Exigência
universal de pluralidade
A
"sociedade global" só será suportável se impusermos a
pluralidade do espírito, do corpo, da cultura e da natureza
Denis Duclos, Le Monde Diplomatique
Publicado em março
de 2000
A evidência nos cega. Não enxergamos mais o que nos acontece. E
o que nos acontece, na escala de nossa época, é o fim de uma ficção
e o começo de uma outra. O fim da unificação humana no mesmo
projeto fatal do jogo do dinheiro; e o começo de uma busca de
diversidade. O fim de um ideal de onipotência sobre os homens; o
começo de uma nova busca por autonomia e respeito mútuo. O
problema da nossa época é colocar em seu devido lugar a unidade
humana permitida pela informação, sem que o fantasma totalizante
que a acompanha como sua sombra comprometa a liberdade dos seres
vivos.
Assim como o indivíduo se livra lentamente dos ideais mágicos da
infância, cada unidade cultural humana chega a um ponto onde não
pode mais crer na eficácia imediata de seu pensamento. Ela deve
então compor com o real e fazer com que este último admita sua
própria divisão interior, entre as palavras que o inspiram e a
vida que o sustenta. Ora, a unidade cultural na qual estamos
envolvidos -- nós, seres humanos do início do terceiro milênio
-- é, por sorte ou fatalidade, a humanidade ela mesma, em sua
pretensão de abranger sob o mesmo conceito a espécie e a
organização política. Temos a honra insigne de conhecer a situação
com a qual os filósofos das Luzes tinham sonhado -- Kant em
particular. A questão central é realmente aquela que aporta
necessariamente a universalidade: a exigência universal de
pluralidade. Empreendimento exaltante e terrível, tanto planetário
quanto pessoal, íntimo quanto público, nacional quanto mundial.
A festa da mudança de século e de milênio, por mais fútil e
simbólica que seja, é portanto a ocasião de refletir sobre este
fato "absolutamente simples": a humanidade, ideal
carregado de conflitos, tornou-se realidade material; e sobre sua
conseqüência inelutável: somente a pluralidade pode permitir
respirar, sobreviver neste fechamento do mundo humano sobre si
mesmo.
Das culturas particulares a uma "sociedade global"
Até aqui, cada cultura, cada visão do mundo, cada sistema econômico,
pretendia opor sua definição de humanidade a todas as outras.
Isto ainda é bastante verdadeiro, mas, doravante, ao contrário
do que anunciava Samuel Huntington em sua obra O Choque das
Civilizações, estas unidades coletivas foram obrigadas a compor
suas divergências, a "formar sociedade". Uma sociedade
ainda indefinida, certamente: nem sociedade das nações, nem
globalidade, nem potência imperial única, mas algo que transita
entre tudo isso.
É esta indefinição do quadro comum que, doravante, cada grupo
suficientemente poderoso tenta atrair em seu proveito e superá-la,
sem jamais chegar a ela. Mesmo os Estados Unidos, última potência
com capacidade de tutela, não podem mais organizar o mundo em
torno de si, sem encontrar graves contradições com seus próprios
princípios democráticos e liberais. Mesmo o capitalismo, última
forma concreta de pensamento totalizante, não consegue imergir
completamente as massas humanas em sua lógica exclusivamente contábil,
cuja crueldade se agrava a partir do momento em que a precisão
científica é colocada a seu serviço.
Tudo se passa como se, de um só golpe, ao chegar à situação de
universalidade concreta, a humanidade não pudesse mais se
entregar inteiramente a um de seus componentes ou figuras
especiais (identidade étnica, poder nacional, escolha religiosa,
corrida ao poder ou à riqueza, paixão pela ordem, etc.). Como se
o acesso ao universal significasse, ao mesmo tempo, o acesso a um
certo jogo que limitaria e equilibraria as paixões.Este jogo de
equilíbrio anunciaria o fim da história? Talvez o fim das histórias
particulares dos antigos coletivos em concorrência pela verdade
universal. Talvez mesmo o fim da história capitalista, em razão
do seu trabalho no controle espiritual abstrato das massas
humanas. Mas é, ao contrário, necessariamente, o começo de uma
outra história: aquela que contamos enquanto membros de uma espécie
politizada como tal, e não mais somente como enfrentamento de
humanidades em uma competição guerreira ou econômica. Fim ou
começo (e provavelmente os dois, sem afrontar a lógica), pouco
importa: a época só pode ser a da preocupação política com a
diversidade, uma vez que esta irrompe em nossa realidade, por
ordem da própria essência desta universalidade praticamente
realizada.
Poderíamos nos indagar a respeito de porque não temos sido
capazes, até aqui, de levantar a questão da diversidade em
termos de absoluta necessidade, liberando-a da associação de idéias
saudosistas com os etnicismos ou particularismos. A resposta é a
seguinte: a consciência política que funda esta preocupação não
é da ordem de uma história objetiva, econômica e técnica, mas
da alçada de uma história subjetiva e de sua própria dialética.
Ainda não colocamos a diversidade no eixo de nossa ação histórica,
porque, simplesmente, ela ainda não nos tinha aparecido como o término
de nossas aventuras em direção à universalidade.
A história material da humanidade e a história-que-faz-sentido
É preciso não confundir, de um lado, a evolução material da
humanidade sob a égide de uma cultura da linguagem (e de seu
principal efeito explosivo: a ciência tecnológica) e, de outro,
a história que adquire sentido através de nós, sujeitos. Tanto
o movimento da primeira é um continuum irreversível, se bem que
contrastado de uma região para outra, enquanto a segunda se
divide em ciclos dramáticos sucessivos ou paralelos. A história-que-faz-sentido
se desenrola como uma narração onde nós fazemos papéis de
autores ou atores, narração que começa, se desenvolve e termina
em um ciclo chamado a recomeçar em outros termos, em outro lugar
e amanhã. Deve-se, com efeito, ir até o fim de um relato para
que ele adquira sentido (caso contrário, que sentido teria fazer
o relato?), e depois disso se associa a ele um outro, porque não
queremos viver na angústia da ausência de sentido. Enquanto a
humanidade existir como tal (e não é possível ver como a
democracia de mercado aboliria a condição simbólica na qual nos
banhamos desde a origem da palavra), nós pretenderemos sempre
continuar nossa história, e depois, tendo esta terminado,
desejaremos contar uma outra. Sempre. Eis um postulado antropológico
tão fundamental quanto o da relatividade na física. Ora, este
mecanismo narrativo obedece a certas regras: tentamos, em geral,
contornar uma certa preocupação que permanece central para
muitos de nós, num período de várias décadas, às vezes de
alguns séculos. O caminho: isto é, tentamos sucessivamente
diversas soluções contrárias para o mesmo problema, diversas
expressões opostas da mesma metáfora que nos serve de filtro
momentâneo para interrogar o mundo.
Assim, desde que somos maciçamente confrontados à universalidade
concreta -- desde a metade do século XIX e da aparição dos impérios
modernos capazes de governar o mundo real --, temos tentado pelo
menos três soluções logicamente encadeadas:
1. Controlar a tendência à globalização pelo triunfo da
particularidade: é a guerra entre os impérios, cada um
pretendendo encarnar a totalidade. Os dois conflitos mundiais do século
XX foram os produtos mais (de) flagrantes.
2. Unir o pensamento global e a particularidade: é o ideal
nacional-estatal internacionalizado, do qual vimos as vantagens e
os riscos especialmente em sua maior realização, o movimento
comunista soviético.
3. Realizar o pensamento global unicamente na materialidade dos
agenciamentos técnicos: é o ideal liberal que é, de fato, um
apelo à informatização dos jogos contábeis para regulamentar o
desejo humano, em todas as suas formas particulares.
A proposta que falta
A evidência deveria nos mostrar a proposta que falta, aquela que
nós ainda não tentamos: realizar a universalidade, renunciando
ao pensamento globalitário em todas as suas formas, políticas,
econômicas ou técnicas -- pois ele não passa de um sucedâneo
coletivo de um fantasma infantil de onipotência. Mas para
"ver" esta proposta não realizada, ainda não
experimentada, seria preciso que tomássemos um pouco de distância
em relação a nossa própria história. Isso exige o abandono de
uma posição de ator imediato, com o que raramente concordamos.
Por exemplo, vários entre nós passaram diretamente dos papéis
da segunda solução (militantes da metáfora político-social da
universalidade) aos papéis da terceira (crentes no milagre
regulador do mercado). Muitos, nas diversas "tribos de
esquerda" têm vergonha de ter se engajado num projeto cujos
impasses constatam hoje. Mas, assim como na psicanálise a
vergonha é uma fase do lento recuo do recalcamento, seria bom que
as pessoas compreendessem que a atual admiração pela regulação
técnica (financeira-informacional) do mundo é tão fantasmática
quanto a precedente mobilização. Ela é mesmo, provavelmente,
mais fatal ainda, uma vez que leva todo o mundo a
"representar" sem descanso o valor criado, como se o
verdadeiro objetivo escondido da mobilização globalitária fosse
desafiar a vida até a ruína.
Nos dois casos, na verdade, experimenta-se a gravitação de nossa
história em torno de uma questão essencial: o limite do "totalismo",
quer ele seja "político-intelectual" (socialismo), quer
seja técnico (a lei da oferta e da procura). Comunistas e
liberais trabalharam no desvelamento do coração da época: a
questão de um real humano que transcende toda solução unificada
nos cérebros...intelectuais ou cibernéticos.Não é pois o fim
da história, mas o centro dela que se manifesta hoje. A resposta
capitalista integral ao comunismo não foi, contrariamente ao que
muitos acreditam, um ataque em regra contra o totalitarismo. Foi
bem mais uma tentativa de salvamento -- desesperada, apesar da
aparência "eufórica" dos mercados -- de uma outra
forma, mais absoluta ainda, de totalismo: aquele da máquina que
faz circular sem fim o valor. É um esforço para negar que é no
encontro da gestão financeira global que se concentram as forças
do drama e da tragédia que nos incitaram a ir mais adiante na
narrativa humana.O que o capitalismo informatizado nega é que a
alternativa civismo-automatismo gestionário (antes expressa pela
oposição "comissário do povo"-"financista")
não importa mais verdadeiramente. Na Rússia, fortunas
particulares e burocracia se entendiam bem. O regime chinês
tornou-se um anexo funcional do capitalismo mundial, gerando por
sua vez massas assalariadas remuneradas ao mais baixo preço possível.
Nos Estados Unidos, que se crêem freqüentemente ser o reino da
especulação absoluta, as aposentadorias por repartição
representam ainda 70% do total e os fundos de pensão somente o
resto: sua competição se desenvolve sobre o fundo de uma "gestonite"
administrativa, onde mal se consegue distinguir o burocrata do
homem de dinheiro, tal eles se parecem.
O mundo unificado será suportável?
O que o regime mundial esconde cuidadosamente por trás da comédia
destas falsas oposições é que a civilização está, doravante,
chamada a escolher entre o monopólio geral e a diversidade.
Quando concentrações e fusões se aceleram por todos os cantos,
dando origem a gigantescas organizações mundiais, evidentemente
destinadas a se fundir, por sua vez, em uma ou duas estruturas
restantes; quando as organizações internacionais são cada vez
mais solicitadas a limitar ou dissolver as soberanias nacionais ou
locais, o sentido do que vivemos nos aparece já sob a forma de um
questionamento simples: o mundo será suportável quando estiver
unificado?
A resposta se situa, nos parece, na sabedoria das culturas, em sua
experiência imemorial dos momentos de unidade: uma cultura humana
unificada só é suportável se ela é testemunha de uma
diversidade interna real, ou seja, de uma pluralidade que não é
outorgada -- e, portanto, pré-digerida -- por um sistema
dominante. Assim, a sedução capitalista nos propõe,
aparentemente, uma gigantesca diversidade de objetos. Mas nós já
sabemos a homogenização que ela supõe num segundo plano e na
disciplina dos próprios consumidores.De um lado, somente um
sistema industrializado perfeitamente integrado pode segmentar
seus produtos numa infinidade de opções, enquanto, por outro
lado -- nós o vemos com a destruição de produtos agrícolas,
estigmatizados pela menor bactéria -- , as opções finais
propostas no catálogo gigantesco de vendedores da Internet só
apresentam variações na aparência ou em detalhes superficiais,
perfeitamente controlados.
A emergência da diversidade real como problema central da época
se manifesta em todos os domínios imagináveis, materiais e
humanos. Mas a consciência de sua significação fundamental
demora a se libertar de sentimentos parasitas.A "diversidade
biológica" ameaçada exprime, por exemplo, um fantasma que
diz respeito (vimos seu emprego delirante pelos partidos de
extrema-direita) tanto às formas de vida quanto às entidades
culturais ou étnicas. Mais que recorrer ao seu contra-emprego e
suas derivações ideológicas perigosas, talvez fosse melhor
abordar diretamente a preocupação recalcada que se esconde aí:
medo da exclusão de uma multiplicidade de atitudes individuais
pela lógica do relatório contábil.
Angústia do encolhimento das elites locais ou nacionalismos forçados
à ociosidade e à diminuição por uma instância correlativa de
concentração da hiper-burguesia num Estado-maior mundial. Terror
de um nivelamento dos comportamentos que a moral globalizada
decreta como aceitáveis -- conduzidos a uma única posição de
vitíma passiva, entregues às manipulações da milícia humanitária
etc. Estas preocupações são sérias: só os cínicos podem
admitir que uma boa divisão mundial do trabalho legitima a
pesquisa científica nos Estados Unidos enquanto a Ásia e a
Europa seriam limitados a fabricar sapatos, a vender água ou a
montar veículos. É contudo o que começa a acontecer , com a
ajuda da expatriação voluntária dos departamentos de pesquisas
das empresas européias, em particular as francesas . Só os
idiotas podem supor que é melhor para as populações
"locais" serem dirigidas por uma casta mundial do que
por suas próprias elites. É porém o que acontece com o rápido
deslocamento das direções das empresas, principalmente as
francesas, para as metrópoles anglo-saxônicas. Só os ingênuos
podem crer que não exista nenhuma relação entre a intenção
pura de ajuda às vítimas e o cálculo estratégico do novo
controle colonial do mundo pelos países "liberais".
As velhas identidades não voltam
A proliferação.... de recusas da pluralidade pode inquietar.
Preferimos aqui considerá-la como um sintoma daquilo que ela
exige: uma outra representação partilhada da diversidade. Mas
qual, nos perguntamos, posto que não se trata de um retorno à
fragmentação de identidades antigas?O problema não foi
suficientemente delimitado; passamos muito rapidamente diante da
evidência mais banal, a mais repisada no cotidiano, a saber, que
é o princípio mesmo da pluralidade que está em causa hoje, e não
esta ou aquela forma de respeito do múltiplo.Temos observado, por
exemplo, que é a pluralidade enquanto tal que é negada pela
ideologia dominante da informatização do mundo? Uma pluralidade
mínima não começa a não ser que pelo menos duas entidades
coexistam. Notemos que a pluralidade, iniciada a dois, tende
imediatamente a se multiplicar: um mundo realmente dual não se
basta jamais a si próprio, pois implica obrigatoriamente a presença
do terceiro, ou seja, a posição do comentador segundo o qual um
modo de mediação será escolhido entre duas
"alteridades".Uma lógica plural implica no mínimo três
princípios: o ser, sua ausência (que permite situá-lo, calculá-lo)
e sua mediação. De fato, um mundo plural -- mesmo minimamente --
não é somente trinitário. Ele é pelo menos quaternário.
Com efeito, espírito, corpo e cultura coexistem no interior de um
espaço-tempo real que não pode ser traduzido sem ser traído por
um simbolismo qualquer, mesmo sendo altamente formalizado. Este
quarto elemento é a natureza, na medida em que esta, no sentido
etimológico do termo, "é o que deve ser apresentado ao
mundo", queiramos ou não, estejamos nela ou não. É o que
nos "deixamos ser", porque é o segundo plano de nossas
agitações teatrais, sem o qual este teatro não existiria.
Certamente, a ciência estuda o lado objetivo desta realidade
exterior, mas ela interfere nela, deixando necessariamente de lado
outros aspectos.
Enfim, o pluralismo de princípio pode ser impelido, sem deixar o
terreno da dedução, até um "quinto elemento", que é
suficientemente evocado pelas ardentes heroínas dos filmes de Luc
Besson (Joana d'Arc, por exemplo), a saber, o desejo indestrutível
que nasce das proibições de toda representação do mundo. Com
efeito, um mundo quaternário, por mais pluralista que seja
(quatro vezes mais que o mundo unipolar que nos fabricamos
obsessivamente!), não seria menos "pobre" de
potencialidades que ele excluiria para existir. Este seria o papel
dos loucos, dos amantes e dos criadores: colocar este mundo em
causa para abrir o caminho para outras histórias futuras ou
colaterais (como o fazem, por exemplo, os autores de space opera).
Reanimando Marx e Brecht
Contando com isso, é claro que, no que concerne ao nosso futuro
próximo, deixar-se levar rumo à pluralidade minimal do espírito,
do corpo, da cultura e da natureza corresponderia a um consolo, a
uma formidável liberação da extrema tristeza de um universo
inteiramente comandado, em nome da unidade humana, pelos riquíssimos
ascetas da moeda eletrônica. Karl Marx percebeu muito bem como o
capitalismo fazia desaparecer os reais valores de uso sob a abstração
do valor de troca. Ele não divisara a que ponto a ética puritana
universalizada nos transformaria a todos em autistas pródigos das
cifras. Seria preciso reanimar Bertolt Brecht para escrever uma peça
sobre o magnata das finanças mundiais que não deixa o pequeno
escritório sem janelas de seu iate, ancorado a um porto
"paradisíaco", que ali passa sua vida inteira a comprar
e vender montanhas de objetos e pessoas que não conhecerá
jamais. Que podemos dizer deste ideal de homem moderno, senão:
"Que pobre tipo!"
Quatro princípios soberanos, portanto, que não se deixariam mais
destruir uns pelos outros:1. A natureza, primeiro, enquanto
representa (simbolicamente, claro) o que não é manipulado. Seria
por simples acaso que os José Bové se tornam os raros heróis de
um mundo onde capitalismo e ciência se reúnem para se dedicar a
nossa relação com a exterioridade, com a auteridade radical da
vida "selvagem"? Queremos respirar outra, além de nós
mesmos. Recusamos uma relação incestuosa, uma relação autofágica.
Pretendendo comer queijos de leite cru (sob risco de engolir
alguns inevitáveis listeriae), recusamos que a fobia asseptizante
seja uma percepção normal do real. Resistindo aos organismos
geneticamente modificados, criticamos o aprendiz de feiticeiro
multinacional que pretende captar a vida nas redes de seus genes
industriais. Desejamos aceder a espaços não contaminados pela
exploração técnica do mundo, afim de aí viver um pouco (ou
muito) de aventura direta, não inserida na lógica da mercadoria,
não organizada "para nosso bem". Eis aí uma primeira
soberania (algo a instaurar talvez no contexto de um patrimônio
mundial) que o capitalismo deverá, pacificamente ou na violência
engendrada por sua obstinação, aprender a reconhecer.2. Os
corpos em seguida, em sua atualidade localizada. Será um acaso
que uma das grandes lutas da nossa época é aquela dos jovens
"habitantes dos bairros"? Estes heróis reivindicam o
direito de existir de entidades locais, dotadas de costumes, de
estilos corporais e de falares bem identificados sobre uma base
geográfica (eu sou de tal cidade, do bairro 93, etc.).
Considerados deste ponto de vista, eles não são "vítimas
da exclusão", mas, ao contrário, vanguardas da resistência
à abstração virtual internetizada, à qual opõem o lugar, o
corpo, o atual, a vizinhança e a convivialidade. Certamente eles
são censurados freqüentemente por serem fascinados por ícones
do consumo de massa, por serem os futuros "idiotas da ralé",
por favorecerem, contra as elites cultivadas de sua própria
sociedade, a união do McDonald's e do djihad. Trata-se de maus
argumentos na verdade (mesmo quando apresentam algo de
verdadeiro), pois não levam em conta o essencial: a subversão
urbana antecipa a resistência das comunidades de situação e de
partilha de lugares de vida à homogeneização sem limites.
Ela representa a defesa do próprio corpo, sempre encarnado aqui e
agora, em constante movimento, dançante, alimentando-se do
"tu" (e também contra "eles"), em sua recusa
da imobilização diante das telas do universal. Evidentemente,
permanece quase tudo a inventar neste domínio de luta,
especialmente em termos de bens e de serviços comunitários
inalienáveis à propriedade mercantil.
Déficit cultural, déficit político e totalitarismo
3. A cultura, igualmente, em sua característica primordial de
palavra partilhada, de criação contínua de experiências, de
"maneiras de ver", transcende a fabricação industrial
de folhetins e merece a salvaguarda e a promoção de redes de
distribuição que não organizam a raridade e não generalizam o
deserto cultural. Será também um acaso que ela constitua um dos
principais pontos de discórdia dos debates sobre a desregulamentação
do comércio internacional? A questão aqui não é somente que o
produto hollywoodiano mais medíocre agrade as pessoas (o que
reenvia à questão da real participação de massa, do
empobrecimento cultural, fenômeno do tipo "servidão voluntária").
É que o confisco das possibilidades concretas de encenação dos
jogos humanos pelos membros de tal sociedade proíbe no fim das
contas o comentário sobre a própria universalidade. Nos tornamos
incapazes de endereçar nossa avaliação do mundo social e de
suas relações a outros sujeitos deste mesmo mundo. O déficit
cultural cava um déficit político que, por sua vez, reforça o
totalitarismo opressivo da máquina automática "acultural".
A independência financeira das instituições de cultura e de
ensino é provavelmente uma das vias de resistência, com a condição
de que sua função de diversão e livre criação dos meios
cultos prevaleça finalmente na opinião pública sobre a busca
quimérica de "empregos". 4. E, enfim, a própria
informação. Se nós a submetemos a uma crítica virulenta na sua
pretensão mesma de abarcar toda a realidade humana, não se trata
evidentemente de buscar sua destruição, posto que --, não nos
esqueçamos --, é graças a ela que a questão da diversidade no
universal foi colocada como centro de nossa história. A informação
endossa, não há dúvida, a construção da humanidade como tal
mas, ciente de sua responsabilidade gigantesca, ela não deve
precipitar imediatamente esta mesma humanidade na absoluta
inumanidade da transparência contábil. Nas grandes empresas, os
executivos coletivamente sádicos infligem a muitos assalariados
os sofrimentos que se pode esperar de casernas cibernéticas.
Sobre o manto da adaptação às normas globalizadas eles espetam
os assalariados como os insetos de um novo taylorismo mais próximo,
desta vez, do controle dos espíritos. É preciso frear esta tendência
monstruosa como também será muito útil introduzir a presença
das três outras instâncias independentes (cultura, corpo e
natureza) no interior dessas fortalezas da perversão produtiva.
Por exemplo: a luta dos pesquisadores da Elf, em Pau, para
conservar algo do pensamento não imediatamente rentável (sob
pretexto de reclamar daquilo que deveriam agradecer aos acionistas
mais ávidos) antecipa uma luta muito mais global para limitar a
vida ativa a pura contabilidade.
As quatro instâncias cardeais
Para resumir "o negócio do século": quer queiramos ou
não, a universalidade, já adquirida na globalização, só será
suportável através do reconhecimento do princípio da
pluralidade. Este não tem nada a ver com a infinita fragmentação
dos objetos e dos homens que nos propõem os catálogos
comerciais. Ele representa, inicialmente, a dualidade, a saber, eu
e o outro, e não zero e um; o espírito e o corpo, e não os
corpos decifrados pelo espírito e desmembrados por suas
ferramentas de "relação". Desta dualidade elementar,
se deduz a presença de livres comentadores: é na cultura, e
somente nela, que podemos discutir qual "a boa maneira"
de contar uma história de respeito mútuo. Nenhuma ciência do
homem, nenhuma invenção estatística das opiniões, nenhum
sistema de vídeo-vigilância pode substituí-la. Nela reside
provavelmente o registro político maior: aquele onde discutimos a
peça que vamos encenar, e não somente os detalhes de um
determinado ato, ou a escolha dos atores e de seus salários.
Enfim, tudo isso exige uma testemunha silenciosa: a natureza,
sobre uma parte da qual, por pura convenção, decidimos não
agir, a fim de não nos deixarmos encerrar em uma confusão louca
entre nós mesmos e o mundo, entre a vida e nossas intenções de
ser a fonte dela.Um mundo plural não é assim um mundo ordinal
(onde tudo torna-se seguido de números), nem mesmo um mundo
fracionário (onde todos os números são finalmente colocados em
um círculo entre 0 e 1). É um mundo onde ao menos quatro instâncias
cardeais se consideram mutuamente e respeitam seus próprios
modos, irredutíveis, de pensar e de agir, seus próprios símbolos
fundamentais distintos e separados: o dinheiro (para a informação),
o lugar do presente (para o corpo), a palavra (para a cultura), a
vida selvagem (para a natureza). Saberemos fazer surgir este mínimo
de pluralidade?
Traduzido por Marco Aurélio Weissheimer.
* Sociólogo, diretor de pesquisa no Centro Nacional de Pesquisa
Científica (CNRS), em Paris. Autor, entre outros, de Nature et
democratie des passions, Presses universitaires de France, Paris,
1996.
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