O
absurdo da agricultura moderna
Dos
fertilizantes químicos e agrotóxicos à biotecnologia
José A. Lutzenberger
Outubro de 1998
Na controvérsia reinante
atualmente em torno da biotecnologia, como vem sendo aplicada à
agricultura, existe muita desinformação resultando em
preocupação desnecessária em algumas áreas e uma muito mais
séria falta de preocupação em outras. É preciso olhar o quadro
completo para poder entender porque e como a produção agrícola
é cada vez mais dominada por corporações gigantes. Nos dias de
hoje, o quase total controle da biotecnologia pelas grandes
empresas é apenas a culminação de um processo que vem crescendo
nos últimos 75 anos. Vamos analisar o panorama da agricultura
segundo a perspectiva atual.
A agricultura foi inventada entre
10 e 15 mil anos atrás, e nos últimos 2 ou 3 mil anos evoluiu
para belas e sustentáveis culturas camponesas, localmente
adaptadas e sustentáveis, em muitas regiões do mundo,
especialmente na Europa, Ásia, México, América Central, Andes,
e em algumas regiões na África. Desde o início da
colonização, agricultores americanos, apesar de muitos
desastres, tais como as tempestades de poeira, também
desenvolveram belos sistemas agrícolas, que estavam se tornando
sustentáveis. Muitas dessas culturas ainda estavam intactas até
o final da Segunda Guerra Mundial. As poucas remanescentes estão
agora sendo desestruturadas.
A indústria tem conseguido
sucessivamente se apropriar de uma parte crescente das atividades
dos agricultores, tomando deles tudo o que permite a ela a
obtenção de lucros seguros e deixando-lhes os riscos - o risco
de má colheita devido a mau tempo e o risco de perder dinheiro
devido à crescente dependência de insumos agrícolas que devem
ser adquiridos a preços crescentes e tendo que vender seu produto
a preços cada vez mais baixos.
O argumento convencional em favor
dos métodos da agricultura moderna é que eles constituem a
única maneira eficiente de resolver o problema da fome mundial e
da alimentação das massas que ainda estão por vir com a
explosão populacional. Mas isto é uma ilusão. É certo que os
métodos agrícolas tradicionais poderiam ser aperfeiçoados com o
conhecimento científico atual de como as plantas crescem, da
estrutura do solo, da química e vida do mesmo, bem como do
????? metabolismo das plantas e assim por diante. Mas o aperfeiçoamento
não precisa ser direcionado para monoculturas gigantescas,
altamente mecanizadas e com toda a parafernália dos fertilizantes
comerciais e venenos sintéticos, com a produção agrícola sendo
transportada pelo mundo todo. A grande monocultura foi uma
invenção do colonialismo. Os poderes coloniais não podiam
extrair muito do campesinato tradicional com suas safras altamente
diversificadas, para a subsistência e direcionadas para os
mercados regionais e locais. Eles queriam grandes quantidades de
algodão, açúcar, café, chá, cacau e outros. Isto conduziu à
marginalização de milhões de pessoas e também esteve na raiz
do tráfico de escravos da África para as Américas, uma das
maiores calamidades da história humana.
Mas, o problema fundamental com a
agricultura moderna é que ela não é sustentável. Mesmo se
fosse tão produtiva quanto é afirmado, o desastre seria apenas
postergado e seria então muito pior. Se quisermos alimentar as
massas crescentes - é claro que deveremos encontrar também
maneiras de controlar nossos números - teremos de desenvolver
métodos de produção agrícola sustentável.
Com muito poucas exceções os
camponeses tradicionais desenvolveram métodos sustentáveis. Os
agricultores chineses, por exemplo, por três mil anos obtiveram
alta produtividade dos seus solos sem comprometer a fertilidade.
Ao contrário, eles desenvolveram e mantiveram uma fertilidade
máxima do solo. Os agricultores regenerativos modernos estão
aprendendo a se tornar cada vez mais sustentáveis, com co?????lheitas
ótimas e métodos localmente adaptados, enquanto recuperam e
mantém a biodiversidade nos seus cultivares e na paisagem
circundante. Vamos chamá-los agricultores regenerativos, e não
biológicos, orgânicos ou alternativos. Quando se trata de vida,
seja bom ou mau, tudo é biológico, é orgânico, mesmo grandes
massacres. Alternativo apenas significa diferente, poderia ser
pior. Mas regenerativo significa regeneração do que tem sido
perdido ou destruído.
A agricultura moderna tem se
desligado da lógica dos sistemas vivos naturais. Todos os
ecossistemas naturais possuem retroação interna automática que,
desde o começo, tal como quando um novo pedaço de terra
estéril, digamos, a encosta de um vulcão, é conquistado, faz as
condições ambientais melhorarem até que um clímax de atividade
biológica máxima e sustentável seja atingido. Nossos
ecossistemas de agricultura moderna fazem exatamente o oposto, ao
impor retroações (agroquímica, agressão mecânica ao solo) que
gradualmente degradam o meio ambiente e empobrecem a
biodiversidade.
Infelizmente, a agricultura moderna
obtém sucesso exaurindo o solo e substituindo a fertilidade
perdida por nutrientes que vêm de fora. Fertilizantes comerciais,
tais como fosfatos provém de minas que estarão brevemente
esgotadas, as minas de potássio são mais abundantes, mas
nitrogênio, o mais importante elemento na produtividade da
agricultura moderna, embora venha da atmosfera, uma fonte
virtualmente inesgotável e para lá acaba voltando, é obtido
pela síntese de amoníaco Haber-Bosch, um proce?????sso que consome
enormes quantidades de energia, principalmente energia de
combustíveis fósseis. Mesmo quando é energia proveniente de
hidroelétricas, trata-se de eletricidade que poderia estar
economizando combustíveis fósseis em outro lugar. Todos os
outros insumos, tais como os agrotóxicos e a cada vez mais pesada
maquinaria, são também grandes consumidores de energia.
Mas a agricultura, se a olharmos de
uma perspectiva holística, ecológica, é um esquema para colher
energia solar via fotossíntese. Enquanto todas as formas de
agricultura tradicional têm um balanço de energia positivo, a
agricultura moderna perverte até mesmo este aspecto fundamental.
Em sua maior parte, tem balanço de energia negativo. Quase todas
as suas operações supostamente de alta produtividade requerem
mais energia fóssil nos insumos do que está contido em seu
produto. Para usar uma metáfora adequada, isto tem se tornado
como um poço de petróleo onde o motor que aciona a bomba consome
mais combustível do que ela pode extrair. Este tipo de operação
só pode sobreviver com subsídios...
Sustentam que a agricultura moderna
é tão eficiente que apenas em torno de 2% da população pode
alimentar o total da população. Até a virada do século, na
Europa, nos Estados Unidos e na maioria dos países, quase 60% da
população trabalhava no campo. No final da última Guerra
Mundial ainda era quase 40%. Atualmente, nos Estados Unidos, menos
de 2% da população trabalha na agricultura. Na maioria dos
países europeus o número está se aproximando aos 2%, visto que
ainda continua a mar?????ginalização de agricultores. Agora, quando
se afirma que nas economias modernas somente 2% das pessoas podem
alimentar a população total, em comparação a 60 ou 40% no
passado, isto é, ou uma ilusão para os que acreditam ou uma
mentira para os que sabem, baseada numa falsa comparação.
No contexto da economia, como um
todo, o antigo campesinato era um sistema de produção,
manipulação e distribuição de alimento que também produzia
seus próprios insumos. A fertilidade do solo era mantida com
esterco, rotação de cultivos, plantas companheiras, adubação
verde, composto, cobertura morta e descanso da terra; as sementes
eram selecionadas do melhor de cada safra; animais de carga e
tração supriam a energia; os moinhos usavam vento ou água como
fonte de energia. Tudo era energia solar. A pouca manipulação ou
beneficiamento que os alimentos sofriam era feita na propriedade
ou na aldeia, cujos artesãos também contavam como população
rural. O mesmo se aplicava aos utensílios, arados, enxadas,
carretas, etc... A maior parte da produção agrícola era
entregue quase nas mãos do consumidor na feira semanal. Em nossa
língua sobra uma linda relíquia daqueles tempos: segunda,
terça, quarta-feira,...
Mas o agricultor moderno é apenas
uma pequena engrenagem em uma enorme infraestrutura
tecnoburocrática que requer até mesmo legislação especial e
pesados subsídios. Comparado com seus antecessores que faziam
quase tudo que estava relacionado com a produção, processamento
e distribuição de alimentos, ele não é muito mais do que um
tratorista e um espalhador de????? veneno.
Depois da última Guerra Mundial,
quando a Alemanha estava totalmente devastada, é verdade que o
Plano Marshall ajudou, mas, mais importante é que os habitantes
das cidades podiam se espalhar pelo campo e fazer "hamstern",
isto é, trocar qualquer coisa de valor, um relógio, um anel, um
piano, por alimento. Os camponeses tinham comida, tinham cereais,
feijão, batata, verduras, frutas, leite, queijo, frango, ganso, e
muito mais.
Não seria necessária uma guerra
hoje para colocar os agricultores europeus em uma posição em que
eles próprios teriam de fazer "hamstern", mas onde?!
Nenhuma bomba precisa cair. Um simples colapso na energia, no
transporte, especialmente na importação de fertilizantes
minerais e ração para gado, no sistema bancário e mesmo nas
redes de computadores e comunicações, seria suficiente.
Espantoso, que os militares não pareçam estar preocupados.
Fundamentalmente, a segurança nacional depende de uma agricultura
sadia e sustentável.
O sistema atual de produção e
distribuição de alimentos (incluindo fibras e alguns outros
itens não comestíveis) começa nos campos de petróleo e todos
os tipos de minas para metais e outras matérias-primas, passa
pelas refinarias, siderurgias e plantas de alumínio, etc., a
indústria química, a indústria de maquinária, o sistema
bancário, o envolvente sistema de transporte (consumindo
principalmente combustíveis fósseis), computadores,
supermercados, indústria de embalagens e um totalmente novo
complexo de i?????ndústrias que quase não existiam no passado - a
indústria de manipulação de alimentos que mais mereceria ser
chamada de indústria de desnaturação e contaminação de
alimentos (com aditivos e resíduos de agrotóxicos). Se quisermos
comparar o agricultor de hoje com o tradicional, então todas as
horas de trabalho nas indústrias acima mencionados e algumas
outras, assim como alguns serviços, tal como as empresas de
"fast food" que, em inglês, bem merecem o qualificativo
de "junk food" (comida entulho), e distribuição de
alimentos, até onde elas direta ou indiretamente contribuem para
a produção, manipulação e distribuição de alimentos,
precisam ser adicionados. Isto tudo deveria até mesmo incluir as
horas de trabalho que correspondem ao dinheiro que, em outras
profissões, precisa ser ganho para pagar os impostos que
financiam os subsídios. É significativo que a maior parte dos
subsídios vai, não para o agricultor, mas para o complexo
industrial. O agricultor é sempre mantido à beira da falência.
Um balanço completo deste tipo
certamente mostraria que, atualmente, numa economia moderna,
também em torno de quarenta ou mais por cento de todas as horas
de trabalho vão para a produção, manipulação e distribuição
da comida. Mas os economistas convencionais de hoje, aqueles que
nossos governantes escutam, em sua visão não holística, colocam
as fábricas de tratores e colheitadeiras com a indústria de
maquinária, as fábricas de fertilizantes químicos e
agrotóxicos com a indústria química e assim por diante, como se
não tivessem nada a ver com alimentos.
????font face="Arial" size="2">O que temos, então, com umas
poucas exceções, é redistribuição de tarefas e certas formas
de concentração de poder nas grandes corporações, e não mais
eficiência na agricultura./font>
Vamos olhar com mais detalhe para
alguns dos aspectos decisivos: quase sempre o moderno sistema de
produção e distribuição de alimentos, além de não ser mais
produtivo em termos de eficiência de mão de obra, tampouco é
mais eficaz em termos de produtividade por hectare. Em muitos
casos, tais como na criação intensiva de animais, ele é mesmo
destrutivo, consumindo mais alimento do que produz.
No sul do Brasil, durante a última
metade do século XX a grande floresta subtropical do Vale do
Uruguai foi completamente demolida, deixando apenas algumas
pequenas relíquias. A floresta foi derrubada e queimada com a
quase total destruição da madeira, para abrir espaço para a
monocultura de soja. Isto não foi feito para aliviar o problema
da fome nas regiões pobres do Brasil, mas para enriquecer uma
minoria (pessoas sem tradição agrícola) com a exportação para
o Mercado Comum Europeu para alimentar gado. As plantações de
soja estão entre as mais modernas - grandes, altamente
mecanizadas e com os habituais insumos químicos. Essas
plantações não são, de maneira alguma, atrasadas quando
comparadas ao mesmo tipo de plantação nos USA. No nosso clima
subtropical o agricultor tem a vantagem suplementar de poder
plantar trigo, cevada, centeio ou aveia, mas também de fazer feno
e silagem no inverno sobre o mesmo solo, mas poucas vezes o faz.
Comparado a?????o que os nossos colonos faziam em solos similares, a
produtividade é baixa, raramente mais do que três toneladas de
grãos (total, verão e inverno) por hectare. O camponês, que
produzia para alimentar a população local, facilmente produzia
15 toneladas de comida por hectare, diversificando com mandioca,
batata-doce, batata inglesa, cana-de-açúcar e grãos, mais
verduras, uva e todos os tipos de frutas, feno e silagem para o
gado, além de porcos e galinhas. Mas ele não produzia PIB
(produto interno bruto). O PIB só reflete fluxo de dinheiro, não
leva em conta autosuficiência e mercadeio local. A conta do PIB
interessa o banqueiro, o governo, as grandes corporações
transnacionais, nada tem a ver com o bem estar das pessoas, da
população. Quando estatísticas das Nações Unidas declaram que
quase a metade da população mundial vive com menos de dois
dólares por dia, isso leva a falsas conclusões. Ninguém viveria
com dois dólares por dia se tivesse que comprar sua comida,
roupa, utensílios no supermercado ou Shopping Center. No período
áureo de nossa colonia no Rio Grande do Sul, anos trinta, o
colono podia não ter um tostão no bolso, mas sempre tinha mesa
farta, vivia muito bem.
Não obstante esta realidade, a
política agrícola oficial tem sempre apoiado os grandes às
custas dos camponeses. Centenas de milhares deles tiveram que
desistir e partir para as cidades, freqüentemente para as
favelas, ou mais para o norte em direção à floresta Amazônica.
Uma devastação tremenda foi feita com dinheiro do Banco Mundial
no estado de Rondônia, e os pequenos agricultores que lá foram
assentados,????? não sabendo como cultivar nos trópicos e sem apoio,
em geral fracassam, deixando para trás devastação, enquanto
novas áreas da floresta são desmatadas. No Brasil central, o
cerrado, o equivalente sul americano da savana africana, está
hoje sendo quase totalmente destruído para dar lugar a mais
plantações de soja, uma das quais cobrindo centenas de milhares
de hectares contíguos. Na sua biodiversidade o cerrado é tão
valioso quanto a floresta tropical, e eventualmente, até mais.
Num exemplo concreto também se
argumenta que os índios camponeses em Chiapas, México, que
estão agora lutando pela sua sobrevivência, rebelando-se contra
o NAFTA (o Mercado Comum Norte Americano), são atrasados, eles
produzem somente duas toneladas de milho por hectare comparado com
seis nas plantações mexicanas modernas. Mas isso é somente
parte do quadro, as plantações modernas produzem seis toneladas
por hectare e é só. Mas os índios produzem uma colheita mista,
entre seus pés de milho, que também servem para suporte de
variedades de feijão que são trepadeiras, eles plantam legumes,
abóbora, morangas,batata doce, batata inglesa,tomate e todo tipo
de vegetais, frutas e ervas medicinais. A partir do mesmo hectare
eles também alimentam seu gado e galinhas. Eles facilmente
produzem quinze toneladas de alimento por hectare e tudo sem
fertilizantes comerciais ou pesticidas e sem assistência dos
bancos, governos ou corporações transnacionais.
A marginalização de tais pessoas
é a continuação de um dos maiores desastres dos tempos
modernos. Ao chegar nas favelas das cidades terão????? de comprar
comida cultivada em monoculturas que são menos produtivas do que
eram eles. Em última análise existe então menos comida e mais
pessoas para alimentar. Existe excesso em alguns lugares e falta
noutros. Freqüentemente sua terra é então tomada por criadores
de gado que raramente produzem mais do que 50 quilos de
carne/hectare/ano. Centenas de histórias similares poderiam ser
contadas. No caso de Chiapas, cada vale tinha sua língua e
cultura diferentes. Acima de todas as calamidades pessoais, quando
a terra perde seus camponeses, temos genocídio cultural!
No caso da criação em massa de
animais para carne e ovos, os métodos são absolutamente
destrutivos, muito mais alimento para humanos é destruído do que
produzido. As galinhas em seus tristes campos de concentração ou
fábricas de ovos, eufemisticamente chamadas de
"granjas" são alimentadas com rações
"cientificamente equilibradas", consistindo de grãos de
cereais, soja, torta de óleo de palma ou de mandioca, muitas
vezes com farinha de peixe. Conhecemos casos no Brasil onde sua
ração contém leite em pó, proveniente do Mercado Comum
Europeu... Isto as coloca então numa posição de competição
com os humanos, nós as alimentamos com nossas lavouras. Um
absurdo total se o propósito é contribuir para resolver o
problema da fome mundial. Na agricultura tradicional as galinhas
comiam insetos, minhocas, esterco, ervas, capim e restos de
cozinha e de colheita, desta maneira aumentando a capacidade de
sustento das terras dos agricultores para humanos. Agora elas a
diminuem.
Nestes esquemas, a razão de
transformação da ração em alimento humano é próxima de vinte
para um. Precisa-se levar em consideração que metade do peso dos
animais vivos - penas, ossos, intestinos - não é consumida por
nós e também é preciso considerar que as rações desidratadas
e concentradas com um alto consumo de energia até o máximo de
12% de água, enquanto a carne contém até 80%. Nos galpões de
engorde, as operações mais eficientes usam em torno de 2,2Kg de
ração para obter 1Kg de peso vivo, metade da qual é alimento
humano. Então 2,2 para 1 se torna 4,4 para 1. Corrigindo o
conteúdo de água: 4,4 vezes 0,88 e 1 vezes 0,2 obtém-se 3,87
para 0,2, igual a 19,36 para 1. Quando se trata de gado bovino
confinado, como nos "feed lots" de Chicago, a relação
é umas cinco vezes pior.
Mais recentemente, algumas de
nossas granjas "aperfeiçoaram" um pouco esta razão
incluindo na ração rejeitos de galinhas abatidas antes, desta
maneira forçando-as ao canibalismo(!). Outro aspecto absurdo
disto tudo: as rações "cientificamente equilibradas"
não contém nada verde, o mesmo acontece com os porcos. Mas
galinhas e porcos são vorazes consumidores de ervas, gramíneas,
frutos, nozes e raízes. Em nossos experimentos com agricultura
sustentável na Fundação Gaia também os alimentamos com plantas
aquáticas, com grande sucesso - animais saudáveis, sem
antibióticos, sem drogas, sem veterinários.
Além disso, nos campos de
concentração de galinhas e fábricas de ovos, assim como nos
modernos calabouços de porco?????s, as pobres criaturas vivem sob
condições de extremo estresse.
É tempo de acabar com a mentira de
que apenas a agricultura promovida pela tecnocracia pode salvar a
humanidade da inanição. O oposto é verdadeiro.
É preciso uma nova forma de
balanço econômico que, a medida que soma o que é chamado
"produtividade" ou "progresso" na agricultura,
também deduza todos os custos: as calamidades humanas, a
devastação ambiental, a perda da diversidade biológica na
paisagem circundante e a ainda mais tremenda perda de
biodiversidade em nossos cultivares. Este segundo aspecto será
agora enormemente agravado com a biotecnologia dominada pelas
grandes empresas, como veremos mais adiante. E, mais importante e
decisivo, a não sustentabilidade disto tudo. Temos o direito de
agir como se fóssemos a última geração?
No caso de operações industriais
envolvendo galinhas é fácil ver como tais métodos destrutivos
se desenvolveram. Estou falando do que observo no sul do Brasil -
o Brasil é um grande exportador de carne de galinha,
principalmente para o Oriente Médio e Japão. A partir de
esquemas muito simples, onde pequenos empresários individuais
confinavam galinhas num galpão e as alimentavam com milho, o
sistema coalesceu e cresceu até um ponto onde, atualmente,
existem em torno de meia dúzia de companhias muito grandes e umas
poucas pequenas. Os grandes abatedouros abatem e processam até
centenas de milhares de galinhas por dia. Eles operam de acordo
com regras impostas por eles, chamadas por ?????eles "integração
vertical". O "produtor" assina um contrato onde
aceita comprar todos os seus insumos, pintinhos, ração e drogas
da companhia. Mesmo que ele seja um agricultor e tenha uma grande
produção de grãos, ele está proibido de usá-la para alimentar
suas galinhas. Ele é obrigado a comprar a ração pronta, mas
pode vender o seu milho para a fábrica de ração que pertence à
mesma companhia proprietária do abatedouro e da incubadeira que
produz os pintos. Estes operam um tipo diferente de campo de
concentração de galinhas onde os prisioneiros são galos e
poedeiras, um galo para cada dez galinhas. As galinhas não estão
em pequenas gaiolas como nas fábricas de ovos, elas podem se
mover livremente dentro do galpão e pular para dentro de amplos
ninhos para pôr os ovos. Nas operações de esteiras rolantes das
fábricas de ovos, chamadas baterias, as pobres poedeiras estão
confinadas, três em cada gaiola, sobre uma grade de arame e os
ovos rolam para fora. Os pintos produzidos nestas incubadeiras
não são mais de raças tradicionais de galinhas, eles são de
marcas registradas e são híbridos. Assim como o milho híbrido,
não podem ser reproduzidos com manutenção de características
raciais.
Após comprar todos os seus insumos
da companhia com a qual assinou contrato, ele poderá vender
somente para a mesma. O produtor não é autorizado a vender a
empresas concorrentes, estas não comprariam. Assim, ele pode ter
a ilusão de ser um pequeno empresário autônomo, mas sua
situação real é a de um operário com horas de trabalho
ilimitadas, sem fins-de-semana, feriados nem féria?????s e ainda tem
que pagar sua própria previdência social. Se a grande companhia
trabalhasse com empregados de carteira assinada, ela não poderia
fazê-lo, seria muito caro e muito arriscado. Desta maneira deixam
todos os riscos com o produtor: perda por doenças ou custos
adicionais com drogas e antibióticos, choque de calor, um
desastre comum durante os dias quentes de verão, quando centenas
ou milhares de galinhas morrem nos abarrotados e mal ventilados
galpões, e perdas durante o transporte. As galinhas que morrem
nos caminhões da companhia no trajeto ao abatedouro são também
descontadas. Os seus lucros também diminuem constantemente com o
crescente preço dos insumos e a queda do faturamento com as
vendas. A margem do produtor é tão apertada que, mesmo se tudo
for bem, mas se for preciso alimentar os animais mais alguns dias,
o lucro pode evaporar ou mesmo se transformar em perda. Esta é
uma ocorrência comum. O abatedouro agenda suas viagens de coletas
de galinhas prontas de acordo com sua própria conveniência. Mas
se a companhia obtém lucros excepcionais no mercado de
exportação, nada vai para o produtor...?
Portanto, os campos de
concentração de galinhas não têm nada a ver com maior
produtividade para ajudar a salvar a Humanidade da inanição - de
fato, eles contribuem ao problema - mas eles concentram capital e
poder pela criação de dependência.
Estes métodos não foram
inventados pelos agricultores. É impensável que um agricultor em
uma cultura camponesa sadia tivesse a idéia de alimentar
massissamente suas galinhas com grãos, a men?????os que fossem grãos
estragados, e isolá-las de sua fonte natural de alimentos, desta
maneira desperdiçando parte da capacidade de sustentação do
solo para humanos, destruíndo ao mesmo tempo parte de sua
colheita. Estes métodos também não são resultado concatenado
de uma conspiração pela tecnocracia. Tais esquemas crescem
naturalmente a partir de uma "semente" inicial que pode
ter tido uma intenção completamente diferente. Neste caso, como
foi na agroquímica também, era o esforço de guerra. A
conspiração cresceu depois ao longo do tempo. Durante a última
Guerra Mundial, o governo americano iniciou o sistema de
subsídios para a produção de grãos, o qual conduziu a enormes
excedentes. Assim, as autoridades da agricultura procuraram
"consumo não humano" para os grãos... Integração
vertical" é somente um estágio momentâneo no processo de
concentração de poder. Em breve eles encontrarão maneiras de
banir - por meio de legislação especial - a criação de
galinhas soltas (caipiras) por agricultores independentes. Já foi
tentado, sem sucesso, mas, por dispositivos legais especiais,
conseguiu-se tornar muito difícil para pequenos agricultores a
venda de ovos no mercado aberto.
No caso do milho híbrido, também
não existia conspiração no início, ela veio mais tarde.
Geneticistas descobriram que pelo cruzamento de duas variedades
super-puras de milho - variedades obtidas após oito a dez
gerações de autofecundação - se obtém plantas de alta
produtividade e uniformidade perfeita. Deve ter sido uma
decepção quando descobriram que as variedades não eram
????? estáveis. Após ressemeadura, as variedades dessegregam de acordo
com as leis de Mendel. A nova colheita era caótica - pés de
milho pequenos e grandes, uma espiga, muitas espigas, cores,
formas e qualidades de grãos diferentes. Mas, do ponto de vista
do vendedor de sementes, era uma verdadeira vantagem! O agricultor
não mais poderia guardar sua própria semente, tinha que comprar
sementes novas a cada ano. O vendedor não precisava sequer da
proteção de uma patente.
Felizmente na maioria dos cultivos,
especialmente grãos como trigo, cevada, centeio e aveia, este
tipo de hibridização ainda não é economicamente viável para
os geneticistas. Eles estão tentando com todas as culturas que
podem. Funciona com galinhas. No sul do Brasil foi necessário
fundar uma associação com o objetivo de preservar as raças
tradicionais de galinhas. A maioria estão agora em perigo de
extinção. Algumas já se foram. Somente as cepas registradas de
galinhas híbridas não estão ameaçadas (enquanto durar a
loucura dos campos de concentração de galinhas e fábricas de
ovos). Quanto ao milho, quase todas as variedades tradicionais se
foram. Se um agricultor quer plantar uma delas não ganha o
crédito do banco. Apenas as variedade "registradas"
são aceitas.
Atualmente, a manipulação
genética direta, chamada biotecnologia, que opera a nível de
cromossomo, permite que o especialista assuma o controle,
tirando-o do agricultor. Mas, como a maioria dos produtos
resultado da manipulação genética direta não dessegregam na
reprodução, como no caso dos híbridos natura?????is, é preciso
patentes. Retornaremos a este assunto.
Vejamos como nasceu a agroquímica.
Até final dos anos quarenta a
pesquisa em agricultura visava soluções biológicas. A
perspectiva era ecológica, embora mal se falasse em ecologia. Se
esta tendência tivesse podido continuar, teríamos hoje muitas
formas de agricultura sustentável, localmente adaptadas e
altamente produtivas. Começando nos anos cinqüenta a indústria
conseguiu fixar um novo paradigma - nas escolas, na extensão e
pesquisa agrícolas. Vamos chamá-lo paradigma NPK + V. NPK
corresponde a Nitrogênio, Fósforo, Potássio, o V significa
veneno.
Os fertilizantes comerciais se
tornaram um grande negócio depois da primeira guerra mundial.
Logo no começo da guerra, o bloqueio Aliado cortou o acesso dos
alemães ao salitre chileno, essencial para a produção de
explosivos. O processo Haber Bosch para fixação de nitrogênio a
partir do ar, mencionado acima, era conhecido mas ainda não tinha
sido explorado comercialmente. Os alemães montaram então uma
enorme capacidade de produção e conseguiram lutar por quatro
anos. O que seria o mundo se este processo não tivesse sido
conhecido? A primeira guerra mundial não teria realmente se
desencadeado, não teria acontecido o Tratado de Versalhes, e
portanto não teria havido Hitler...! Como uma tecnologia pode
mudar o curso da história!
Quando a guerra acabou, havia
enormes estoques e capacidade de produção mas não havia mais
grande mercado para explo?????sivos. A indústria então decidiu
empurrar fertilizantes nitrogenados para a agricultura. Até
então os agricultores estavam bastante satisfeitos com seus
métodos orgânicos de manutenção e aumento da fertilidade do
solo. O guano e o salitre chileno eram usados de maneira muito
limitada, principalmente em cultivos muito especiais,
especialmente em jardinagem intensiva. Os fertilizantes
nitrogenados na forma de sais quase puros e concentrados,
fertilizantes à base de nitrato e amônia, de certa forma viciam,
quanto mais se usa mais se precisa usar. Logo se tornaram um
grande negócio. Então a indústria desenvolveu um espectro
completo, incluindo fósforo, potássio, cálcio, microelementos,
mesmo sob a forma de sais complexos, aplicados na forma granulada,
algumas vezes de avião.
A Segunda Guerra Mundial deu um
grande empurrão para uma pequena e quase insignificante
indústria de pesticidas e realmente a projetou para a produção
em grande escala. Hoje o equivalente a centenas de bilhões de
dólares em venenos são espalhados sobre todo o planeta. Durante
a Primeira Guerra Mundial gás venenoso foi usado apenas uma vez,
com efeitos devastadores para ambos os lados, e por isso nunca
mais foram empregados. Durante a Segunda Guerra Mundial gases não
foram aplicados em batalha, mas muitas pesquisas foram
desenvolvidas. Bayer, entre outros, estava neste jogo. Ela
desenvolveu os ésteres do ácido fosfórico. Depois da guerra
eles tiveram uma grande capacidade de produção e estoques e
concluíram que o que mata gente também mata os insetos. Fizeram
novas fórmulas e as comercializaram como inseticid?????a.
O DDT era conhecido como uma
curiosidade de laboratório. Quando Müller, na Geigy, descobriu
que matava insetos sem, aparentemente, afetar as pessoas, alertou
as forças armadas americanas que estavam sofrendo com a malária
no Pacífico, enquanto lutavam com os japoneses. Usaram-no de
forma totalmente descuidada, convencidos de que era inofensivo,
espalhando-o sobre paisagens inteiras e até dentro de casas e sob
a vestimenta das pessoas.
Pouco antes do fim da Guerra no
Pacífico um cargueiro americano estava a caminho de Manila com
uma carga de potentes fitocidas (biocidas que matam plantas) do
grupo 2,4-D e 2,4,5-T. A intenção era matar de fome os japoneses
destruindo suas colheitas através da pulverização do veneno
desde o ar. Tarde demais. O barco teve ordem de voltar antes de
chegar. Outro grupo de americanos acabara de jogar as bombas
atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, uma terrível história que
todos nós conhecemos, e os japoneses assinaram o armistício.
Mesma história: grande capacidade de produção, enormes estoques
sem compradores. A substância foi reformulada como
"herbicida" e descarregada nos agricultores. Depois,
durante a guerra do Vietnam, as Forças Armadas Americanas
impiedosamente espalharam o que eles chamaram de "Agente
Laranja" (e outras cores) sobre milhões de hectares de
floresta tropical, pretendendo fosse somente um desfoliante para
tornar visíveis as forças inimigas. De fato, estas formulações
continham grandes concentrações de 2,4,5-T que destruiam
totalmente as florestas.
????? A indústria, querendo preservar em
tempo de paz o que tinha sido um grande negócio em tempo de
guerra, conseguiu dominar quase completamente a pesquisa agrícola
para redirecioná-la para seus próprios objetivos. Conseguiu
cooptar a pesquisa e extensão agrícola oficial, assim como
escolas e, fazendo "lobby" a favor de legislação ou
regulamentação adequadas e criando esquemas bancários de
crédito (aparentemente) fácil, colocaram o agricultor numa
posição na qual dificilmente sobravam outras alternativas.
Atualmente, o paradigma agroquímico é aceito quase sem
questionamentos nas escolas agrícolas, na pesquisa e extensão. A
maioria dos agricultores acredita nele e, freqüentemente, quando
marginalizada, se culpa a si mesma por sua incapacidade para
competir.
Tudo isso veio a existir não como
uma conspiração deliberada por pessoas de mentes diabólicas,
desenvolveu-se e estruturou-se de oportunismo em oportunismo. A
medida que uma nova técnica, processo ou regulamentação dava
vantagem à alguém ou à alguma instituição, a respectiva
tecnologia era promovida e ideologicamente consolidada.
Alternativas que não encaixavam com as crescentes estruturas de
poder eram combatidas, ignoradas ou desmoralizadas.
Agora sim, no caso da biotecnologia
na agricultura, controlada por grandes corporações
transnacionais, parece que temos uma verdadeira conspiração e
que os danos serão muito mais irreversíveis do que os sofridos
até agora.
O principal problema aqui não é
?????
tanto se nossos alimentos se tornarão de qualidade inferior e
até nocivos - apesar de que isso possa vir a ocorrer - mas,
novamente, trata-se de adicionar ainda mais estruturas de
dependência, de dominação, sobre os agricultores que ainda
restam e uma limitação de escolhas para o consumidor.
A fantástica diversidade de
cultivares que tínhamos e ainda temos hoje, depois das tremendas
perdas causadas pela "Revolução Verde" durante as
últimas décadas, é o resultado da seleção, consciente e
inconsciente, por parte dos camponeses ao longo dos séculos e dos
milênios. Pensemos somente na família das crucíferas - repolho,
couve chinesa, rabanete, nabo, mostarda, couve-flor, brócoli,
colsa e muitos outros. Nenhum destes agricultores jamais solicitou
patentes, registro ou certificação...
Agora, indústrias como a Monsanto
querem que aceitemos sua manipulação desta riqueza preexistente,
como a soja "Roundup-ready", com o argumento de que eles
apenas estão dando prosseguimento e acelerando este processo,
contribuindo assim para a solução dos problemas para alimentar a
Humanidade. Eles insistem mesmo de que não há outra saída. Mas
eles sabem muito bem que existem outras alternativas, melhores,
mais saudáveis, mais baratas.
Todo mundo sabe que a agricultura
deve encontrar caminhos para se afastar dos venenos. Possuímos
todos os conhecimentos necessários. Milhares de agricultores
orgânicos em todo o mundo são prova disto. Com cultivares
resistentes a herbicidas a indústria quer vender pac?????otes, semente
+ herbicida, obrigando o agricultor a usar herbicida, mesmo que
ele não o necessite, e a usar o herbicida da respectiva empresa.
No caso de cultivares com o infame gen "terminator" a
conspiração é ainda mais óbvia. Com esse tipo de semente eles
nem precisam se incomodar em solicitar patentes. Tudo isto não
tem nada a ver com aumento de produtividade, é a culminação do
gradativo processo de desapropriação dos agricultores, para
transformar os sobreviventes em meros apêndices da indústria.
Isto agravará a marginalização, a desestruturação social, a
devastação ambiental e a perda da biodiversidade na Natureza e
em nossos cultivos, agravará o problema da fome.
Tradução: Grupo PET/CAPES/UNISINOS
- Geologia Bolsistas: Tatiana Rennau dos Santos, Fabrício M. Ely,
Daniel P. Travassos, Paulo Martins Filho, Daniel B. Carvalho,
Marina Heckeler, Tiago de Almeida, Rafael L. Dessart e Iberê G.
Schier. Professor Orientador: Luiz Henrique Ronchi
Revisão da tradução com algumas
atualizações: José A. Lutzenberger e Lilly Charlotte
Lutzenberger - março de 2000
|