Texto da palestra proferida durante
o painel " Quais os limites e possibilidades da cidadania
planetária?", dia 28 de janeiro, Eixo III
Boaventura dos Santos
Vamos falar da sociedade civil
planetária. O conceito de sociedade civil nacional sempre causou
a nós, críticos e de esquerda, muitos problemas. Porque é uma
sociedade de modelo liberal, que inclui o próprio mercado e os
direitos de cidadãos autônomos, vinculados a interesses
particulares. Uma sociedade onde os direitos são um falso
universalismo. Isso porque nem todos têm direitos, muitos não são
cidadãos, ficaram fora do contrato social, lançados no estado da
natureza. E também é uma sociedade onde, sobretudo nas cidades
coloniais, a sociedade civil não foi constituída. Para os indígenas,
os nativos eram constituídos pelos colonos, ou seja, a sociedade
civil é sempre o outro, no Estado capitalista. Portanto, por que
vamos recorrer neste momento ao conceito de sociedade civil planetária
para resolver o problema? Porque não somos capazes de pensar o
novo senão a partir do velho, e de conceitos que estão à nossa
disposição para serem retrabalhados. Mas também não é só
isso.
Penso que em todas as tradições
da modernidade há as versões dominantes e as versões dominadas.
Há versões suprimidas, conhecimentos suprimidos, marginalizados,
que fizeram parte desta modernidade, mas que nunca puderam ter o
direito de cidadania. E aí está um conceito de sociedade civil
que é aquilo que nos acostumamos a chamar de sociedade civil
estranha, a dos oprimidos, dos de baixo, daqueles que estão numa
situação de praticamente não-cidadania, mas que lutam
efetivamente para adquirir esta cidadania e entrar no contrato
social. Essa sociedade é também uma sociedade civil que não
inclui o mercado. A sociedade civil do terceiro setor, das
organizações solidárias, das organizações não
governamentais, dos movimentos sociais. É essa sociedade civil
que há de ser o embrião da sociedade civil planetária que
queremos construir.
Curiosamente, não temos muitas
expectativas neste momento, porque as duas grandes emergências da
sociedade civil dos anos 80 trouxeram um mercado, junto com a
sociedade civil. Mercado e democracia. Essa é a nossa grande
preocupação: a primeira foi, naturalmente, com o neoliberalismo
de Thatcher e Reagan, onde a emergência da sociedade civil é o
outro lado da destruição do Estado de bem-estar social, dos
direitos sociais e econômicos, devolvendo a sociedade civil à lógica
do mercado. Como sabemos muito bem pelas privatizações, na
seguridade nacional deste país e de outros países do mundo.
Tivemos também a emergência nos países do Leste, e aí também
a democracia, o capitalismo e o mercado foram considerados parte
da sociedade civil. Todos lembram como é que a marca do
McDonald's em Moscou foi, durante muito tempo, símbolo da
democracia.
Em face disso, é preciso saber
efetivamente o que nos interessa deste conceito e penso que é
fundamental trabalhar com as tradições oprimidas, com as tradições
suplantadas, de alguma maneira, por estas, dominantes. Em que
situação estamos, onde estamos? Estamos numa fase em que muitos
países nunca tiveram contrato social e os que tiveram atravessam
uma crise no âmbito desse contrato social. Como é que se
manifesta a crise? Prevalecem os processos da exclusão, com relação
aos processos de inclusão. Isto cria a desestabilização de
expectativas: quem está empregado hoje, amanhã pode não estar.
Não só as expectativas: é que a experiência de cada um, a
discrepância entre cada experiência e as suas expectativas, são
agora negativas. A modernidade ocidental, durante muito tempo,
criou uma discrepância entre experiências e expectativas. Isto
é, na sociedade antiga, quem nascia pobre, morria pobre; quem
nascia analfabeto, morria analfabeto. Na sociedade moderna,
tornou-se possível que quem nasce pobre, morra rico, e quem nasce
analfabeto possa morrer letrado, ou até doutor.
Ora bem, essa discrepância entre
expectativas e experiências é conseqüência da sociedade
ocidental e do pensamento de esquerda. Hoje estamos num sistema
que é exatamente o inverso desse, onde as expectativas eram
sempre mais brilhantes que as experiências. Hoje, ao contrário,
as experiências tendem a ser, mesmo que medíocres, melhores que
as expectativas. Quando se fala em uma reforma da seguridade
social, isso é para pior. Quando se fala em reforma da saúde, é
para pior. Uma reforma da educação, naturalmente é para pior.
Quem perde o emprego, não tem grandes expectativas de ter um
emprego melhor. Essa diferença, essa degradação das
expectativas, está criando um problema, inclusive para a
esquerda, porque exatamente como as expectativas são mais
negativas que as experiências, a esquerda se vê muitas vezes na
contingência de defender o status quo. E a esquerda nunca gostou
de defendê-lo.
Essa situação é complicada,
precisamente porque estamos diante de um novo autoritarismo, um
autoritarismo que passou do Estado para a própria sociedade
civil. Para mim,isso é uma idéia nova que temos que confrontar,
uma idéia de fascismo social. Nós vivemos hoje em sociedades
politicamente democráticas, e socialmente fascistas. Por isso
nossas lutas têm que ser do tipo anti-fascista e temos que
procurar o fascismo aonde ele está. Não necessariamente no
Estado, pois esse mesmo Estado democrático atua ora de forma
democrática, nas chamadas áreas civilizadas da sociedade, ora de
forma fascista, nas zonas selvagens da sociedade, contra
camponeses sem-terra, contra as mazelas deste mundo. Portanto, o
mesmo Estado tem esse duplo comportamento e é precisamente nesta
situação que estamos atualmente.
É um Estado que não é mínimo.
Deixou de regular a sociedade: ao contrário, o que aconteceu é
que o Estado de bem-estar dos cidadãos passou a ser um Estado de
bem-estar das empresas. Nunca se deram tantos incentivos às
empresas como hoje. Mas a sociedade civil pela qual lutamos é a
sociedade dos oprimidos e dos explorados. É do conjunto de suas
lutas que os explorados deixam de ser vítimas para passarem a ser
protagonistas e sujeitos. Isso é a sociedade civil planetária.
Existe uma diferença entre explorados e oprimidos. Os explorados
sempre foram uma minoria e as classes dominantes sempre tiveram
medo dos explorados, não dos oprimidos. Neste momento, assistimos
a uma fusão entre explorados e oprimidos e isso leva ao colapso
do contrato social. As lutas das sociedades civis têm que se
articular em três escalas: local, nacional e global. Não estamos
em condições de privilegiar uma escala em detrimento de outra,
pois vamos ser, no futuro, trans-escalares. Temos que saber lutar
o global no nacional, o nacional no local, pois o nacional e o
global também são locais. Este princípio é fundamental.
O terceiro princípio é o da
unidade na diversidade. Como este Forum bem demonstra, vivemos em
um mundo que é diversamente uno e diverso. É uno, e esse uno
convoca o princípio de igualdade. Estamos em uma situação nova
em relação à modernidade, e, apesar da sociedade ser muito
desigual, a igualdade não chega. Nós queremos, ao contrário do
que aconteceu no passado, salientar a diferença, nós queremos
dois princípios, e não um só: o da igualdade e o da diferença.
O princípio da igualdade exige a redistribuição por lutas que
continuam sendo fundamentais. O princípio da diferença exige
conhecimento igualitário das diferenças, onde a modernidade
ocidental sempre fraquejou. Essa dupla tem que estar totalmente
junta na sociedade civil. E aí surge o grande direito nesta
sociedade civil global. O direito a ser iguais, quando a diferença
nos inferioriza; o direito a ser diferentes, quando a igualdade
nos descaracteriza. Pensem nas nossas lutas, nas nossas casas, na
nossa subjetividade e no mundo.
É esse o grande princípio pelo
qual temos que lutar. É por isso que essa sociedade tem que ser
multicultural. Há dois tipos de multiculturalismo: um reacionário
e um progressista. O reacionário fixa as diferenças e mantém as
hierarquias entre culturas; o progressista transforma as diferenças,
não as canibaliza, mas atenua as diferenças entre elas. É esse
multiculturalismo progressista que deve nortear nossas ações.
Essas lutas civis das sociedades planetárias ou globais vão ser
organizadas em diferentes áreas. Isso é muito importante, como
vamos nos organizar. Em primeiro lugar, a sociedade civil é uma
sociedade de relações horizontais. Nem hierárquicas, nem as de
mercado. Portanto, é preciso encontrar uma forma organizativa
plural e tolerante. Porque só juntos é que podemos chegar à
diversidade, avançar para criar espaços públicos
transnacionais, onde seja possível uma outra noção de direitos.
Não os direitos abstratos, que existem para mascarar as
desigualdades, mas os direitos organizados e concebidos
politicamente que desmascaram as desigualdades, que desmascaram as
diferenças inferiorizantes.
Essas lutas que proponho são de
seis tipos. A primeira é a democracia participativa, que é
fundamental para que possamos nos contrapor à democracia de baixa
intensidade, que se tornou compatível com o capitalismo na medida
em que perdeu a sua capacidade redistribuitiva - uma democracia
sem redistribuição é o sistema político ideal do capitalismo.
É o Estado fraco por natureza, ilegítimo. Temos que criar
democracias de alta intensidade. Só que uma democracia de alta
intensidade não se faz sem democratas de alta intensidade. As
organizações não governamentais e os movimentos sociais têm
que ser o exemplo dessa democracia da alta intensidade. O segundo
ponto refere-se aos sistemas alternativos de produção. Por todo
mundo temos visto cooperativas de mulheres e de homens, de
camponeses, outros tipos de trocas solidárias estão surgindo por
este mundo afora, tornando-se outra luta, outra alternativa que
tem que ser parte do patrimônio da sociedade civil global. Em
terceiro lugar, há as novas cidadanias, a cidadania pós-nacional,
o multiculturalismo. Os direitos não têm que ser os direitos
humanos ocidentais, individualistas, mas uma concepção
multicultural de direitos humanos. As diferentes culturas falam
todas da dignidade humana. Falam em diferentes línguas, mas a dos
direitos humanos é uma delas. A cultura islâmica tem uma forma
diferente de falar dos direitos humanos, assim como a cultura indígena
deste continente. A quarta grande área deve apontar para onde
vamos avançar, com os novos conhecimentos a respeito da
biodiversidade, por exemplo. A ciência não pode ser, de modo
algum, o único conhecimento: temos que lutar por um outro senso
comum. Por um conhecimento que começa pela solidariedade. Por que
as nossas escolas só querem fazer estudantes competitivos, e não
estudantes solidários? A ciência tem que caminhar junto com
outras formas de conhecimento, pois as promessas que a ciência
nos trouxe nunca foram cumpridas e sente-se a falta de uma confiança
epistemológica, de outros conhecimentos alternativos. A
biodiversidade vai ser uma grande luta contra a pilhagem do
Terceiro Mundo, essa nova forma de imperialismo que é o
bio-imperialismo. Uma forma de conhecimento transforma outra em
matéria-prima. O conhecimento dos indígenas, ou dos camponeses,
é uma matéria-prima. Esta parece ser outra grande área de
conflito em que temos que nos organizar. Em quinto lugar, o novo
internacionalismo operário não é hoje a nossa única luta. Se
fosse há 30 anos, poderia ser. Hoje, é uma luta de cidadania. É
claro que os direitos dos trabalhadores não se podem reduzir a
direitos humanos. Por que? Porque isso somente seria possível se,
no plano internacional, fosse dada aos direitos humanos, aos
direitos sociais e aos direitos econômicos a mesma importância
que é dada aos direitos cívicos e políticos. O novo
internacionalismo operário que está emergindo depois da Guerra
Fria, é riquíssimo e tem uma potencialidade enorme. Tem que ser
um exercício de cidadania, uma forma de juntar esse
internacionalismo operário com todas as outras lutas. Finalmente,
há a luta da informação e da comunicação. É outra grande
dificuldade que vamos ter no futuro. Uma dificuldade que tem que
ser combatida através de formas alternativas de informação e
comunicação. A intenção é que essas alternativas sejam
conjuntas e articuladas.
Penso que neste Forum é a altura
de fazermos uma avaliação. Ainda ontem, um colega me dizia que,
no Equador e no Peru, o movimento indígena está junto com o
movimento das mulheres e o movimento estudantil. Temos aqui
mulheres de um lado, ambientalistas de outro, indígenas de outro
etc. Vai haver certamente outro Forum e nele devemos criar uma
trama, uma rede que nos dê força. Não podemos continuar, cada
um de nós, fechado em seu gueto. Vou enunciar alguns princípios
que julgo fundamentais. Primeiro, o princípio da tradução.
Temos que aprender a traduzir as diferenças entre nós para criar
uma nova inteligibilidade. Da inteligibilidade vamos à
proximidade, da proximidade vamos à simplicidade. Em segundo
lugar, o princípio da horizontalidade, que é muito difícil,
sobretudo nas relações Norte-Sul. Depois, há a ambigüidade do
princípio emancipatório. O que é o emancipatório, para cada um
de nós, pode ser regulatório ou opressivo para outros. Vejam,
por exemplo, o caso dos parâmetros do trabalho, da qualidade de
trabalho, dos bonés e camisetas que circulam no mercado mundial.
Pode ser uma luta emancipatória, mas os sindicatos de Primeiro
Mundo levantam reservas, vêem nisso um novo protecionismo. Ou
seja, não basta dizermos que somos pela emancipação social, é
preciso testá-la, é preciso ser auto-reflexivo. Porque aquilo
que pode parecer emancipatório, também pode ser uma imposição
das nossas hierarquias. Estamos sendo autoritários sem querermos
ser. Outro princípio fundamental é o da política simbólica, em
que temos que ganhar a prioridade de nomear. Nomear é dizer que a
flexibilização da relação de trabalho não é flexibilização,
é priorização. É dizer que o neoliberalismo não é apenas um
modelo econômico, é assassino, mata gente. E é preciso
enfatizar esse neoliberalismo excludente, essa insegurança
elementar, que são eufemismos para dizer que tem gente morrendo.
Temos que ter o direito de nomear isso. Quais são os nossos
objetivos? Se socialismo tem um nome hoje, esse nome é a
democracia sem fim. Temos que democratizar a sociedade não apenas
no plano político, mas a todos os níveis sociais.
Nessas seis grandes lutas que
proponho, vai haver também seis formas de democracia, vinculações
entre Estado e sociedade civil. Não vai ser nada fácil, pois os
nossos objetivos, a prazo, são incompatíveis com o capitalismo.
Mas não vamos nos angustiar porque fora de uma situação
revolucionária, temos sempre que partir do que é compatível com
o capitalismo. Não nos deixemos angustiar com a idéia de que a
dominação econômica nunca possa ser democratizada. Ela
efetivamente não pode, mas podemos criar formas no sentido de
manter a integridade de nossas lutas.
Quais são os nossos princípios?
Primeiro, contra a idéia do valor a preço. Frei Betto explicou
isso muito bem na sua intervenção: hoje em dia, só tem valor o
que tem preço. É preciso combater a prioridade da
competitividade em relação à solidariedade e é preciso evitar
a idéia de que o mercado é sempre eficiente. Quais são os
nossos problemas? Primeiro, a que ponto vai a resistência do
nacionalismo? Como construir uma sociedade civil que não entre em
choque com um nacionalismo progressista? Por outro lado, como
vencer a ambigüidade emancipatória? Outro desafio é a falta de
comunidade, somos ainda muito estranhos uns aos outros.
Finalmente, devemos distinguir entre objetivos a curto e a longo
prazos. A curto prazo, penso que temos que mudar os discursos das
instituições monetárias e outras que nos dominam, temos que as
substituir por outras. O objetivo a longo prazo é a transformação
por uma nova ética, uma nova estética, uma nova sensibilidade de
uma nova política. É uma utopia, mas não vos deixai intimidar
pela idéia de que somos utópicos. Todas as grandes idéias,
antes de se realizarem, foram considerados utópicas.
Reprodução editada da gravação
da palestra proferida, sem revisão final do expositor.
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