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O ecológico e o social: combates, problemas, marxismos 

Pierre Rousset 

Tem cada vez mais menos sentido tratar as questões ecológica e social de forma independente, tanto no plano político quanto reivindicativo. Não podemos aceitar, ou estaremos correndo o risco de contradições explosivas, desenvolver dois conjuntos paralelos de medidas, um para responder às necessidades sociais (“salvar a humanidade”) e outro para responder aos danos ecológicos (“salvar o planeta”). O objetivo atual é combinar estas duas exigências solidárias em um mesmo programa de ação que seja, de fato, coerente. Isto vale também para o plano teórico: a ecologia não deveria ser reduzida a um “capítulo adicionado”, a uma “peça importada” para um programa fundamental de transformação social imutável, ela faz parte dos questionamentos contemporâneos que impõem uma revisão geral das concepções socialistas e marxistas. 

I. Algumas considerações iniciais

Os debates ecológicos hoje se colocam em termos diferentes do passado, mesmo do passado relativamente recente. É importante levar isso plenamente em consideração.

1. Uma crise de dinâmica global.

 O desenvolvimento econômico provocou no passado inúmeras crises ecológicas localizadas, mas hoje vivemos as premissas de uma crise ecológica produzida pela humanidade de dinâmica global. Sistemas de produção não capitalistas (por exemplo, na URSS) tiveram conseqüências ecológicas desastrosas, mas a crise contemporânea é fomentada pela lógica intrínseca ao capitalismo (da “produção pela produção”). Esta foi a base dos desenvolvimentos econômicos posteriores à Segunda Guerra Mundial que conferiram às crises ecológicas localizadas uma nova dinâmica global (expansão e adensamento do mercado mundial com a petroquímica e a agroindústria, a explosão dos transportes, etc). A globalização liberal em curso tende a agravar ainda mais as coisas.

O custo humano da crise ecológica já é muito alto. Porém, são as próprias condições de existência da espécie humana na Terra que serão qualitativamente fragilizadas se uma mudança radical da dinâmica produtiva não se operar. 

2. Uma questão de alcance universal, de conseqüências sociais no presente.

Os efeitos sociais da crise ecológica desde já são percebidos em todos os países. As gerações futuras ou as populações do Terceiro Mundo não são mais as únicas atingidas. Na França seus efeitos são perceptíveis tanto no domínio da saúde pública – cada vez mais gravemente afetada pela poluição de terras, águas, ar e alimentos – quanto no das exclusões: por exemplo, um número crescente de famílias não pode mais pagar o acesso à água corrente por causa do aumento explosivo dos preços decorrente das poluições e da política de privatização deste setor.

A crise ecológica contribui, de inúmeras formas, para aumentar as desigualdades norte-sul, mas também entre ricos e pobres dentro de cada país. Portanto é necessário tratá-la não só para prevenir o futuro como para resolver problemas do presente. A articulação das questões ecológica e social é tão forte que se torna sem sentido querer estabelecer uma hierarquia de prioridades entre elas. Elas devem ser tratadas conjuntamente.

 

3. Um combate central para a sociedade.

A ecologia analisa as relações entre as sociedades humanas e seu meio ambiente, a natureza, a biosfera. Ela introduz uma questão bastante enriquecedora para as correntes de pensamento socialista que ignoraram amplamente este dimensão essencial. A origem da crise ecológica contemporânea está no “produtivismo”, no modo articulado de produção e consumo, e portanto as respostas exigem uma modificação do funcionamento das sociedades humanas. O combate ecológico se alia ao combate de transformação social. Não se trata de uma esfera separada, que estaria protegida dos contrastes sociais e das relações de poder.

A crítica ecológica não somente toca na lógica íntrinseca do capitalismo, mas questiona diretamente alguns dos principais pilares do sistema dominante (agro-indústria, indústria petrolífera, nuclear, transportes e automóveis, gigantes do manejo ambiental, química, etc...). De fato estamos muito longe dos setores marginais! Assim levado ao coração da sociedade, o combate ecológico não escapa às tensões, pressões e manipulações sociais. Para ser eficaz, ele tem de criar relações de força favoráveis. Para contribuir de forma positiva à transformação do funcionamento de nossas sociedades, ele deve se integrar a um combate democrático coletivo mais amplo. Sob pena de perder toda a sua vitalidade, ou pior ainda, de ser instrumentalizado pelas forças dominantes, de se voltar contra as populações e as camadas sociais dominadas.

 

4. Uma questão chave: a convergência dos campos de luta.

A afirmação das solidariedades sempre foi uma dimensão essencial no combate progressista; mas adquire um significado particular neste momento de globalização liberal. De um lado, um sistema único de instituições internacionais e de pólos de poder se estende por todos os continentes e em todos os domínios das políticas ultraliberais que são claramente identificáveis, o que torna mais facilmente perceptível os interesses comuns das e dos integrantes das classes populares. De outra parte, em numerosos países, os antigos modelos de dominação são colocados em xeque, minados: a capacidade do Estado de estabelecer compromissos sociais globais é atualmente restrita, o que faz com que os espaços nos quais a cidadania se opera sejam desarticulados e percam seu sentido.

A emergência de um novo modo de dominação permanece inacabada e talvez seja inacabável na medida, por exemplo, que o neoliberalismo atual não responde à questão essencial de sua legitimação política. Nestas condições, a estabilidade do sistema se baseia, de uma forma mais imediata que no passado, na fragmentação das resistências; assim as antigas solidariedades devem ser destruídas e as novas sufocadas ainda embrionárias.

É, em larga medida, no campo das solidariedades que os combates sociais e democráticos serão ganhos ou perdidos. O encontro do ecológico e do social é fundamental nesta questão atual: alimentar novas solidariedades “transversais”, exprimir a convergência dos campos de luta, dar um conteúdo renovado às solidariedades e à articulação de combates internacionais.

 

5. Verdes e vermelhos: questionamentos cruzados.

Uma questão de fundo está colocada para os militantes da transformação social: eles serão capazes de integrar efetivamente o problema ecológico, e a todos os níveis de sua reflexão e ação? Apesar do tempo perdido, um certo progresso se manifesta neste domínio; mas muito ainda permanece por ser feito e numerosos são os obstáculos. E os que se apóiam na referência ecológica (ou ao menos em uma referência ecológica que se diz não socialista) serão capazes de pensar a transformação social e tirar conseqüências políticas e reivindicativas? Neste caso, para além de declarações de intenções, a reposta não é evidente.

Ao introduzir um domínio de conhecimento e de ação que ficou no mínimo marginal na teoria socialista (as relações sociedades/natureza), a ecologia política questiona os “vermelhos” e o pensamento marxista. Mas, por estar intrinsecamente ligado ao funcionamento de nossas sociedades, a ecologia política questiona também os “ verdes”, em particular se rejeitam a referência marxista: com que instrumentos conceituais e em relação a que projeto político eles pensam a necessária transformação social?

 

II. Articulação das lutas

A crise ecológica e a crise social são, em ampla medida, alimentadas por mecanismos idênticos. Interesses de grandes lobbies econômicos, ditaduras cada vez mais exclusivas dos mercados, ordem mundial encarnada pela OMC, FMI, BM, G7, etc... contribuem para o esgotamento tanto dos seres humanos quanto da natureza. Fatores comuns operam nas crises sociais e ecológicas contemporâneas, remédios comuns podem e devem ser desenvolvidos: é preciso quebrar o cerco do “liberalismo econômico”, colocando no centro as escolhas que atendem as necessidades humanas e as demandas ecológicas. Daí a convergência imediata que encontramos entre o ecológico e o social. Porém, mesmo quando nos restringimos aos pontos mais simples nestes campos de convergência, novos questionamentos surgem anunciando a necessidade de reavaliações mais amplas. Tomemos aqui cinco exemplos:

 

1. A defesa dos serviços públicos.

O exemplo dos transportes nos mostra o quanto a lógica do serviço público é necessária para responder de forma coerente aos imperativos sociais e ecológicos. A lógica liberal exige a redução da rede ferroviária às formas e linhas “rentáveis”, favorecendo em contrapartida o crescimento das vias rodoviárias. Ela alimenta também uma concorrência selvagem entre modos de transporte (ferrovia/rodovia, mas também ferrovia/ aéreo) que produz escolhas irracionais do ponto de vista social e ecológico. A imensa predominância do caminhão no transporte de mercadorias se deu graças à enorme expansão da rede rodoviária e responde às exigências da produção em fluxo descontínuo, “just in time”. A produção em fluxo descontínuo exerce, além do mais, uma considerável pressão sobre a organização do tempo de trabalho, especialmente para sua variação ao longo do ano. A concorrência do transporte aéreo justificou a prioridade absoluta dada ao TGV (trem de grande velocidade) pelo SNCF (sistema nacional de estradas francês), cujos custos ambientais (construção de novas vias em área própria) e sociais (pressão sobre os orçamentos e endividamento às expensas da capilarização da rede) são consideráveis. Os salários, as condições de trabalho e as normas de segurança são totalmente desconsiderados em nome da rentabilidade competitiva,...

As exigências sociais (transportes públicos baratos, rede cobrindo todo o território, normas de trabalho e de salário aceitáveis) e ecológicas (redução dos meios de transporte mais poluentes, fisicamente os que mais destroem e energeticamente os mais custosos) impõem a necessidade do desenvolvimento de transportes coletivos na lógica do serviço público. Isto também ocorre em outras áreas.

Mas esta constatação não encerra o debate sobre a organização contemporânea do serviço público. De fato, os monopólios de Estado estão sujeitos a elaborar suas políticas em função de objetivos não democráticos (na energia, por exemplo, relação entre empresas petrolíferas e intervenção imperialista na África, ou relação entre a indústria nuclear civil e militar), segundo os modos de gestão e os modelos produtivos estreitamente capitalistas, em função de normas de rentabilidade que tomam por referência os monopólios privados. O monopólio estatal não é, portanto, suficiente para garantir a execução de uma política de serviços públicos e seu caráter democrático. Um serviço público exige uma política pública que não tenha como motor a busca da maximização dos lucros.

 

2. A luta contra a poluição

Cada vez mais temos consciência dos custos humanos (com relação à saúde, alta de preços, etc...) e naturais (com relação à biodiversidade) das poluições, bem como do papel que jogam numerosos interesses econômicos estabelecidos no seu agravamento: a preponderância do automóvel, poluição atmosférica e problemas crescentes de saúde nos centros urbanos; a preponderância da agroindústria e a brutal poluição das águas na Bretanha, ou a poluição dificilmente reversível dos lençóis freáticos na Ile de France; a preponderância do lobby nuclear e a acumulação de longo prazo de dejetos radioativos na França; a preponderância dos grandes interesses privados e o aumento socialmente insuportável do custo da água potável no norte e a imensa falta de acesso à água potável no sul... Em cada uma destas áreas, combate ecológico e combate social exigem uma lógica alternativa que se oponha àquela dos grupos econômicos dominantes.

A gravidade dos problemas de poluição contribui para a evolução das consciências. Torna-se mais difícil apresentar as questões ditas ecológicas como marginais, estranhas às questões sociais, como preocupações elitistas, um luxo pequeno burguês. A crise da vaca louca representou provavelmente um ponto de inflexão maior, análogo a Tchernobyl para a questão nuclear: ela trouxe à tona a extensão do perigo intrínseco ao modo de produção das agroindústrias. O combate contra as poluições questiona de conjunto o modelo produtivo, tem implicações profundas para a política de ocupação do território e traz várias questões sobre a relação entre pesquisa científica e os poderes estabelecidos (institucionalizados, políticos e econômicos). Abre assim um campo de reflexões fundamental.

 

3. Em defesa do emprego.

Uma política de proteção ambiental gera empregos em inúmeros setores. E tem mais. As lógicas econômicas dominantes, que superexploram a natureza, criam também o desemprego. Este é claramente o caso da agroindústria que desertifica os campos de dois pontos de vista: dos espaços (redução drástica da variedade de paisagens e da biodiversidade) e humana (redução drástica do emprego e êxodo rural). Este é também o caso da indústria automobilística que demite massivamente ao mesmo tempo em que aumenta sua capacidade de produção e impõem sua ditadura sobre os modos de transporte, de ocupação do território e de desenvolvimento urbano. Lógicas sócio-econômicas alternativas permitem definir um modo de produção menos predatório com relação a natureza ou a qualidade de vida, e mais rico em empregos.

Uma alternativa ecológica ao modelo dominante permite geralmente repartir melhor (e portanto aumentar) o emprego assegurando uma descentralização da produção. É evidente no campo energético, a indústria nuclear exige uma concentração extrema, mas isso vale também para outros setores, como nos transportes. Levar em consideração as múltiplas possibilidades da questão ecológica aumenta o leque de “ocupações”. A ecologia se inscreve no esforço conjunto de redução do emprego e de redistribuição das atividades sobre o território.

 

4. Abolir o sistema da dívida.

O “desenvolvimento pelo endividamento”, impulsionado pelas potências financeiras do norte produziu um sistema de controle da política econômica dos países devedores (sobretudo do sul) e o fortalecimento dos poderes do FMI e do Banco Mundial (inclusive no norte). O serviço da dívida e os cânones ultraliberais da OMC tem conseqüências dramáticas para as sociedades humanas (destruição das proteções sociais, das culturas alimentícias,...) assim como sobre a natureza (destruição dos recursos naturais para exportação...) Os mecanismos fundamentais deste sistema de dominação devem ser combatidos tanto do ponto de vista social quanto ecológico.

As regras comerciais instauradas pelo GATT e depois pela OMC, reforçam a dominação das grandes multinacionais do norte. Impondo a abertura dos mercados locais a seus produtos, elas acentuam as dependências (inclusive as alimentares), fragilizam os equilíbrios sociais e aumentam irracionalmente as trocas internacionais, alimentando assim a crise energética e ecológica. O projeto do AMI negociado na OCDE ilustra até onde podem ir as lógicas destrutivas e anti-democráticas. Os famosos “mercados financeiros” são incapazes de solidariedade entre pessoas da mesma geração (a Bolsa de Nova York baixa quando os números do desemprego são “muito” bons!) – e são mais ainda incapazes da solidariedade entre gerações que a ecologia demonstrou ser decisiva.

 

5. Longo prazo e democracia.

A questão ecológica exige considerar os danos ambientais a um prazo muito longo, os ritmos naturais têm tempos muito diferentes daqueles do mercado, necessariamente curtos. Inúmeras necessidades sociais (educação, saúde,...) exigem também, para serem corretamente tratadas, um tempo mais longo que aquele do “rei mercado” – o que aliás é uma das principais razões para que sejam serviços públicos. Danos ecológicos e necessidades humanas exigem conjuntamente que nossas políticas alternativas integrem dimensões de tempo de longo prazo que a solidariedade entre gerações destaca. A ecologia, além da defesa das necessidades sociais, dá uma nova legitimidade à noção de planificação, pois o que é considerar o longo prazo se não planejar? Porém a ecologia também contribuiu com as críticas de fundo das experiências burocráticas ocorridas no leste.

A ecologia política enriquece a reflexão sobre democracia e, especialmente, as relações entre solidariedades e responsabilidades, entre presente e futuro, entre diversos níveis de espaços territoriais – local, regional, nacional, internacional. Ela revaloriza a política na definição de escolhas produtivas e nos força a renovar a concepção de planejamento por outras razões, pois este deve, de agora para frente, incorporar uma série de preocupações e objetivos ambientais (medidas de fluxos de energia, pressão sobre os recursos naturais, preservação da biodiversidade e da diversidade de ecossistemas, correção das perigosas evoluções induzidas no equilíbrio da biosfera,etc...)

 

III. Algumas novas questões

É possível, portanto, responder em um mesmo movimento às necessidades sociais e exigências ambientais. Entretanto, a crise ecológica nos apresenta problemas radicalmente novos, ou dão uma dimensão radicalmente nova a problemas antigos. A percepção da existência de “limites” do planeta, da degradação e dos riscos ecológicos, das conseqüências humanas dramáticas destas degradações nos força, desde já, a repensar as relações entre sociedade-natureza, a considerar danos ignorados por muito tempo. Como integrar estas novas questões a nossas políticas alternativas? Indicamos aqui cinco pistas para começar:

 

1. Cooperação.

Esta integração não se dará sozinha. Ela exige o desenvolvimento combinado de reformas ecológicas e sócio-econômicas, e portanto uma cooperação constante entre militantes “sociais” e “ecologistas” (sabendo que uma mesma pessoa ou um mesmo movimento pode ser simultaneamente social e ecológico...). Os “sindicalistas” devem trabalhar com os “ecologistas” para tratar do impacto sobre o meio ambiente dos planos alternativos que eles elaboram (por exemplo, no setor energético). De forma recíproca, os “ecologistas” devem trabalhar com os “atores sociais” para considerar os impactos humanos de suas propostas (da questão das “taxas” à defesa de áreas de preservação natural).

Este tipo de cooperação e troca é parte da renovação das práticas políticas.

 

2. Redução das desigualdades sociais.

Considerando o tamanho dos interesses em causa, o combate ecológico só tem futuro se for um combate democrático, e se adquirir a força de um movimento verdadeiramente “de massa”. Ora, ele jamais conseguirá esta façanha se as “reformas ecológicas” tiverem por conseqüência aumentar as desigualdades sociais. Estas reformas (fiscais, de regulamentação,...) quando são necessárias, devem ser concebidas de maneira a reduzir e não aumentar as desigualdades sociais a fim de serem integradas a um combate democrático plural. Isto é essencial tanto no plano nacional como internacional. O combate ecológico deve reforçar a solidariedade norte-sul e não contribuir para que o sul pague o preço do desenvolvimento do norte.

O encontro entre ecológico e social não pode ser unicamente uma cooperação política na prática. Ele exige de ambas as partes um grande esforço de renovação teórica.

 

3. Redução do tempo de trabalho, desenvolvimento do tempo livre.

Como reduzir a pressão sobre os recursos naturais sem reduzir proporcionalmente as liberdades (liberdade individual de deslocamento, por exemplo)? Não será fácil enfrentar esta questão, mas um elemento de resposta se encontra na redução substancial do tempo de trabalho – isto é, o aumento do tempo livre. Muitas coisas poderiam ser feitas de uma forma social e ecologicamente menos custosas apenas consagrando a elas mais tempo...

No fundo, a exigência ecológica encontra-se aqui com a questão do tempo livre (contribuindo especialmente para repensar a noção de progresso humano) e a luta para multiplicar os postos de trabalho graças à redução da jornada de trabalho. A questão se acirra entre as lutas “defensivas” do presente contra o desemprego e um projeto de sociedade positivo, alternativo.

 

4. Revolução conceitual.

Precisamos continuar repensando as relações entre noções de progresso, crescimento, bem-estar, mercadoria, etc... O modelo ocidental de desenvolvimento não é passível de ser generalizado em todo o planeta e seus impasses mostram que é necessário romper com a concepção produtivista de progresso – o que anima a crítica dos critérios de crescimento utilizados no cálculo do Produto Interno Bruto (PIB), por exemplo. A questão ecológica contribui para renovar a discussão em várias áreas (urbanismo, escolhas tecnológicas, posições científicas,...) que foram deixadas de lado depois dos anos 70.

Inúmeras idéias aceitas estão agora em questão. Mais do que simples retoques, trata-se de uma verdadeira revolução conceitual, inclusive para as correntes que se dizem socialistas. A crítica estrutural do capitalismo se enriquece e as propostas de transição se modificam quando combinamos danos ecológicos e necessidades humanas.

 

5. Revolução cultural.

Trata-se de uma revolução cultural, de modelos, percepções e valores que devem ser modificados, em particular os valores herdados dos anos do boom econômico, típicos da sociedade de consumo.

Analogias podem ser feitas quanto ao alcance da questão ecológica e a questão feminista. Ambas contribuem ao mesmo tempo à crítica de comportamentos individuais e coletivos, articulam transformação de valores ou modelos culturais no curso de lutas atuais e um projeto alternativo de sociedade.

Estas revoluções conceituais e culturais apenas começam. E terão seu tempo...

 

IV. Paradigma verde, marxismo e marxismos.

É comum evocarmos o encontro original não ocorrido entre marxismo e ecologia nos tempos de Marx e Engels; depois disso a social-democracia e o stalinismo impuseram suas concepções mecanicistas e positivistas. Podemos também evocar o encontro não ocorrido entre a ecologia política e o socialismo cujas premissas existiam nos anos 70. Depois veio a “crise das ideologias”, a começar pela crise da referência marxista e socialista. Certamente algumas pontes foram lançadas entre os pensamentos social e ecológico, correntes da ecologia popular são portadoras de um projeto de sociedade explicitamente anticapitalista e o aporte marxista à crítica ecológica do capitalismo não pode ser negligenciado. No entanto, somente nos fim dos anos 1990 – 150 anos depois da redação do Manifesto – que uma verdadeira integração dos problemas sociais e ecológicos se coloca novamente em questão, de forma consciente e global.

 

1. Atualidade e dificuldade de um encontro.

A reatualização do encontro entre as questões social e ecológica evidentemente se explica pelo agravamento conjunto de ambas as crises e sua relação muito próxima; e também pela evolução das consciências. Contudo a fusão destas duas questões não é uma coisa fácil. Seus desenvolvimentos separados, paralelos criaram incompreensões, rotinas organizacionais, mecanismos de pensamento, tradições de ação, que constituem hoje inúmeros obstáculos a seu encontro. Ainda pior, a falta de reflexões críticas construída sobre a ecologia entre os marxistas e sobre o conflito social na maior parte das correntes da ecologia política os tornaram particularmente permeáveis nestas áreas à ideologia dominante.

Apesar do trabalho pioneiro de algum (inclusive nos anos 1950-1960) e as contribuições de correntes mais ou menos terceiro-mundistas nos anos 1960-1970 (época do “small is beautiful”), a maioria das organizações marxistas e socialistas se mostraram bastante permeáveis à ideologia dominante nestas áreas que vão da noção de progresso aos modelos de desenvolvimento, das tecnologias aos modelos de consumo. Na França, por razões históricas próprias, a aceitação pela maioria do movimento operário da ideologia eletronuclear é um exemplo especialmente chocante.

Apesar do engajamento socialista radical de alguns, a riqueza de inúmeros questionamentos e o papel central que a crítica ao produtivismo ocupa em suas análises, a ecologia política não foi capaz de construir uma teoria social crítica, global e original, uma compreensão própria das sociedades, de suas estruturas e dos mecanismos de sua transformação. Isto permite explicar a imensa fragmentação dos movimentos que têm esta referência, a ambigüidade de uma corrente como a ecologia radical, a facilidade com que a ecologia “realista” pode ser cooptada pelo sistema dominante, o peso neste meio da ingenuidade de uma visão curta e a dificuldade que tem, com notáveis exceções, de pensar o conflito social.

 

2. Qual teoria da transformação social?

É (ainda?) de bom tom entre os verdes afirmar que o socialismo é o pensamento do século XIX e a ecologia, do século XX, que o paradigma verde substitui o vermelho, que a crítica marxista do capitalismo teve sua importância mas a perdeu com a evolução histórica. Em síntese, que o marxismo é um assunto do passado. No entanto, a atualidade do marxismo não se relaciona à atualidade do capitalismo? É bem difícil neste momento de globalização liberal pensar e agir como se o capitalismo não fosse mais um sistema dominante, dominador e predador.

A ecologia política não pode se esquivar de questões-chaves como as relações de poder e as polaridades sociais. Não pode ignorar, sem perdas, a importância crucial de um conceito como o de modos de produção, da noção sistêmica do capitalismo. Cada corrente que se considera como ecologia política deve precisar qual sua teoria de transformação social, pois trata-se de romper a espiral suicida do “produtivismo” transformando radicalmente o funcionamento de nossas sociedades. Se o aporte marxista neste campo é rejeitado, do que estamos falando? Raros foram os teóricos de uma ecologia não socialista que quiseram responder a esta questão.

 

3. Uma exigência de radicalidade.

A crítica ecológica é bem difícil de ser digerida pelas correntes socialistas reformistas, gestoras do capitalismo, ainda mais se ela apresenta como marxista. O mesmo vale para a crítica social. O primeiro obstáculo é de natureza política: a recusa de colocar em xeque o sistema dominante, sua lógica descarada. Levar em conta efetivamente os danos ecológicos não nos opõem, como no caso das necessidades sociais, à lógica expressa pelos tratados de Maastricht-Amsterdam da Comunidade Européia, pela OMC ou pelo FMI?

É verdade que existe uma ecologia política social-democrata, que ocupa ... alegremente... na França o lugar da ecologia do vice-presidente Al Gore nos Estados Unidos. Mas ela se mostra alérgica à radicalidade objetiva do questionamento ecológico.

 

4. Uma problemática anti-mecanicista, anti-linear.

Mesmo sendo radicais, revolucionários, os marxistas podem se perceber intrinsecamente incapazes de integrar a questão ecológica se estiverem, por menos que seja, prisioneiros de concepções reducionistas de classe ou economicistas. Assim como o feminismo, a ecologia política traz à tona o caráter dinâmico, nodal, essencial das contradições que não podem ser reduzidas somente às relações de classe e rompe as amarras das concepções economicistas. Para integrar a questão ecológica, o marxismo deve se abrir a todas as contradições motoras: estas contradições maiores que fazem com que a sociedade se transforme, contradições que interferem umas nas outras. Tanto isso é verdade que o capitalismo joga em todas as formas de exploração e opressão para se manter dominante; e portanto elas devem ser tratadas de forma conjunta. Mas cada contradição tem sua história, sua dinâmica e sua autenticidade própria, que jamais se reduzem umas nas outras.

Ainda mais que o feminismo, a ecologia ataca todas as concepções lineares de história e progresso. As modificações do meio-ambiente raramente são integralmente reversíveis, e muitas vezes são irreversíveis. Elas modificam as condições de luta influindo sobre as escolhas e as possibilidades.

Para integrar a questão ecológica, o marxismo deve se apropriar de uma concepção de história aberta, antípoda das tradições lineares.

 

5. Um processo inacabado.

Ponto de vista da radicalidade e da história aberta, apreensão das contradições motoras nas suas articulações como nas suas irredutibilidades... Nem todos os marxistas são capazes de integrar em uma mesma perspectiva de transformação as questões social e ecológica. E mesmo aqueles que parecem ser os mais aptos, os mais preparados, não saberão terminar esta tarefa rapidamente. Há muito o que fazer para esclarecer as implicações contemporâneas das indispensáveis rupturas anti-mecanicistas e anti-lineares, mesmo quando estas rupturas têm raízes antigas que se aprofundam em debates do passado (sobre a suecssão de modos de produção, por exemplo) e até mesmo na obra de Marx e Engels.

O atraso no debate sobre as relações entre sociedade e natureza está acumulado no pensamento socialista, mesmo o mais dinâmico, é será necessário tempo para superá-lo. Sobretudo se entendemos por isso um pensamento coletivo, elaborado por movimentos e organizações que sejam capazes de agir.

Sob vários aspectos, as questões ecológica e social se interpelam hoje em dia, e este diálogo se mostra particularmente essencial para o futuro do marxismo e da transformação social. 

 

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