trabalham pela desregulamentação, pela inexistência de leis, pela inexistência de controle social sobre esse patrimônio, e com um aliado forte, que é o poder Executivo. Um aliado que impediu a tramitação do projeto, enquanto pôde, tanto no Senado quanto na Câmara dos Deputados. Quando o governo percebeu que o projeto aprovado no Senado poderia caminhar rapidamente na Câmara, apresentou a sua proposta de projeto de lei. Em princípio, atropelava o debate que estava sendo feito pela sociedade, mas parecia ter um lado positivo. Pensamos: agora caiu a ficha e eles estão entendendo a importância da biodiversidade; apresentaram um projeto de lei de conteúdo discutível, mas pelo menos estão tomando uma iniciativa. Nada disso. Mesmo apresentando um projeto, o governo não deixou que a sua bancada debatesse. Ficamos de 1998 a 2000 sem nenhum debate no Congresso, a não ser aqueles forçados por algumas audiências que a oposição promovia, mas sem nenhuma iniciativa por parte da maioria governista.

Em maio de 2000 veio à tona o contrato da Bioamazônica com a Novartis. Acho que todos souberam do escândalo, pois o contrato foi feito em bases absolutamente ridículas, até do ponto de vista do interesse econômico nacional, para não falar das comunidades tradicionais, que foram absolutamente desprezadas pela Bioamazônica e a Novartis. O escândalo veio à tona porque o governo - o próprio Ministério do Meio Ambiente - só soube do contrato pela imprensa. O ministro do MeAio Ambiente teve que declarar a ilegalidade do contrato. Isso aconteceu porque a Novartis confiava que a Bioamazônia, sendo uma organização social de caráter público, ligada ao Estado, poderia fazer o contrato em bases legítimas. É claro que a Novartis - assim como a Glaxowelcom - utiliza empresas locais para não ser acusada de biopirataria. Resumindo: depois disso, acreditamos que o governo abriria espaço para o debate, pois não há como trabalhar a questão da biodiversidade no Brasil sem a participação ampla da sociedade. Nada disso. Ao contrário, o governo baixou a Medida Provisória 2052 tentando criar uma lei rapidamente, atendendo à urgência e importância do tema. A medida contraria direitos constitucionais das comunidades indígenas e outras comunidades agrícolas, legaliza contratos biopiratas - pois declara que todos os contratos feitos até àquela data são legais (independente do conteúdo e das bases dos contratos) - e não estabelece qualquer mecanismo de participação ou controle social. Ou seja, essa Medida Provisória foi uma repetição da Medida Provisória do natal, que o governo baixou com relação à Comissão Técnica Nacional de Biosegurança (CTNBIO). Em ambos os casos, o governo atropela o Congresso, atropela o debate nacional e, para atender aos interesses dos grandes grupos transnacionais de biotecnologia, legisla retroativamente. Porque tanto no caso da MP de acesso quanto no da CTNBIO, o governo está legalizando decisões governamentais que atendem interesses de empresas transnacionais. No caso da CTNBIO, tratava-se de uma comissão clandestina, que legalmente não existia. A Medida Provisória legaliza a CTNABIO e as decisões que esta tomou, inclusive a importação do milho que entrou por Pernambuco, que interessava à Monsanto e a outras empresas. No caso da lei de acesso, o governo simplesmente declarou legais contratos feitos anteriormente, a maioria deles absolutamente ilegais e não éticos em relação à conservação e ao uso, assim como ao desrespeito pelos conhecimentos tradicionais.

Estamos enfrentando uma situação muito difícil, no Brasil, pois a disputa generalizou-se e há um conflito flagrante entre o interesse e o patrimônio públicos e o uso privado, através do patenteamento e do comércio desses produtos do setor de biotecnologia. Esse Forum pode fortalecer essa luta de forma local e internacional, através de ações que procurem garantir esses bens como bens comuns da humanidade - por meio da ação de Estados nacionais, na legalização e regulamentação do acesso à biodiversidade. Somos completamente contrários ao patenteamento da vida em todas as suas dimensões, tanto na flora, quanto na fauna ou mesmo no ser humano. De qualquer forma, não podem existir patentes que tenham acessado irregularmente recursos naturais; é preciso haver certificado de origem, certificados de acesso feitos em comunidades, não só em relação ao conhecimento tradicional, como a recursos genéticos em locais habitados por comunidades tradicionais.

Muitas vezes, pesquisadores associados a uma empresa vão procurar uma espécie ou um animal numa área de uma comunidade tradicional, sabendo que fora daquela área também há aquele recurso. Só que ali podem conversar com pajé, com o agricultor, trocar idéias com a dona de casa que conhece o uso daquilo... No nosso projeto de lei, propomos a criação de um direito intelectual comunitário, contrapondo-se ao direito de propriedade intelectual. No caso da legislação brasileira, temos que aproveitar a presença neste Forum de companheiros da Amazônia hispânica, pois temos que trabalhar de forma articulada. Não dá para regulamentar o acesso à biodiversidade amazônica sem discutir com a Bolívia, com a Colômbia, com todos os países que compõem a Amazônia na América Latina, e articular formas de pressão internacional pela aprovação da lei de acesso a recursos genéticos no Congresso brasileiro.

Quero agregar dois pontos que já estão em discussão no Fórum e são essenciais: um é a revisão do artigo 273 do TRIPS, que já está nos documentos e tem sido discutida em outras mesas; o outro é a moratória de cinco anos para os transgênicos, que está na a Comissão de Assuntos Sociais do Senado. A Câmara tem outros projetos tramitando, mas a senadora Marina Silva apresentou o projeto de lei de moratória de cinco anos. Conseguimos que o relator, senador Lúcio Alcantra (do PSDB, partido do governo), apoiasse a moratória no parecer da comissão, mas agora o Ministério da Agricultura e o Palácio do Planalto estão fazendo uma pressão muito grande para que não seja aprovada.

Reprodução editada da gravação da palestra proferida, sem revisão final do expositor.

 

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